Marco regulatório da biodiversidade: o nascimento de um modelo internacional ou de um perigoso precedente?

17/06/2015 às 07:24
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Com a provação do marco regulatório sobre biodiversidade o Brasil dá sinais do desejar servir de modelo internacional quanto à gestão dos recursos genéticos, mas a nova lei possui algumas fragilidades que podem significar um perigoso precedente. Algumas breves considerações sobre o novo regime jurídico sobre o acesso ao patrimônio genético brasileiro e a justa repartição de benefícios.

A Presidenta da República, Dilma Rousseff, sancionou no passado dia 20/05, após tortuoso percurso no Congresso Nacional (marcado pelos fortes embates entre as diversas frentes parlamentares que evidenciaram o tradicional antagonismo entre a Frente Parlamentar de Ciência, Tecnologia, Pesquisa e Inovação e a Frente Parlamentar Ambientalista) a lei nº 13.123 que abre a estrada para a ratificação do Protocolo de Nagoia pelo Brasil, instrumento jurídico internacional que regulamenta o artigo 15 da Convenção sobre Diversidade Biológica-CDB.

Embora o marco regulatório sobre o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado e sobre a justa repartição de benefícios seja mais conhecido como “lei da biodiversidade”, o seu principal objetivo não é, como poderia parecer à primeira vista, a proteção da biodiversidade como é normalmente entendida pelos biólogos e ambientalistas (ou seja, como  elevado grau de variedade de formas de vida, animais, vegetais e microbianas encontradas em determinado ecossistema) mas a defesa do patrimônio genético nacional, com o correlato direito de impor condições de acesso aos próprios recursos genéticos-RG.

Este “patrimônio genético” é um termo presente já na Constituição de 1988 (artigo 225, § 1º, II) cuja defesa cabe ao Poder Público e cuja integridade é vista como instrumento para a defesa do meio ambiente que possa garantir uma qualidade de vida sadia. Nestes termos, a componente genética da biodiversidade - que é matéria-prima para o melhoramento das espécies agrícolas (animais e vegetais) e também elemento essencial para a pesquisa científica - é considerada como parte do patrimônio natural do país, sendo por isso englobada pelo ramo do direito ambiental.

O referido conceito, que era bastante vago, recebe contornos mais precisos com a Medida Provisória nº 2.186-16/2001, que passa a definir, no artigo 7º, I, o patrimônio genético como: “toda informação de origem genética, contida em amostras do todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de moléculas e substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive domesticados, ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ no território nacional, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva.”

Trata-se de um conceito bastante amplo, que na Lei nº 13.123 passa a ser definido, de forma mais concisa, no art. 2º, como a “informação de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivos”, embora o conteúdo do art. 7º da MP 2.186 seja substancialmente replicado no art. 1º que define o âmbito de extensão da nova Lei.

Para se ter uma idéia da complexidade dos elementos contidos naquele conceito, existe atualmente, na UE, nada menos que 12 diretivas para disciplinar apenas o “material reprodutivo” (que abrange as sementes e material de multiplicação vegetal), uma situação que já levou as autoridades europeias a elaborar uma proposta de regulamento para a simplificação da disciplina normativa que recai sobre uma realidade bem mais limitada que aquela do “patrimônio genético” (que engloba todo bem do povo em condição in situ ainda que conservado ex situ e a populações espontâneas).

O legislador brasileiro, ao associar o patrimônio genético não ao bem em si, mas à informação a ele associada, denota compreender perfeitamente que o alcance e a verdadeira importância (e valor econômico) do material genético se encontram exatamente nos dados e conhecimentos que dele são extraídos, como fruto de um processo de pesquisa científica e que explica, por exemplo, a aplicação médico-farmacêutica, industrial ou agrícola.

Todavia, esta é uma abordagem completamente diversa daquela contida na CDB, convenção que insere os recursos genéticos como uma parte dos recursos biológicos (que é uma das componentes da biodiversidade) definidos como “material genético de valor real ou potencial”. O material genético é, por sua vez, considerado como “material de origem vegetal, animal, microbiana ou outra que contenha unidades funcionais de hereditariedade”.

Como é possível observar, o legislador nacional estendeu o regime jurídico nacional sobre os recursos genéticos às informações relacionadas ao genoma de plantas, animais e microrganismos.

Não só. O novo marco regulatório criou a figura jurídica das “populações espontâneas”, definida como “população de espécies introduzidas no território nacional, ainda que domesticadas, capazes de se autoperpetuarem naturalmente nos ecossistemas e habitats brasileiros”. Ao referir “introduzidas”, faz clara menção àquelas espécies não originárias do país.

Ora, à luz daquela definição, basta, portanto, que uma espécie animal, vegetal ou microbiana – mesmo exótica e não nativa – tenha a capacidade de se autoperpetuar em território nacional para que, automaticamente, passe a fazer parte do patrimônio genético brasileiro, ainda que domesticada por outros povos ou introduzida ilegalmente (por contrabando, por exemplo).

Tal previsão - se lida em conjunto com a disposição contida no art. 46 que determina que “a repartição de benefícios prevista no Protocolo de Nagoia não se aplica à exploração econômica, para fins de atividade agrícola, de material reprodutivo de espécies introduzidas no País pela ação humana até a entrada em vigor desse Tratado” - resulta na questionável situação de, concomitantemente, nacionalizar a quase totalidade das espécies exóticas presentes no país e excluir do regime jurídico de repartição de benefícios contido no Protocolo de Nagoia aquelas espécies de interesse agrícola provenientes de outros países, como parte da concessão aos empresários do agronegócio que manifestavam preocupação quanto à possibilidade de terem que pagar royalties pela exploração de variedades não originárias do país (e fora do âmbito do TIRFAA), como, por exemplo, a soja (de origem asiática).

Desta forma o Brasil lança os RG de espécies agrícolas não abrangidos pelo TIRFAA no terreno da incerteza jurídica, no nível internacional, sobretudo no tocante ao sistema de justa e equitativa repartição de benefícios.

Ademais, é oportuno recordar que a forma como a Lei 13.123 nacionaliza os recursos genéticos agrícolas exóticos destoa da CDB (em conciliação com as medidas contidas no Protocolo de Nagoia). De fato, o art. 5 do Protocolo refere que os benefícios dos RG são repartidos “de forma justa e equitativa” com o país que coloca à disposição tal recurso, o que significa, na prática: i) o país de origem do recurso; ii) o país que o adquiriu à luz da CDB (ou seja, mediante acordo para transferência de material genético).

 Ora, a CDB (que reconhece a soberania dos Estados sobre os componentes da biodiversidade), estabelece - como país de origem dos RG - aquele que os possui em condição in situ, um conceito que, no caso específico de espécies domesticadas, indicava o país onde o organismo (animal, vegetal ou microbiano) desenvolveu “suas propriedades características” (conceito presente no art. 2º, XXV da Lei 13.123). Desta forma, as propriedades características serviam como elemento capaz de determinar a origem de espécies domesticadas, que representa a maior parte daquelas de interesse agrícola, ao contrário do legislador brasileiro optou pelo critério da autoperpetuação associado ao conceito de populações espontâneas.

Ora, o que ocorria em vários países era que, ao abrigo de tal disposição internacional, várias autoridades governamentais nacionalizavam alguns organismos exóticos presentes in situ após uma detalhada descrição que configurava o respeito pelo requisito de “caracterização” capaz de demonstrar que houve uma modificação (fenotípica, genotípica ou taxonômica, fruto da adaptação do organismo ao local) que justifica considerá-la como parte da biodiversidade nacional.

Por outro lado o Brasil não renunciou à proteção do próprio regime jurídico de imposição de autorização prévia ao acesso e ao pagamento de royalties pela exploração, por outros países ou empresas estrangeiras, do seu vasto patrimônio genético (que se estende, inclusive, ao material genético encontrado in situ no Brasil, mas conservado ex situ, nos bancos de germoplasma privados e presentes em outros países).  Todavia, o sinal que o país transmite à comunidade internacional – de forte nacionalismo genético – parece ignorar o fato que o Brasil compartilha sua biodiversidade amazônica, por exemplo, com outros 8 países, e que compreende espécies migratórias de origem indefinida.

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Assim, apesar de o marco regulatório desburocratizar o procedimento de autorização ao acesso aos RG junto ao Cgen, algo que vinha sendo reivindicado há anos, sobretudo, por setores da indústria e representantes da comunidade científica, cria um perigoso precedente, pois caso a venha a ser seguido por outros países, poderá dar início a um processo global e generalizado de nacionalização de espécies agrícolas (inseridas como parte integrante da “população espontânea” local), que terá como consequência a potencial desnaturação do sistema internacional de repartição de benefícios que pretendia fomentar – ao nível bilateral ou multilateral – mecanismos de prover a justa compensação econômica em favor das populações locais presentes, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento.

Não só. Como resultado deste, eventual, processo de nacionalização, à escala global, passaremos a ter mais de um país detentor dos mesmos recursos genéticos (inseridos no vasto conceito de “patrimônio genético”), repartidos entre aqueles de efetiva origem e aqueles que os possuem como parte da sua “população espontânea”.

Como resultado disso, as empresas e países interessados em tais RG poderão passar a escolher, livremente, a quem se dirigir para solicitar o acesso, ponderando os custos e benefícios em termos de percentual de royalties e tempo para a obtenção da autorização, alimentando a concorrência e a competitividade sobre a gestão dos recursos genéticos.

Mas o marco regulatório tem o valor de, finalmente, contribuir ao debate sobre a necessidade de haver a repartição do regime jurídico internacional, com a consequente distinção entre as condições de acesso e repartição de benefícios de RG agrícolas não cobertos pelos TIRFAA e aqueles usados no campo médico-farmacêutico, industrial ou cosmético.

Além disso, a Lei 13.123, com sua longa lista de definições, não contribui para a simplificação da disciplina jurídica dos RG, e, ao invés de esclarecer os termos pouco claros que estão, por exemplo, presentes na CDB ou no Protocolo de Nagoia, cria outros, recorrendo, com frequência a expressões pouco claras e imprecisas que necessitarão, inevitavelmente, de futuro processo interpretativo – com o eventual auxílio dos órgãos judiciais – para se determinar a amplitude e definir limites.

Um caso que ilustra a referida complexidade é o conceito de “apelo mercadológico”, que é capaz de contribuir para caracterização do elemento principal de agregação de valor ao produto (art. 2º, XVIII), que pode gerar a sua inclusão no regime de acesso e repartição de benefícios do “produto acabado” (art. 2º, XVI e art. 3º).

Presume-se que a intenção do legislador, ao usar tal conceito, tenha sido aquela de associar a condição de acesso e repartição de benefícios do patrimônio genético a uma das variáveis para formação do preço, estreitamente ligada ao marketing, ou seja, uma das componentes da gestão da imagem do produto que é capaz de agregar-lhe valor e aumentar, desta forma, a sua lucratividade. Trata-se de um conceito normalmente ligado às indicações geográficas e certificações de qualidade associada à origem ou proveniência de um produto.

Todavia, será bastante delicada e sensível a aplicação concreta de tal critério, visto que será difícil estabelecer parâmetros claros, objetivos e inequívocos das situações que casuisticamente possam e devam ser consideradas como “determinantes” para a formação do apelo mercadológico.

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Sobre o autor
Leandro Moura da Silva

PhD em Direito Público. LLM em Direito Comercial Internacional. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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