Algumas considerações sobre a realidade brasileira acerca dos procedimentos judiciais para aplicação de métodos contraceptivos aos enfermos mentais irreversíveis na Espanha

Leia nesta página:

O objetivo deste trabalho é uma proposta de Lex Ferenda para o Brasil dos procedimentos judiciais contraceptivos adotados no ordenamento jurídico espanhol.

  1. INTRODUÇÃO

Nas páginas que se seguem, iremos comentar sobre o procedimento judicial para autorização de métodos contraceptivos invasivos em enfermos mentais irreversíveis na Espanha, com ênfase na Lei orgânica 3/ 1989 de 21 de junho, que atualiza o Código Penal espanhol, com relação à nova redação dada ao artigo 428, que descriminalizou a esterilização. Fiz uma análise sobre uma pesquisa direta realizada no fórum de Salamanca e depois abordei sobre as perspectivas da realidade brasileira, com relação a uma possível proposta de Lexis Ferenda.

A adoção de métodos contraceptivos invasivos em enfermos mentais acometidos de enfermidades graves e irreversíveis é um tema bastante polêmico, que envolve questionamentos culturais, religiosos, médicos, razão porque deve ser motivo de ampla discussão e profunda reflexão.

Convém esclarecer que não tenho a menor pretensão em instigar comportamentos eugênicos ou discriminatórios; nosso objetivo é tão somente explanar as nuances da legislação espanhola, contemplando, de forma menos aprofundada, a realidade brasileira.

2. Histórico:

A sociedade espanhola exigia modificações, ansiava por uma reforma legislativa que permitisse uma maior conscientização, uma  assimilação consciente da responsabilidade do papel da maternidade e paternidade dos enfermos mentais irreversíveis. Como resposta às reinvidicações sociais, foi aprovada a Lei Orgânica nº 3, de 21 de junho de 1989[1], que acrescentou ao artigo 428, do Código Penal um segundo parágrafo, estabelecendo a isenção de responsabilidade penal para os médicos que praticassem a esterilização, por meio do método invasivo, em pessoas portadoras de doenças mentais congênitas graves, desde que autorizada mediante procedimento judicial de jurisdição voluntária.

A publicação da Lei Orgânica nº 3 foi objeto de questionamentos quanto à sua constitucionalidade, ou seja, se o representante do incapaz teria legitimidade para autorizar a esterilização pelo enfermo, tais indagações motivaram as manifestações do Judiciário espanhol com relação à suposta vulneração ao artigo 15 da Carta Magna Espanhola[2].

 Nesse sentido, em 14 de julho de 1994, o Tribunal Constitucional [3] espanhol  pronunciou-se taxativamente:

A questão reside se uma mulher incapaz, que não pode prestar seu consentimento válido,  pode ser objeto de manipulações médicas que conduzam a sua esterilidade e se esta mulher poderá ser representada nesse pleito.

Sendo em todo caso, necessário o consentimento, o problema consiste se tal consentimento pode encontrar fórmulas substitutórias. A pergunta não é outra, que se a regulamentação do art. 428 do Código Penal tem justificativa, haja vista que vai de encontro ao princípio geral de que a esterilização tem necessariamente que vir precedida do consentimento válido de uma pessoa capaz.

  

Após numerosos questionamentos doutrinários, o Tribunal Constitucional decidiu que a regulação do art. 428, do Código Penal Espanhol tinha justificativa legal. Esse dispositivo vai ao encontro do princípio de que a esterilização tem que vir precedida, necessariamente, pela autorização judicial e admite a representação no pedido judicial. Em assim sendo,  o Tribunal concluiu que o parágrafo segundo do referido artigo redatado segundo o artigo 6º da lei Orgânica 3/1989 não era inconstitucional:

 A despenalizaçao da esterilização tem por finalidade melhorar as condições de vida do incapaz, sendo claro que entre a finalidade perseguida pelo legislador e o meio previsto para consegui-la há uma necessária proporcionalidade, ademais se conta com as garantias suficientes, entre elas a substituição do consentimento do afetado pela autorização judicial, contando com a intervenção da família, do juiz, dos especialistas e do Ministério público, para conduzir a uma resolução judicial, tendo em vista o princípio do melhor interesse do incapaz.

  1. Legislação atual espanhola:

A esterilização atualmente está disciplinada pelo artigo 156, do Código Penal Espanhol da seguinte forma:

 O consentimento válido, livre, consciente e expressamente emitido exime de responsabilidade penal os submetidos a transplantes de órgãos, conforme a legislação, esterilizações e cirurgia transexual realizadas por médicos, salvo que o consentimento tenha sido obtido viciadamente ou mediante preço ou recompensa ou o outorgante seja menor de idade ou incapaz, em cujo caso não será válido o prestado nem  por este nem por seu representante legal.

O parágrafo segundo, que é de nosso interesse, enfatiza que: 

         Sem dúvida, não será punível a esterilização de pessoa incapacitada que adoeça de grave deficiência psíquica quando aquela, tomando como critério reitor o do melhor interesse do incapaz, haja sido autorizado pelo juiz, quer seja no mesmo procedimento de incapacitação, ou em expediente de jurisdição voluntária, tramitado com posterioridade ao processo de incapacitação, a petição do representante legal do incapaz, ouvida a opinião de dois especialistas, do Ministério Público e mediante prévio exame do incapaz.

4. Exigências legais à autorização de métodos contraceptivos invasivos em enfermos mentais irreversíveis:

    

- É necessário que o enfermo padeça de uma deficiência psíquica grave e irreversível que leve à falta de discernimento e de autogoverno, devidamente avaliada por um minucioso exame pericial médico.  Trata-se de uma análise orgânica cognitiva na qual o enfermo, e a família responderá um questionário preestabelecido, art. 759.1[4] .

- O exame do suposto incapaz pelo juiz:  é uma audiência obrigatória e muito importante, na qual o juiz irá aquilatar o grau de consciência do enfermo e a repercussão da doença na percepção da realidade e o grau de dependência para a realização das tarefas básicas da vida diária.

- O laudo do médico perito: deverá estar regulamentado pela lei de Enjuiciamiento Civil espanhola - Ley nº 1/2000 de 7 de enero. Tal legislação estabelece no artigo 759.1, a imprescindibilidade da perícia médica. Contudo, não exige que o perito seja um especialista na enfermidade que padece o doente, mas, efetivamente, em se tratando de enfermos intelectuais, são os psiquiatras que examinam a pessoa.

- Audiência dos parentes mais próximos: O juiz escutará as pessoas que convivem com o enfermo; mesmo que não tenham grau de parentesco, tomará conhecimento dos hábitos e costumes do doente, procurará saber como o enfermo se comporta em seu entorno, de acordo com o estabelecido no art. 759[5], da lei de enjuicimiento civil.

Os procedimentos judiciais de esterilização na Espanha estão regulamentados pelo livro IV - da Ley de Enjuicimiento Civil, mais especificamente os artigos 748 e os seguintes que regulamentam os procedimentos especiais de jurisdição voluntária.

O juiz inicialmente competente é o de primeira instância do domicílio do incapaz (incapacitado judicialmente) ou do enfermo. O processo tramitará sob o juízo verbal, que é o procedimento mais rápido; em média, os processos de incapacitação e adoção de métodos contraceptivos invasivos duram em torno de três meses[6].  Da decisão caberá recurso de reposição para o tribunal em 20 dias. Serão, durante o processo, sempre obrigatórias, as vistas processuais ao Ministério Fiscal. A legitimação para requerer a adoção de métodos contraceptivos invasivos poderá ser: do próprio incapaz, do cônjuge ou companheiros, descendestes ou ascendestes e irmãos.

5. Pesquisas diretas, casos práticos:

 Em uma pesquisa direta realizada do fórum de Salamanca, constatou-se que a maioria dos casos de petição de esterilização de enfermos mentais irreversíveis é requerida pelos próprios pais logo depois da maioridade do enfermo. A Espanha permite a incapacitação aos menores de idade, desde que a enfermidade seja permanente e persista depois da maioridade, conforme o estabelecido no art. 201, do Código Civil:

Os menores de idade poderão ser incapacitados quando concorra com eles causa de incapacitação e se preveja razoavelmente que esta persistirá depois da maioridade. (tradução nossa)

      Caso Sophia:

Nesse caso, tratou-se de pedido de esterilização judicial de uma adolescente de 17 anos[7], representada no processo por seus pais, sendo a enferma portadora de uma doença neuropsíquica grave congênita que desencadeia um acentuado retardo mental. O laudo médico do Centro Base de Atención a Personas com Discapacidad de Castilla y León - informou que: A enferma não fala, somente alguns monossílabos, utiliza linguagem de sinais, precisa da irmã para se fazer entender, frequenta o colégio, não tem namorado e não gosta de crianças.

   Comprovada a grave deficiência irremediável, o tribunal concluiu pela autorização da esterilização com a seguinte argumentação:

 O preceito exige garantias para que a concessão da autorização judicial á esterilização tenha por escopo o princípio do melhor interesse do incapaz que é prioritário e cujos pré-requisitos são: “A verificação da grave deficiência psíquica, exploração judicial do incapaz e  intervenção do Ministério Fiscal”.

Nas provas praticadas resulta que a menor padece um diagnóstico compatível com retraso mental e transtorno da fala, que a impede de compreender o alcance das relações sexuais, por conseguinte o sentido da procriação e o exercício da maternidade responsável. A requerente tem 17 anos, está desenvolvida fisicamente com características morfológicas sexuais diferenciadas e sem anomalias que a impeçam de engravidar. Dado seu padecimento, carece de controle inibitório da possível atração ao sexo contrário, e as técnicas educacionais são inviáveis; dessa maneira, o método recomendado é a laqueadura tubária.      

 Nessa decisão, o Estado, por  meio do poder judiciário, intercedeu e exerceu seu dever de proteção, tendo ficado transparente a intenção do poder público espanhol em resguardar a integridade da enferma e evitar uma provável gravidez indesejada e inconsciente.

 Caso Amparo:

Trata-se de uma mulher incapacitada por transtorno mental, portadora de esquizofrenia; tem 25 anos, mãe de um filho, fruto de um relacionamento que durou cerca de três meses. A enferma reside com o filho na casa dos pais, e assim, todos os cuidados com o menor são feitos pela família. A solicitação para a esterilização foi requerida pela própria doente. Segundo o informe do médico perito a incapacitada carece de controle sobre seus ímpetos sexuais e é incapaz de compreender o significado da procriação.

Na ata de exploração da audiência de exame da incapaz, ficou evidente que a doente não tem aptidão para exercer a maternidade, declarou não gostar de crianças, mencionou que aos 19 anos foi embora com um feirante, não tem certeza, mas acha que foi deste que engravidou, asseverou que do filho cuidam os pais, fundamentalmente sua mãe, e acrescentando que: Aos 18 anos, ficou grávida porque via que “todas as meninas teriam filhos e não queria ser diferente das demais”. Segundo a enferma, foi uma gravidez desejada, embora não houvesse planejado; manifestou que, um dia, chegou seu namorado bêbado e tiveram relações, mas não tinha consciência que aquela relação poderia dar origem a uma gravidez e ao nascimento de um filho.  Quanto à  possibilidade de mudar de opinião no futuro, negou veementemente. O Tribunal acatou a decisão da incapaz e autorizou a esterilização mediante o método de laqueadura.

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      Nesse caso, o judiciário espanhol entendeu que a maternidade ou paternidade não se resume à capacidade de procriação, mas, sobretudo, à aptidão em assumir obrigações e encargos com o novo ser. Tendo em vista que aqueles que padecem de uma enfermidade mental grave e persistente que lhes têm minimizado a capacidade de discernimento e de escolha, encontrando-se susceptíveis a não terem autocontrole sob seus ímpetos sexuais.

  Caso Pepita:

Trata-se de uma sentença da Audiência Provincial de  Barcelona[8], a doente é portadora da enfermidade mental tipo border-line, limítrofe e encontrava-se sob a tutela da Fundación Privada Catalana Tutelar de Discapacitados Psíquicos, tendo, sido, inclusive, a referida Fundação que havia solicitado a laqueadura da incapaz.

     O julgado de primeira instância negou provimento ao pedido da Fundação, com base no parecer do Ministério Fiscal, que, nesse caso ,exerceu a função de fiscal da lei , defendendo o direito da incapaz em opinar sobre o método contraceptivo ao qual pretendia aderir. A enferma não queria se submeter a uma operação  de laqueadura e,  uma vez que  padece de uma enfermidade mental limítrofe, o que lhe outorga momentos de lucidez e percepção da realidade, o médico forense ponderou a opinião da doente e o método que melhor se adequaria a sua enfermidade e expressou em seu laudo que:

O nível intelectual da enferma é border-line, não existem transtornos delirantes de pensamento. Não se detectam alterações psicopatológicas compatíveis com alterações na esfera psicótica; a enferma sabe o que quer e tem consciência de si mesma e vontade conservada.

Em relação ao método anticoncepcional a ser aplicado, o médico perito assevera que a enferma possui pleno conhecimento dos distintos métodos contraceptivos e vem cumprindo devidamente o tratamento. Informou que a doente faz uso através de uma injeção mensal. Ocorre que tal tratamento foi interrompido por problemas de distribuição gratuita do fármaco pelo governo. Assevera, ainda, que, por se tratar de uma paciente obesa, não é aconselhável a cirurgia, podendo ser substituída pela implantação de um diafragma intrauterino - DIU. Desta feita, o tribunal decidiu considerar a opinião da enferma e a sugestão do médico de substituir o método laqueadura pela implantação do DIU.

A gravidez de uma mulher deficiente psíquica pode ser um fator traumático tanto para o doente quanto para a família devido às oscilações hormonais e as expectativas geradas pelo nascimento do futuro ser,  pode alterar consideravelmente a saúde da mãe ou do pai doente mental, desencadeando o aparecimento mais frequente de surtos e o agravamento da doença. 

Para o doutrinador LETE Del RÍO, expõe com sabedoria:

A razão é que, às vezes, se argumenta por alguns autores, o fato de o doente mental não ter condições de cuidar do filho sozinho, porque da educação podem se encarregar outras pessoas ou instituições, todavia se esquecem, porém, de que a responsabilidade será sempre da mãe ou do pai. Como adverte Simón Lorda: “Com o devido respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, porém este princípio também se traduz na responsabilidade em procurar,  antes de trazer alguém a este mundo,  que se cumpra uma série de condições referentes ao doente e ao meio social circundante, que permita ao futuro ser se desenvolver num ambiente saudável, numa vida harmonizada. Acrescenta que  quiçá os pais com uma deficiência mental incapacitante, ainda que possam criar uma vida biológica, não têm condições de proporcionar uma vida social digna ao filho e, por essa razão, pode ser legítimo impedir-lhes a procriação”[9] »·······.

O objetivo precípuo da lei é garantir a integridade do enfermo mental preservando sua qualidade de vida.  As decisões judiciais foram respaldadas de extrema legalidade e proporcionalidade entre os métodos contraceptivos e a enfermidade.

 Convém ressaltar que todos os procedimentos estudados se referiam aos processos judiciais de esterilização em mulheres; tal fato justifica-se devido às implicações sociais, culturais e econômicas, além das mudanças fisiológicas que uma gravidez pode trazer à mulher enferma mental.

6. A interdição ou incapacitação e adoção de métodos contraceptivos invasivos como critério determinante de proteção:

Rodrigo Bercovitz Cano, em seus comentários ao código civil, enfatiza:

O direito civil nos ensina que, em princípio, toda pessoa maior de idade tem capacidade para atuar com eficácia jurídica em todos os atos da vida civil. Excepcionalmente, algumas pessoas se encontram em uma situação inadequada para cuidar dos seus interesses, por isso se busca sua proteção. Se lhes incapacita para realizar aqueles atos em que se considera que devem ser protegidos, dessa forma lhes nomeia um representante que atue por eles nesses atos que carecem de plena capacidade. Trata-se, pois, de conceder a determinados maiores de idade uma proteção similar a que se concede com caráter geral aos menores de idade, já que, por diversas razões  excepcionais, podem encontrar uma situação de falta de proteção similar aos menores[10].

Tanto a tutela quanto a curatela são figuras de proteção, e o único objetivo para interditar uma pessoa é ampará-la, e a interdição há de ser vista, sempre, como caráter protetor.   

 A convenção de Nova York sobre os direitos das pessoas com deficiência, de 30 de março de 2007, ratificada pelo Brasil através do Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009  no seu preâmbulo, expõe:

 Que mulheres e meninas com deficiência estão frequentemente  mais expostas de sofrer violência; lesões ou abuso os riscos acontecem tanto no lar como fora dele,  inúmeros são os casos de maus-tratos ou exploração de meninas enfermas mentais.

 O artigo primeiro define o conceito político de deficiência:

Pessoas com deficiência são aquelas, que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. 

 O artigo 16º explana que:

 A prevenção, contra a exploração, à violência e o abuso é obrigação do poder público que deverá tomar todas as medidas apropriadas de natureza legislativa, administrativa, social, educacional dentre outras para proteger as pessoas com deficiência tanto dentro como fora do lar.

Nesse mesmo sentido, o artigo 25º reitera que os Estados - Parte reconhecem que as pessoas com deficiência têm o direito de gozar de prioridades especialmente com relação à saúde, sem discriminação baseada na deficiência e adotarão todas as medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso a serviços de saúde, incluindo os serviços de reabiliação, que considerarão as especificidades de gênero, em especial:

Oferecerão às pessoas com deficiência programas e atenção à saúde gratuita ou a custos acessíveis da mesma variedade, qualidade e padrão que são oferecidos às demais pessoas, inclusive na área de saúde sexual e reprodutiva e de programas de saúde pública destinados à população em geral; 

A  nossa Carta Magna  estabelece no art. 6º:

São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

A Constituição brasileira enaltece o princípio do melhor interesse do incapaz diretamente relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana; por isso, os procedimentos judiciais de interdição devem ser revestidos de uma maior celeridade possível e enaltecem o foro privilegiado do domicílio do incapaz, devendo, sempre que possível, ouvir e ponderar a opinião do doente.

 Conforme o ordenamento jurídico brasileiro, estarão sujeitos à curatela[11]:

I - Aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil;

II - Aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade;

III - Os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxico;

IV - Os excepcionais sem completo desenvolvimento mental;

V - Os pródigos.

Para Caio Mário:

O instituto da interdição foi criado sob uma razão moralmente elevada, que é a proteção daqueles que sofrem alguma deficiência juridicamente apreciável, sendo esta a fundamental ideia que o inspira e acentua sua importância. É de suma importância a sua projeção na vida civil, seja a que se refere aos princípios legais definidores, seja na apreciação dos respectivos efeitos no aproveitamento dos atos praticados pelos incapazes. A lei não instituiu o regime da interdição com o propósito de prejudicar as pessoas que padecem de enfermidades; ao contrário, o objetivo é oferecer-lhes proteção no que se refere a sua falta de discernimento; em decorrência disso, ordenamento jurídico procura estabelecer um equilíbrio psíquico quebrado em consequência das condições peculiares dos deficientes mentais[12].

 Tais princípios, do melhor interesse do incapaz e da dignidade da pessoa humana, têm por finalidade igualar as diferenças no tráfico jurídico, de forma que a norma que beneficia um incapaz deve prevalecer sobre as demais.

São princípios universais nas legislações ocidentais; os diversos ordenamentos  procuram buscar a melhor forma de proteger e amparar os deficientes que se encontram em posição jurídica de inferioridade e ratificam, igualmente, o valor da integridade como um bem jurídico protegido.

    

      A lei brasileira 10.216, de 06 de abril de 2001 disciplina a proteção institucional aos enfermos mentais, no art. 2º:

São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;

 E no art. 3º É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais.

A lei 7.853, de 24 de outubro de 1989 que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social estabelece no seu artigo segundo, alínea a:

 A promoção de ações preventivas, como as referentes ao planejamento familiar, ao aconselhamento genético, ao acompanhamento da gravidez, do parto e do puerpério, à nutrição da mulher e da criança, à identificação e ao controle da gestante e do feto de alto risco, à imunização, às doenças do metabolismo e seu diagnóstico e ao encaminhamento precoce de outras doenças causadoras de deficiência;

É relevante salientar que qualquer decisão para aplicar os métodos contraceptivos invasivos, em doentes mentais esteia-se no princípio  que o doente é o titular de seus direitos fundamentais e a aplicação de métodos contraceptivos é uma forma de proteção.

7. Conclusão

Definitivamente a legalização da adoção dos procedimentos contraceptivos invasivos em enfermos mentais irreversíveis é um tema que não se esgotaria em uma tese. No que concerne à proteção ao enfermo mental, nossa legislação ainda é escassa.  São evidentes casos de abuso em que caberia a intervenção do poder público através de uma legislação mais eficiente no que tange a proteção à integridade desses cidadãos.

Segundo o último censo de 2010 do IBGE, os tipos de deficiência existentes no Brasil são: visual, auditiva, motora, mental/intelectual. Para as três primeiras, também se verificou o grau de severidade.

Os resultados revelam que, no Brasil, quase um quarto da população - 23,9% tinham algum tipo de deficiência, o que significa cerca de 45,6 milhões de pessoas são deficientes:

 Deficiências:

 Visual -  35.774.392;

 Auditiva -  9.717,18;

 Motora - 13.265.599;

 Mental/intelectual -  2.611.536. 

Segundo o IBGE, em todos os grupos foi constatado que a maioria dos deficientes é mulheres e a taxa de escolaridade é menor que o resto da população.

Com relação ao assunto estudado, indaga-se: no Brasil há uma política de reprodução assistida às pessoas portadoras de deficiência mental?  E nesse sentido, a referência compreende tanto homens quanto mulheres. E o tratamento oferecido pelo SUS e as Caps - Centros de Atenção Psicossocial efetivamente inseriram o doente à sociedade?

Não identificamos estatísticas oficiais quanto ao percentual de brasileiros por região, que usufruem do Caps e nem o percentual do diagnóstico das enfermidades mais tratadas.

É evidente que uma deficiência mental não pode ser caracterizada como sinônimo de fracasso, tampouco de desonra ou sentimentos de piedade. Muitos deficientes mentais podem perfeitamente ter êxito como pais ou mães, contudo a possibilidade jurídica da concessão da esterilização deveria ser ponderada e seriamente refletida pela sociedade mediante o amparo do legislativo brasileiro.

O direito a viver uma vida sexual prazerosa pertence a todos, bem como o direito de decidir de forma livre e responsável sobre a capacidade no exercício da maternidade ou paternidade. Entretanto, para uma pessoa que sofre de uma grave deficiência mental, tal opção pode ser distorcida pela falta de percepção da realidade, e a prescrição de anticoncepcionais via oral, em muitos casos, não é aceita pelo doente.

Ante a triste realidade do abandono de crianças na sociedade brasileira, especialmente com relação aos filhos de pessoas que sofrem de alguma deficiência intelectual, pensamos que, mediante a inserção dos métodos contraceptivos invasivos e conforme a análise do poder judiciário seria susceptível de estabelecer a maternidade e paternidade consciente e comprometida.

Entendo que o poder legislativo brasileiro mediante a proposta da legalização da adoção de métodos contraceptivos invasivos a enfermos mentais irreversíveis através de um procedimento judicial específico de jurisdição voluntária e especial em que,  cautelosamente, fosse verificada a gravidade da deficiência mental irreversível e a capacidade de entendimento do doente sobre a realidade, melhoraria a qualidade de vida do doente, enalteceria os princípios da dignidade humana, da autonomia da vontade, além de evitar abusos e inaptidão no exercício da maternidade ou paternidade consciente e responsável.


Sobre a autora
Katia Maria Beltrao de Albuquerque

Advogada da Universidade de Pernambuco -UPE.<br>Graduada pela Universidade Federal de Pernambuco.<br>Especialista em Direito Civil e Empresarial pela Universidade Federal de Pernambuco. <br>Doutora em Direito Civil pela Universidade Pública de Salamanca - Espanha.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Uma proposta de Lex Ferenda para o Brasil da ação de esterilização de enfermos mentais irreversíveis adotado na Espanha.

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