A história recente do direito eleitoral é a história do amesquinhamento dos direitos políticos. A pretexto de dar “pureza” ao sistema político, de combater a corrupção, está-se diante de um “direito eleitoral do inimigo”, sendo força populista tanto quanto equivocada, em paralelo ao movimento da Lei e da Ordem de recrudescimento do direito penal e da persecução penal, com retrocessos na efetividade dos direitos e garantias individuais, cujos marcos mais assustadores estão na relativização da presunção de inocência e na diminuição da imputabilidade penal.
Esse movimento, se por um lado é inútil no incremento da qualidade da política ou da diminuição da corrupção, por outro pode causar abalos sistêmicos no regime democrático brasileiro, com a adoção, por exemplo, do malfadado financiamento exclusivamente público de campanhas eleitorais.
O fim do financiamento privado das campanhas políticas termina por criar uma dependência financeira estatal para o funcionamento da democracia representativa. Proíbe-se a doação por organizações não governamentais de cunho ambiental e social, sob o argumento de se coibir a participação dos inimigos comuns de ocasião. Olvida-se que a participação da sociedade civil por meio de doações para as campanhas também é um sinal de saúde da democracia, de envolvimento cidadão, além de ser uma forma legítima de participação política ativa na arena pública. E a quantidade de recursos amealhados também integra a disputa na democracia político representativa.
A rigor, não há qualquer relação entre sistema eleitoral e corrupção. As funções do sistema eleitoral podem ser resumidas em três, conforme Virgílio Afonso da Silva: i) o exercício da soberania; ii) legitimação do poder político, isto é, a geração de uma certa aceitabilidade da relação de poder instaurada com os mandatos; iii) escolha de representantes e governantes. E talvez por esta constatação, ou seja, da ausência de relação entre a corrupção e a limitação do universo de eleitores por critérios morais, como o fez a Lei da Ficha Limpa, na Convenção Interamericana contra a Corrupção, nem na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, inexiste qualquer medida limitadora dos direitos políticos.
Aliás, a Lei da Ficha Limpa, de certo modo, redundou em se anteceder à escolha popular e criar um novo grau (em oposição ao voto direto) para a própria escolha dos candidatos situados em órgãos de classe, autoridades administrativas, tribunais de contas, juízes de direito, aos parlamentos, a decisão precípua sobre a quem deve ser atribuído o poder do povo. A inelegibilidade passa a ser indefinida e esparramada nos meandros dos estamentos burocráticos e forças políticas paroquiais- muito atentas às inelegibilidades convenientemente criadas para afastar opositores. Retirou-se, do sufrágio universal, a possibilidade de escolha direta e, com isso, de aprimoramento das instituições democráticas pelo próprio erro e acerto.
A propósito, a escolha dos vereadores pelos Juízes – após a eleição – está no Título 67 do Livro Primeiro das Ordenações Filipinas de 1603 que regularam as eleições brasileiras até o século XIX: “E para servirem uns com os outros, o juiz juntará os mais convenientes, assim por não serem parentes, como os mais práticos com o que o não forem tanto, havendo respeito às condições e costumes de cada um, para que a terra seja melhor governada”.
Esse malsinado populismo eleitoral é uma grande ameaça ao Estado Democrático e de Direito, porque apequena a democracia, seus atores, seu financiamento e deve ser combatido, porque, em última análise traz consigo uma semente autoritária que desconfia das escolhas do povo. Por isso, é necessário, mais que nunca- a resistência democrática a esse messianismo eleitoral, para que possamos, parafraseando Campos, largar a chupeta de nossa infância e lidar logo com a bigorna da realidade constitucional: o poder emana do povo, cabendo a ele a escolha da representação política.