Denúncia Anônima e a Violação de Domicílio à Luz do RE 603.316/RO do STF

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A violação de domicílio pautada em uma denúncia anônima ou em uma possível prática delitiva que esta no imaginário do agente da autoridade, não pode ser ratificada por eventual estado de flagrância. O Direito não admite condutas aleatórias.

Dentre os temas mais corriqueiros na atuação do Delegado de Polícia tem-se o cumprimento direto de denúncias anônimas por policiais militares (ou outros agentes da Autoridade) ocorridas no interior de domicílios. De acordo com a prática policial e de Polícia Judiciária vemos que após minuciosas buscas realizadas pelos agentes, muitas vezes, são exitosos em localizar objetos que caracterizam o estado de flagrancial daquele que teve seu domicílio violado.

Este é um tema que atormenta o dia-a-dia da Autoridade Policial, pois necessário contrapor o direito constitucional da inviolabilidade do domicílio, e suas exceções, especificamente a violação em virtude do estado de flagrância do cidadão. Para ilustrar, temos a redação do art. 5°, XI da Constituição Federal, o qual estabelece, inclusive, as exceções ao próprio direito a inviolabilidade do domicílio:

Art. 5°, XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

De se notar que após um grande período onde vigorou a ditadura militar foi necessário que o constituinte de 1988 protegesse o cidadão do próprio arbítrio do Estado, garantindo, ao máximo, os direitos daquele em face de atuações estatais. Assim resolveu o constituinte por excepcionar (além das hipóteses previstas durante o Estado de Defesa e o Estado de Sítio) quatro hipóteses possíveis para que o domicílio seja violado sem a necessidade expedição de mandado judicial, dentre elas, a existência de flagrante de delito[1], hipótese esta que nos debruçaremos a fim de verificar o real alcance do agente estatal frente à possiblidade da violação de um domicílio para a obtenção de provas.

Mas o que é o estado flagrancial? Conforme se verifica no artigo 302 do Código de Processo Penal, o legislador ordinário estabeleceu três hipóteses flagranciais possíveis, assim entendidas pela doutrina: 1 – flagrante próprio, incisos I e II (está cometendo a infração penal ou acaba de cometê-la); 2 – flagrante impróprio (é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração); 3 - flagrante presumido (é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração).

Acrescenta-se, ainda, a previsão do artigo 303 do CPP quanto ao flagrante em caso de crime permanente, onde “entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência” delitiva do agente.

Diante de tais possibilidades constitucionais da violação do domicílio, necessário trazer ao debate a sua violação em caso de denúncia anônima indicadora de que no interior do domicílio esteja havendo prática criminosa e, para tanto, devemos ter em mente alguns entendimentos já sedimentados pela Justiça brasileira a fim de obtermos um “paradigma” e justificarmos a real intenção deste artigo.

Conforme já entendido pelo Supremo Tribunal Federal em diversos julgados, não pode o Delegado de Polícia instaurar inquérito policial unicamente com base em denúncia anônima. Necessário, para tanto, que haja elementos mínimos previamente apurados pela Autoridade Policial que indiquem, de fato, a ocorrência de uma conduta criminosa que deva ser apurada por meio deste importante instrumento de persecução penal. Este é o teor do HC 106.664, de Relatoria do Min. Celso de Mello:

Ementa: Habeas Corpus – Persecução penal – Delação anônima – Possibilidade – Doutrina – Precedentes – Pretendida extinção do procedimento penal por suposta inviabilidade jurídica da ‘delatio criminis’ anônima – Inadmissibilidade, na espécie, do encerramento sumário da investigação penal – Correta adoção, pela Autoridade Policial, de prévia e sumária apuração da conduta delituosa objeto da ‘notícia criminis’ anônima – Observância, pela Polícia Judiciária, da diretriz jurisprudencial firmada pelo Supremo Tribunal Federal em tema de delação anônima – Consequente inocorrência, no caso, de situação configuradora de injusto constrangimento – Pedido indeferido.

Pois bem, se a Autoridade Policial, leia-se, Delegado de Polícia[2], sequer pode instaurar inquérito policial com base denúncia anônima, muito menos poderia violar um domicílio com base em tal delatio criminis.

E qual seria a conduta adequada quando recebida uma denúncia anônima referente à prática de um crime no interior de uma residência. Ora, o próprio STF já entendeu que cabe uma apuração preliminar a fim de verificar a veracidade dos fatos e, somente após tal apuração, é que poderá ser instaurado inquérito policial ou, em caso da visível ocorrência de prática flagrancial, violar o domicílio e prender o suspeito.

Objetivando esclarecer o tema, suponhamos que haja uma denúncia anônima de que certa quantidade de drogas esteja escondida em uma residência. Diante de tal informação a polícia militar, ou outros agentes da autoridade, desloquem uma equipe ao endereço mencionado na denúncia para verificar a situação. O que deveria ser feito?

Em tese, caberia aos agentes guardarem o local, informar o Delegado de Polícia da circunscrição respectiva que verificará as informações contidas na denúncia anônima e, havendo a possibilidade da denúncia ser procedente, representar ao Juízo pela concessão de mandado de busca e apreensão no imóvel o qual, se deferido, cumpri-lo.

Poderão os agentes, também, caso seja notória a prática da infração penal, ingressar no domicílio e deter o criminoso, sendo desnecessária a representação por mandado de busca e apreensão feita pelo Delegado de Polícia em razão da autorização dada pela Constituição Federal.

Ocorre que, na prática, o cumprimento de denúncias anônimas recebidas pelos agentes da autoridade não vem sendo realizado de tal forma, bem como sabemos que é quase que inviável a obtenção imediata de um mandado de busca e apreensão junto ao Poder Judiciário, não só pela grande extensão das metrópoles brasileiras, mas também pelo assoberbamento da própria Justiça.

Desta feita, verifica-se da prática policial que, ao receber uma denúncia anônima sobre a prática de um crime do qual, aos olhos de alguém passe despercebido, agentes da autoridade tem a contumaz voracidade de ingressar no domicílio indicado na denúncia a fim de localizar o entorpecente ou qualquer outro objeto citado no papel apócrifo.

Tal conduta remonta à uma verdadeira “loteria” quanto à localização do objeto ilícito, violando-se o domicílio do cidadão sem a devida certeza de que naquele local há a prática de uma conduta criminosa que possibilite tal violação (o que pode ser extraído da análise dos artigos 5°, XI da CF c/c art. 303 do CPP, por exemplo - flagrante em crimes permanentes).

Data máxima vênia a entendimentos diversos, e apenas desejando garantir direitos aos cidadãos, tal postura não pode ser admitida em um Estado Democrático de Direito. Por mais que a segurança seja um direito fundamental do Homem (art. 5°, “caput” da CF), este não pode ser sobreposto a inviolabilidade do domicílio de forma aleatória, fundamentando-se exclusivamente de informações anônimas recebidas. E mais, conforme dito no julgado n° 70054828090/RS, de 29.05.2014

A lei não permite atalhos e (...) somente no caso de haver certeza da prática de ilícito penal é que fica autorizada a exceção do inciso XI do art. 5º da Constituição. O flagrante delito que autoriza o ingresso deve ser induvidoso, certo, existente e previamente constatado, mediante gritos ouvidos de pessoas que estão sofrendo violações, ou visualizações feitas, ou, em outros casos, pela identificação de pessoas do exterior que relatam, por escrito, a prática de delito no interior da casa, naquele exato momento. Qualquer coisa em sentido contrário demanda a necessária investigação e obtenção de mandado de busca e apreensão. Deste modo, corolário lógico é a ilicitude da prova e, com sua inutilização, impõe-se a absolvição da acusada por ausência de provas da existência do fato [1].

No mesmo sentido, o Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Geraldo Prado, afirmou na Apelação Criminal 2009.050.07372 que

O ingresso não pode decorrer de um estado de ânimo do agente estatal no exercício do poder de polícia. Ao revés, é necessário que fique demonstrada a fundada – e não simplesmente íntima – suspeita de que um crime esteja sendo praticado no interior da casa em que se pretende ingressar e que o ingresso tenha justamente o propósito de evitar que esse crime se consume. Se assim não fosse, seria permitido ingressar nas casas alheias, de forma aleatória, até encontrar substrato fático, consistente em flagrante delito, capaz de ensejar a formal instauração de procedimento investigatório criminal. Mais que isso, seria incentivar que a autoridade policial assim fizesse e, com a intenção de se livrar de uma eventual imputação de abuso de autoridade, encontrasse à força o estado de flagrância no domicílio indevidamente violado.

No entanto, objetivando não analisar o tema apenas unilateralmente, argumenta-se em sentido contrário, que a permanência delitiva valida a violação de domicílio, vez que o artigo 303 do Código de Processo Penal estabelece que tal permanência caracteriza, também, a permanência do estado de flagrância.

            Tal questão exposta é simples de ser verificada quando o fato saltar aos olhos do agente policial que, verificada a situação flagrancial de imediato, confirma as informações anônimas recebidas, podendo, desta forma, utilizar-se da relativização constitucional no tocante a violação do domicílio e realizar a detenção daquele que está em flagrante delito.

            Ocorre que a problemática relacionada ao flagrante de crimes permanentes no contexto de verificação de denúncia anônima e consequente violação de domicílio não pode ser vista de forma tão simples. Conforme já dito, a pratica nos remete a uma anterior violação do domicílio com a consequente localização de objetos ilícitos que tornam a ação legítima, e tal fato (por mais que seja socialmente aceito e incentivado) não pode ser acobertado pelo Direito. Este é justamente o argumento trazido pelo Juiz Alexandre de Moraes Rosa do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina ao discorrer sobre o tema:

(...) Isso porque nos crimes permanentes há confusão lógica na interpretação prevalente. De fato, o art. 303 do CPP autoriza a prisão em flagrante nos crimes permanentes enquanto não cessada a permanência. Entretanto, a permanência deve ser anterior à violação de direitos. Dito diretamente: deve ser posta e não pressuposta/imaginada. Não basta, por exemplo, que o agente estatal afirme ter recebido uma ligação anônima, sem que indique quem fez a denúncia, nem mesmo o número de telefone, dizendo que havia chegado droga, na casa “x”, bem como que “acharam” que havia droga porque era um traficante conhecido, muito menos que pelo comportamento do agente “parecia” que havia droga. É preciso que o flagrante esteja visualizado ex ante. Inexiste flagrante permanente imaginado. Assim é que a atuação policial será abusiva e inconstitucional, por violação do domicílio do agente, quando movida pelo imaginário, mesmo confirmado posteriormente. A materialidade estará contaminada pelos frutos da árvore envenenada. http://www.conjur.com.br/2014-ago-01/limite penal-mantra-crime-permanente-entoado-legitimarilegalidades-flagrantes (acesso em 26.05.2015).

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Vale ressaltar que nos dias 04 e 05 de novembro de 2015, ao apreciar o tema, o Plenário do Supremo Tribunal Federal em análise do RE 603.616/RO, em sede de repercussão geral, fixou o entendimento de que:

 A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.

De uma simples leitura da tese fixada pelo Pretório Excelso pode levar ao equivocado entendimento de que na presença de fundadas razões já está legitimado o ingresso no domicílio. Todavia, não foi este o entendimento exposto pelo Ministro relator Gilmar Mendes, sob pena de ocorrer um esvaziamento da inviolabilidade domiciliar, contrariando a interpretação sistemática da própria Constituição e tratados de direitos humanos dos quais o país é signatário.

A entrada forçada em domicílio, sem justificativa prévia, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância posterior ao ingresso que justificará a medida. Deste modo, a proteção contra a busca arbitrária exige que a diligência seja avaliada com base no que se sabia antes de sua realização e não depois[3].

Além disso, ressalta o ministro que o controle da atuação por um terceiro imparcial pode ser a priori, quando são analisadas as hipóteses que possibilitam a expedição de mandado de busca e apreensão ao Delegado de Polícia, ou a posteriori. Para o Ministro[4]:

No controle a posteriori, a legislação permite aos agentes da administração desde logo atuar, realizando a medida invasiva. Apenas depois de sua concretização, o terceiro imparcial verifica se os agentes da administração agiram de acordo com o direito, analisando se estavam presentes os pressupostos da medida e se sua execução foi conforme o direito.

Este controle posterior, inicialmente, é realizado pelo Delegado de Polícia, autoridade legítima que recebeu a missão constitucional de efetuar a análise do estado de flagrância das situações que lhe são apresentadas. Para tanto, lhe foi concedida a independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária[5], possuindo autonomia intelectual para interpretar o ordenamento jurídico e decidir, com imparcialidade, isenção e de modo fundamentado[6].

Assim, vê-se que a atividade do Delegado de Polícia quanto aos atos de polícia judiciária, é motivada pela sua livre convicção, respeitados, naturalmente, os limites da legalidade.

Evidente que não pode o Delegado de Polícia agir fora dos ditames da lei, porém, a atividade do Delegado de Polícia implica em verdadeira análise técnico-jurídica dos fatos, a qual não se limita a um simples juízo de tipicidade, mas envolve certo grau de discricionariedade, realizando uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico.

Além disso, a decisão emanada pelo Delegado de Polícia também é submetida a controle jurisdicional em virtude do disposto no artigo 5º, LXII, da Constituição Federal que determina à imediata comunicação dos fatos a autoridade judiciária, que analisará a legalidade da prisão em flagrante decretada pela autoridade policial.

De mais a mais, entenderam os Ministros no julgado já mencionado que:

Se o policial vier a ser indagado, poderá pretextar que soube da localização da droga por informações de inteligência policial. De qualquer forma, a solidez das informações que levaram ao ingresso forçado não é analisada. Já afirmamos que essa solução é insatisfatória. Em consequência, resta fortalecer o controle a posteriori, exigindo dos policiais a demonstração de que a medida foi adotada mediante justa causa.

Ou seja, que havia elementos para caracterizar a suspeita de que uma situação que autoriza o ingresso forçado em domicílio estava presente. O modelo probatório é o mesmo da busca e apreensão domiciliar – fundadas razões, art. 240, §1º, do CPP. Trata-se de exigência modesta, compatível com a fase de obtenção de provas.

É amplo o leque de elementos que podem ser utilizados para satisfazer o requisito. O policial pode invocar o próprio testemunho para justificar a medida. Claro que o ingresso forçado baseado em fatos presenciados pelo próprio policial que realiza a busca coloca o agente público em uma posição de grande poder e, por isso mesmo, merecerá especial escrutínio. No entanto, ao ouvir gritos de socorro e ruídos característicos de uma briga vindos de dentro de uma residência, o policial tem fundadas razões para crer que algum crime está em andamento no ambiente doméstico.

Não se deve exigir que busque confirmação adicional para agir. Por outro lado, provas ilícitas, informações de inteligência policial – denúncias anônimas, afirmações de “informantes policiais” (pessoas ligadas ao crime que repassam informações aos policiais, mediante compromisso de não serem identificadas), por exemplo – e, em geral, elementos que não têm força probatória em juízo não servem para demonstrar a justa causa.

A esse respeito, registro que a jurisprudência desta Corte (Inq. 1957, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ. 11.11.2005) não vê em elementos desprovidos de valor probatório força suficiente para adoção de medidas invasivas.

Conforme acima mencionado, os precedentes vão no sentido de que nem mesmo investigações criminais podem ser instauradas sem um mínimo de indícios de ocorrência da infração, o que dizer, então, do ingresso domiciliar com base em uma denúncia que sequer traz a identificação de seu denunciante.

A locução “fundadas razões” demandará esforço de concretização e interpretação. Haverá casos em que o policial julgará que dispõe de indícios suficientes para a medida e tanto o Delegado de Polícia, quanto o Magistrado decidirão em contrário.

O fundamental é que se passa a ter a possibilidade de contestação de uma medida de busca e apreensão que deu resultados, assegurando-se à defesa a oportunidade de impugnar, em um processo contraditório, a existência e suficiência das razões para a medida sendo a validade da busca testada com base no que se sabia antes de sua realização, não depois.

Diante dos argumentos trazidos bem como à luz do entendimento do Supremo Tribunal Federal, temos que a obtenção de provas baseadas no cumprimento de denúncia anônima com patente violação ao domicílio, ou seja, sem que os agentes policiais atuem dentro das regras constitucionais e legais estabelecidas, e ainda que seja encontrado fortuitamente objeto ilícito que caracteriza a permanência delitiva, acarreta não só a possível prática delituosa por parte de tais agentes, mas também maculam toda a persecução penal, já que a Constituição Federal é clara ao estabelecer em seu artigo 5°, LVI que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

Já dentro do tema relacionado à ilicitude das provas, o artigo 157 do Código de Processo Penal estabelece que “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”, motivo pelo qual se torna patente a nulidade de todas as provas obtidas com seu encontro fortuito e, consequentemente, sujeitar-se-ão ao incidente de ilicitude da prova, o qual, concluído que as provas foram obtidas de forma contrária às normas constitucionais ou legais, serão desentranhadas dos autos e inutilizadas.

Desta feita, diante de tal quadro, entendendo que não havia fundadas razões, caberá ao Delegado de Polícia após analisar o fato e concluído que a obtenção da prova capaz de ensejar a lavratura do auto de prisão em flagrante delito, nos moldes do artigo 303 do CPP, são ilegais, deverá:

1 – registrar os fatos e fundamentar os motivos da não realização do auto de prisão em flagrante pela prática de crime permanente; 2 – apreender os objetos/documentos em auto próprio; 3 – verificar se houve dolo no tocante à conduta dos agentes que atuaram no caso, a fim de ser investigado eventual prática de crime de violação de domicílio e de abuso de autoridade; 4 – instaurar inquérito policial, juntar os documentos/laudos relacionados aos objetos apreendidos e remeter os autos ao Juízo a fim de que seja o magistrado cientificado e, caso entenda que as provas foram obtidas de forma ilícita, deverá com base na representação ofertada pelo Delegado de Polícia e ouvido o Ministério Público, instaurar o incidente de inutilização de tais provas.

            Notemos, ainda, que há quem sustente que o Delegado de Polícia não possui tal capacidade postulatória, o que deve ser afastado quando estamos diante de uma situação de nítida violação constitucional. Isto porque o Delegado de Polícia, segundo o Ministro Celso de Melo, “é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça[7].”

Deste modo, não se mostra razoável, tampouco justificável, que seja aceita uma ilegalidade prosseguindo-se com trabalhos de polícia judiciária em flagrante violação ao ordenamento jurídico, sob pena de retornarmos a um antigo Estado policialesco totalmente incompatível com o Estado Democrático de Direito conquistado com a promulgação da Constituição Federal vigente.

            Portanto, diante do todo o exposto, deve-se ter em mente que Direitos Humanos Fundamentais, ainda que relativos, somente podem ser violados dentro da estrita legalidade, caso contrário a Humanidade não teria deixado a barbárie para formar uma sociedade regida por leis que devem ser obedecidas por todos, regendo, inclusive, as atuações estatais.

           

Bibliografia:

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 12ª Edição. São Paulo. Editora dos Tribunais. 2013.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 13ª Edição. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris. 2010.

SANNINI NETO, Francisco. Inquérito Policial e Prisões Provisórias: teoria e prática de polícia judiciária. 1ª ed. São Paulo: Ed. Ideias & Letras. 2014.

SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26ª edição. Editora Malheiros. 2005.

http://www.conjur.com.br/2014-ago-01/limite penal-mantra-crime-permanente-entoado-legitimarilegalidades-flagrantes (acesso em 26.05.2015)

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciarepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=3774503&numeroProcesso=603616&classeProcesso=RE&numeroTema=280 (acesso em 05.03.2016).


{C}[1]{C}“APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO. PROVA ILÍCITA. Inviolabilidade do domicílio. Não restou demonstrada a situação de flagrante delito apta a excepcionar a proteção conferida por força do artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal. Havendo suspeita da prática de delito em algum domicílio/residência é indispensável a prévia obtenção de mandado judicial de busca e apreensão. A lei não permite atalhos, nesse caso e, somente no caso de haver certeza da prática de ilícito penal é que fica autorizada a exceção do inciso XI do art. 5º da Constituição. O flagrante delito que autoriza o ingresso deve ser induvidoso, certo, existente e previamente constatado, mediante gritos ouvidos de pessoas que estão sofrendo violações, ou visualizações feitas, ou, em outros casos, pela identificação de pessoas do exterior que relatam, por escrito, a prática de delito no interior da casa, naquele exato momento. Qualquer coisa em sentido contrário demanda a necessária investigação e obtenção de mandado de busca e apreensão. Deste modo, corolário lógico é a ilicitude da prova e, com sua inutilização, impõe-se a absolvição da acusada por ausência de provas da existência do fato. Não fosse suficiente isso não há prova para condenação. A recorrente não se encontrava na residência na ocasião da prisão de Simone, que havia sido denunciada mas foi absolvida. O usuário abordado, que não foi ouvido em juízo, afirmou na fase policial que adquiriu drogas de uma das filhas de Ana. APELO PROVIDO. ABSOLVIÇÃO”. (Apelação Crime Nº 70054828090, Tribunal de Justiça do RS - 29/05/2014)


[1] Também é admitida tal modalidade pelas constituições da Alemanha (§13, 2.), de Portugal (art. 34), da Espanha (art. 18, 2.), do Japão (arts. 33 e 35), do Paraguai (art. 34) e da República de Angola (art. 33).

[2] Art. 2º

   §1º. Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.

[3] Esse princípio é adotado pelo direito norte-americano, na medida em que a expedição de mandados não será dispensada, salvo em circunstâncias exigentes – “exigent circunstances”, as quais são as razões que levariam uma pessoa razoável a crer que a entrada era necessária para prevenir o dano aos policiais ou outras pessoas, a destruição de provas relevantes, a fuga de um suspeito, ou alguma outra consequência que frustre indevidamente esforços legítimos de aplicação da lei (United States v. McConney, 728 F. 2d 1195, 1199 (9th Cir.), cert. denied, 469 U.S. 824)

[4] STF - RE 603.616/RO – Rel. Ministro Gilmar Mendes.

[5] Artigo 140, §3º, da Constituição do Estado de São Paulo. Além de São Paulo, a independência funcional dos Delegados de Polícia está prevista nas Constituições dos Estados do Espírito Santo, Tocantins, Amazonas, Santa Catarina. Além disso, os estados de Mato Grosso do Sul e Pernambuco possuem tais disposições em suas leis complementares.

[6] Artigo 1º, §2º, da LC 1.152/11.

[7] HC 84548/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 21.6.2012.

Sobre os autores
Raphael Zanon Silva

Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009), pós-graduação em Direito Público pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus (2011) e pós-graduação em Direito Penal pela Escola Paulista de Magistratura-SP (2014). Também é pós-graduado em Direito Processual Penal pela Escola Paulista de Magistratura-SP (2016). Aprovado no exame 140º da OAB, é ex Delegado de Polícia do Estado do Espírito Santo e atualmente é Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo. Na área acadêmica atuou como Professor de Direito Penal junto à Anhanguera Educacional, e como professor convidado do Curso Complexo Andreucci de Ensino. É professor concursado da Academia da Polícia Civil do Estado de São Paulo.

Rodolfo Luiz Decarli

Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo. É professor de Direito Penal e Processual Penal junto à Anhanguera Educacional e professor assistente de Direito Processual Penal junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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