O consentimento como base de legitimidade da norma internacional

09/07/2015 às 17:20
Leia nesta página:

No plano internacional, o princípio do consentimento fundamenta e confirma a soberania dos Estados, os quais apenas ficam submetidos às normas internacionais desde que de forma consentida, aceite por um ato de governo a se vincular a norma internacional.

O Direito Internacional Público se fundamenta em um sistema jurídico autônomo, em que há uma ordenação de relações entre Estados dotados de soberania. Este sistema jurídico é fundamentado pelo princípio do consentimento. A soberania é uma característica fundamental do Estado pois representa a independência do Estado em questões de política interna e externa.

O que se observa é que as normas fundamentais dos Estados mantém com veemência em seus textos a soberania. No plano internacional, o princípio do consentimento fundamenta e confirma a soberania dos Estados, os quais apenas ficam submetidos às normas internacionais desde que de forma voluntária e consentida, aceite por um ato de governo a se vincular a norma internacional. Um Estado se obriga no sistema internacional somente se houver seu consentimento em formalizar este vínculo jurídico.

O sistema internacional contemporâneo, com sua característica descentralizada, observa seus integrantes dizer as normas de composição entre o direito internacional e o direito interno. Para o Estado soberano, a constituição nacional representa a base da norma jurídica convencional e, assim, os textos constitucionais não desprezariam o ideal de segurança e estabilidade da ordem jurídica no sentido de se subpor aos compromissos exteriores do Estado. É necessário que se preserve a autoridade da lei fundamental do Estado, ainda que isto signifique a prática de um ilícito por este no cenário externo.

No atual contexto, o conceito tradicional de soberania vem sendo analisado no sentido de se ponderar que a soberania não é absoluta e ilimitada.  É certo que não se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior e só se põe de acordo na construção da ordem internacional, e na fidelidade normativa dessa ordem. Atributo fundamental do Estado, a soberania o faz titular de competências que, precisamente porque existe uma ordem jurídica internacional, não são ilimitadas.

Na convivência da sociedade internacional o pressuposto dos limites da soberania é fundamental. Há uma crescente e contínua de criação de organismos e normas internacionais coercitivas, em especial em relação à proteção internacional dos direitos humanos, considerando que os interesses das comunidades globais passaram a ser o fim dos Estados e de toda uma sociedade internacional organizada. Neste contexto, as discussões giram em torno dos limites e da preservação da soberania dos Estados diante de conflito de direito interno e normas e decisões internacionais. 

No Brasil, por exemplo, em 1979 foi aprovada a Lei n. 6683-Lei de Anistia que visava impedir a punição de todos aqueles que praticaram crimes políticos ou praticados por motivação política durante o regime militar. Os militares que praticaram crimes políticos e causaram o desaparecimento de políticos também estariam livres de qualquer tipo de perseguição penal. Em 2008 o Conselho Federal do OAB ajuizou uma ADPF perante o STF requerendo que referida lei fosse interpretada no sentido de não favorecer os crimes comuns praticados por agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar.

O Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a ADPF 153, declarando que a Lei de Anistia não teria perdido a sua validade jurídica, de modo que os crimes praticados por militares com motivação política durante a ditadura foram anistiados, não podendo os seus autores serem processados ou condenados criminalmente.

Ocorre que a Corte Interamericana de Direitos Humanos- CIDH ao julgar, em novembro de 2010, o caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), decidiu que as disposições da Lei de Anistia Brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo pelo Brasil no ano de 1992. A CIDH decidiu que:

Este Tribunal estabeleceu em sua jurisprudência que é consciente de que as autoridades internas estão sujeitas ao império da lei e, por esse motivo, estão obrigadas a aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico. No entanto, quando um Estado é Parte de tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, inclusive juízes, também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos. O Poder Judiciário, nesse sentido, está internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no marco de suas respectivas competências e das regulamentações processuais correspondentes. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não somente o tratado, mas também a interpretação que a ele conferiu a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana.[1]

De um lado, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em substancioso julgamento, que a Lei de Anistia era compatível com as normas da Constituição Federal de 1988 e não possuía vício jurídico. De outro lado, decidiu a CIDH que quando um Estado aceita e é Parte de um tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, inclusive seus juízes, também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade.

Diante do conflito, na ocasião, o Ministro Marco Aurélio afirmou a necessidade de obediência ao julgamento do STF, não podendo afrontá-lo para seguir a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Afirmou que “trata-se de uma decisão que pode surtir efeito ao leigo no campo moral, mas não implica cassação da decisão do STF. Quando não prevalecer a decisão do Supremo, estaremos muito mal”. O Ministro Ayres Britto afirmou que prevalece a decisão do Supremo, mas entendeu a situação ímpar em que se encontra o Brasil: "é uma saia-justa, um constrangimento para o País, criado pelo poder que é o menos sujeito a esse tipo de vulnerabilidade, ou seja, o Judiciário[2]".

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

É fato que há situações de pressão nos Estados que visam sua convivência internacional. A afirmação da soberania tem uma dimensão interna e uma dimensão externa. A afirmação da soberania em relação aos outros Estados implica na independência, no reconhecimento de outras unidades políticas juridicamente iguais e soberanas. Logo, tem-se a soberania em sua dimensão interna e a soberania como sinônimo de independência, que reconhece a igualdade jurídica dos Estados na ordem internacional. Os Estados estão vinculados à sua própria vontade, pois são ordens jurídicas independentes e soberanas.

A sociedade internacional é uma sociedade de coordenação, não havendo poderes supranacionais. Logo, a soberania faz com que os Estados possam praticar o Direito Internacional com a ideia de que apenas o consentimento pode obrigar um Estado a fazer ou não fazer algo. Não é possível que normas obriguem os Estados soberanos, apenas a vontade nacional quando, por meio do consentimento, faz nascer para o Estado algum dever.

Referências Bibliográficas:

[1] Parágrafo 176,  Caso Guerrilha do Araguaia, Corte Interamericana de Direitos Humanos

[2] Jornal Estadão, dia 16.12.2010.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Mariane Morato Stival

Doutora em Direito pelo Centro Universitário de Brasília com estágio doutoral na Universidade Paris 1- Sorbonne. Pós-doutoranda no Programa de Pós Graduação em Sociedade, Tecnologia e Meio Ambiente da UniEVANGÉLICA. Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília. Supervisora e Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Direito, Professora com atuação no Programa de Mestrado da UniEVANGÉLICA. Pesquisadora Visitante da Universidade Paris 1 – Sorbonne e da CorteEuropeia de Direitos Humanos. Advogada e Escritora.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos