No nosso mundo neofeudalista (plutocrata, oligárquico e, frequentemente, cleptocrata) nem tudo é um mar de rosas. Mas o que importam são os fins, não os meios. A preservação dos nossos interesses está acima de tudo. Para uma organização mais que centenária que sempre viveu, em suas derrapagens criminosas, da “omertà” (que é o silêncio vigente nas máfias), esse negócio de delações premiadas está passando dos limites e fugindo do nosso velho e conveniente controle. Dezessete já foram feitas e agora anunciam mais 5. Onde tudo isso vai parar?
Os melhores “quadros” do nosso clube dominante estão sendo investigados, acusados e condenados. Não respeitam nem sequer os presidentes dos poderes. Recordemos: a prisão não foi feita para os senhores neofeudais. Esse negócio de igualdade perante a lei só vale para os iguais. Nós, os senhores desiguais, estamos acima da lei. Todos os nossos guerreiros (particularmente os da política) já estão em campo (ameaçando advogados, delatores, seus familiares etc.). Desde logo, Catta Preta (a advogada dos delatores) não pode continuar sendo uma pedra no nosso sapato. Convoque-a para a CPI (isso é juridicamente um absurdo, mas o que conta é a pressão), usem as táticas ameaçadoras da máfia e vamos dar-lhe um esculacho público. Outro passo importante seria o fechamento do seu escritório. Nos acusam de usar a moral das gangues, que apregoa o triunfo pela vingança, pela intimidação, pela opressão e para corrupção. Maquiavel ajuda a entender tudo isso.
O moderno pensamento filosófico-político do Ocidente tem como protagonista primeiro precisamente Maquiavel. O Príncipe é considerado um dos cinco livros mais importantes para se conhecer o pensamento político europeu moderno (os outros são: Leviathan de Hobbes,Second Essay de Locke, L´Esprit des lois de Montesquieu e Contract Social de Rousseau). Para ele a política [assim como toda dominação, como a nossa, neofeudal] é radicalmente autônoma diante da Ética ou da Religião. Política, Ética e Religião nem sempre se combinam. Mais importa a realidade (o realismo), o ser (os fatos como eles são), que o dever-ser (as coisas como deveriam ser). Se a Ética diz uma coisa e o pragmatismo político (da dominação) outra, deve o governante seguir o pragmatismo (o realismo) e abandonar todos os preceitos éticos (nesse sentido: Viriato Soromenho-Marques, A era da cidadania, Publicações Europa-América, 1996, p. 17 e ss.).
A condição humana (descrita por Maquiavel em 1513 e que continua mais atual que nunca) caracteriza-se pela contínua busca do poder. O humano (mais singularmente as classes dominantes) o que mais procura é a conquista, a conservação e a expansão do poder: “O desejo de conquistar é uma coisa muito natural e comum, e sempre que os homens que o puderem o fizerem serão louvados por isso, ou (pelo menos) não serão censurados”. Para alcançar e conservar esse poder não importam os meios. Por isso é que se diz que essa “antropologia competitiva, conquistadora e expansiva” do homem é potencialmente belicosa. A violência, a crueldade e a guerra podem ser justificadas (posteriormente), desde que seja mantido o poder.
O líder político [na verdade, todas as classes dominantes neofeudais] não pode nem deve jamais pautar a sua prática diária no governo como o indivíduo orienta seus assuntos particulares: “É tão grande a diferença entre a maneira como se vive e a maneira como se deveria viver que quem trocar o que se faz [o realismo, o pragmatismo] pelo que se deveria fazer [de acordo com a ética e a moral] aprende mais a perder-se do que a salvar-se”. Em outras palavras: se os donos do poder querem se afundar, é só trocarem o pragmatismo realista pela ética. Em pouco tempo perderá o seu Governo (seu domínio) (diz Maquiavel).
Mais ainda: “Quem quer viver exclusivamente como homem de bem não pode evitar perder-se entre tantos outros que não são bons. Portanto, é necessário a um príncipe [a todos que dominam] que queira manter a sua posição aprender a poder não ser bom, e a servir-se ou não disso de acordo com a necessidade”. Em outras palavras: o mundo da dominação é um zoológico natural, quem não souber usar a força do leão e ser astuto como a raposa naufraga.
Mais Maquiavel (para que não haja dúvida de compreensão do nosso pensamento):
1) Nunca, porém, pode o dominante demonstrar (a questão é de aparência) ser favorável à desonestidade, à corrupção, à violência, à crueldade etc. Ele é, por natureza intrínseca do negócio, tudo isso (há exceções, claro), mas não pode evidenciar nada disso (pois senão será odiado e/ou desprezado e perderá o poder, que é o máximo sonho dele);
2) Se o mundo político [e da dominação neofeudal] vive e convive intrinsecamente com toda essa indescritível frouxidão moral (com raras exceções, que existem), é um equívoco levantar contra eles a bandeira da Ética, da Moralidade etc. Nada disso pertence ao mundo deles. É um discurso para quem não escuta! Um dos maiores paradoxos, portanto, é falar em Comissão de “Ética”. Que Ética? Isso é algo que soa estranho aos ouvidos dos dominadores.
3) “Na verdade, quem num mundo cheio de perversos [esse é o mundo neofeudal], não há nenhuma dúvida] pretende seguir em tudo os princípios da bondade [da retidão, da fidelidade etc.], caminha para a própria perdição” (Cap. XV).
4) “… O príncipe desejoso de manter-se no poder tem que aprender os meios de não ser bom e a fazer uso ou não deles, conforme as necessidades” (Cap. XV).
5) As circunstâncias podem conduzir o governante a se afastar de algumas qualidades (se necessário). Mas quando isso ocorre, “cumpre-lhe ser bastante cauteloso para saber furtar-se à vergonha das que lhe ocasionariam a perda do estado [do poder] e, em certos casos, também à daquelas que não lha ocasionariam [a perda do poder]” (Maquiavel, Cap. XV).
P.S.: Observação final: Maquiavel não é um monstro de imoralidade (ele não disse que todos os políticos e os poderosos dominantes devem ser corruptos, ladrões etc.). Ele apenas descreveu o significado da imoralidade, da corrupção, da crueldade e da bandidagem para a política e para a lógica da dominação (ou seja: para a luta pela conquista, conservação e expansão do poder).