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Mercantilismo vivo: comissões e propinas.
Paulo Guilherme Hostin Sämy *
1.1 Mercantilismo ontem e hoje
O reducionismo das teorias históricas e econômicas classificou o mercantilismo como uma época histórica ultrapassada, epopéia de Companhias das Índias Ocidentais fundadas no século XVII, a partir dos países centrais de então: Inglaterra em 1600; os Países Baixos, 1602 e França, 1664. Permaneceram atuantes até meados do século XIX, quando faliram, após séculos de roubo e de pilhagem ancoradas em força militar própria. A Companhia inglesa chegou a ‘conquistar’ da Índia, absurdo corrigido pela História.
A trajetória destas companhias e de seus gestores, hoje reestudada, exibe um nível de corrupção sem precedentes, tônica de atividades mercantis deste quilate, presentes igualmente no mundo contemporâneo, como o caso “Enron” nos Estados Unidos da América, ou agora o caso Petrobras, no Brasil.
O reducionismo histórico identifica, após o mercantilismo, o período industrial, a partir de meados do século XIX, juntamente com capitalismo (dito industrial), sugerindo que aquele período mercantilista foi ultrapassado por novos estágios de organização social. Ledo engano.
O mercantilismo continuou vivo na História econômica, ancorado nas crescentes relações de troca em curso, - vale dizer, todo o PIB – envolvendo os mais variados agentes econômicos, e ainda aprimorando antigas práticas. Na esteira do aperfeiçoamento das operações de troca surgem novos especialistas que se somam aos antigos agentes mercantis e corretores, como vendedores e compradores especializados, lobistas, empresas comerciais e mercantis, 'trading-companies’, enfim, intervenientes de toda a sorte nesta cadeia de troca que remonta à pré-história.
1.2 Códigos Comercial e Civil
O antigo Código Comercial brasileiro de 1850 – de “Dom Pedro Segundo, por graça de Deus” – em seu primeiro capítulo aponta entre as “qualidades necessárias para ser comerciante”, a necessidade de que “se tenha matriculado em algum dos Tribunais do Comércio do Império, e ainda faça da mercancia profissão habitual”. E aquele Código - de uma época histórica cheia de intermediários e corretores nas diversas atividades mercantis do país, parcela da classe média de então – legislava sobre “Corretores” (arts. 36 a 67), “Agentes de Leilões” – arts. 68 a 73 e “Comissão Mercantil” – arts. 165 a 190, alguns dos temas regulados pelo Direito da época.
O novo Código Civil os recepcionou parcialmente, que assim continuam vivos na esfera mercantil: Contrato de Comissão – arts. 693 a 709; Contrato de Agência ou Representação Comercial – arts. 710 a 721; Contrato de Corretagem: arts. 722 a 729.
O mercantilismo continua vivo; apenas não faz mais parte dos estudos do mundo acadêmico, que o vê atirado àquele remoto passado do século XVII, desnecessitando de teses e de formulações que esclareçam e aprimorem seu entendimento e prática nos dias de hoje, sobretudo na área econômica e derivadamente, na jurídica.
1.3 – Comissões ‘por dentro’ e ‘por fora’
Assim, a atividade mercantil, além da real troca de bens ou de serviços, remunera o agente interveniente, com a comissão, corretagem ou mediação, em diferentes percentuais. Comissões ou corretagens perpassam toda a atividade econômica, estipuladas por diferentes agentes: do comércio, do ramo imobiliário ou do financeiro, através de bancos, de Bolsas de Valores e de outros, cada segmento com sua legislação específica. Os bancos hoje cobram comissão até quando atuam na venda de títulos do Tesouro Direto, da qual não participam, ou ainda da custódia destes títulos, sem qualquer esforço, vez que atuam em conjunto com o Tesouro Direto.
O mundo mercantil e o mercantilismo está mais vivo do que nunca e que se dane se é ignorado pela academia contemporânea, ou por suas teses, ou por toda a mídia circundante.
Por outro lado, como as relações de troca remuneram múltiplos corretores, agentes e intervenientes, imagine-se quanto dos valores do PIB está alocado à rubrica das comissões. Poder-se-ia até, na contabilidade nacional, tentar medir este delta importante de despesas, presente no balanço das empresas: comissões pagas “por dentro”.
Entretanto, para não se perder o sabor selvagem da época áurea das Companhias das Índias Ocidentais, sempre existiu, além das comissões “por dentro”, auferidas legitimamente, as comissões “por fora”, senão ilegais ou ilegítimas, pelo menos e em geral não contabilizadas.
Aqui, atrás destas comissões pagas “por fora”, e de difícil identificação de seus praticantes, é que se esconde a corrupção generalizada, praticada no Brasil.
Vão acabar? Não: é da essência do mercantilismo, regime econômico vivo que os teóricos teimam em ignorar.
Mas se fosse melhor estudado o regime mercantil e respectiva distribuição de riqueza via comissões – “por dentro e por fora” – talvez se pudesse concluir que o melhor caminho para reduzi-la e tributá-la, passaria pela possibilidade de melhor se identificar sinais exteriores de riqueza, cuja legislação não parece ser suficiente para coibir a ilegalidade.
1.4 – Comissões “por fora” e propinas – a “associação criminosa”. “Rouba mas Faz!”
De qualquer modo, o sistema mercantilista continua vivo, presente em todas as relações de troca da economia, abastecendo milhares de propinodutos que alimentam o sistema político-econômico do Brasil, uma subreptícia estrutura informal de pagamento de comissões/propinas, cuja ampla extensão só hoje começa a ser diagnosticada e fotografada, com o apoio da Operação Lava-Jato, ancorada em legislação específica que facilitou sua clivagem, a Lei 12.850/2013, cujo objetivo foi o de tipificar o crime de organização criminosa no país. Esta norma foi além e trouxe outras inovações, como a alteração do artigo 288 do Código Penal, retirando os termos "bando ou quadrilha" e criando a figura da “associação criminosa”, formada por grupos de três ou mais pessoas com o fim específico de cometer crimes. E ainda alterou o conceito da “delação premiada” para a “colaboração premiada”, buscando melhor eficácia a este instituto.
A rede – ou a “associação criminosa” - se assemelha a uma estrutura radial ou neuronal, múltipla com vários níveis verticais e horizontais, em cujos pontos nodais atuam os mais variados agentes, recolhendo e transferindo as comissões/propinas auferidas no bolo. Rede em expansão contínua, dando margem ao surgimento de uma fantástica e invisível empresa transnacional de propinas, imenso propinoduto, que bem poderia chamar-se Brasil Propina S.A. E comissões que não pagam imposto e que não são identificadas pelo Fisco.
Não é um saque específico apenas contra a Petrobras, e que tivesse ocorrido umas poucas vezes ao longo de um certo período de tempo. Os delatores oficiais sobre tal saque – seus ex-diretores e também os das empreiteiras atuantes na estrutura de pilhagem -, têm dificuldade até para identificar o ano-base em que a estrutura de pilhagem começou a agir: fazendo oscilar a data entre o ano de 1998 – data da edição do Decreto 2.745/98, para “simplificar” as licitações da Petrobras – e 2003/4, período em que alguns de seus ex-diretores identificaram reuniões em associações de classe para otimizar normas do novo Procedimento Licitatório Simplificado. As ‘aulas’ do ex-diretor Paulo Roberto Costa à CPI da Petrobras são radicalmente emblemáticas de todo este modelo estrutural da Brasil Propina S.A.
Entretanto, o que a Operação Lava-Jato e os procuradores da Suiça têm demonstrado é que a estrutura transnacional da Brasil Propina S/A não ‘opera’ apenas uma empresa de petróleo; avançou sobre o setor elétrico e eletronuclear, ramificando-se por diversas obras públicas cuja liberação de propinas havia sido considerada, até agora, como pontos fora da curva ou do modelo.
O histórico da atuação dos intermediários, caso do delator Youssef, - para citar apenas um nome entre muitos - comprova que a estrutura multirradial ou neuronal da informal Brasil Propina S/A, recua no tempo, alcançando pelo menos o início dos anos 2000, quando o próprio juiz Sérgio Moro atuou no Paraná no caso Banestado, ou mais remotamente, aos tempos das fraudes e propinas ocorridas no Tribunal do Trabalho de São Paulo, estado que tem-nos brindado com nomes de peso no panteão da propina, como o emblemático governador paulista Ademar de Barros, a quem seus propagandistas na campanha à presidência da república, alardeavam o famoso dístico: “Rouba mas faz!!!” (Ver http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/rouba-mas-faz)
1.5 – “Associação criminosa” ou superestrutura nacional da propina. Volume de recursos desviados do país.
Impressionante e significativo, - e os estudiosos de administração podem entender melhor o modelo – é o país possuir tal superestrutura nacional, aberta, sem qualquer governo central, atuando na cobrança e pagamento de propinas ao longo de variados pontos geográficos do país, em diferentes estruturas de produção e de governo, com agentes destacados em seus diversos pontos e capacitados a identificar o projeto ‘propinável’, conegociar a propina com os responsáveis pela aprovação de ambos e transferi-las aos beneficiários, formando uma extensa malha de créditos e débitos de propina que as transferências bancárias permitem identificar parcialmente, mas que a Receita Federal parece não alcançar.
Enfim uma estrutura informal e múltipla, a nível vertical e horizontal, de difícil detecção, em contínua expansão na história econômica brasileira, atuando há muito tempo, e portanto com longa duração temporal, e crescente extensão geográfica.
O belo artigo do Economista Marcos Coimbra no jornal o Monitor Mercantil de 10.09.15 – “Catástrofes Devastadoras” – ao mencionar que “um ‘tsunami’ assola nosso Brasil impiedosamente: a corrupção” – traduz a idéia de que um vulcão de corrupção irrompeu no país, devastando o verde de suas matas, e o ouro de suas minas. Mais do que uma “catástrofe” ou como um ‘tsunami’, o que se tem é a invasão gradual e contínua de cupins e formigas – sempre em expansão -, por não encontrarem um inimigo natural que pudesse eliminá-los, e que poderia ser o Fisco, por exemplo.
Boa parcela dos recursos advindos do país e colocados em paraísos fiscais expressa justamente esta ‘roubalheira’ ocorrida silenciosamente através de décadas, recursos que somados representam hoje, 10% de um PIB brasileiro estimado em 6 trilhões de reais para 2015. Segundo a assessoria do Senador Randolfe Rodrigues, “O Banco Mundial estima que brasileiros detenham, no exterior, ativos que podem chegar a R$ 500 bilhões”, próximos à percentagem acima assinalada.
Atribuir à Operação Lava-Jato o impacto de encolher o PIB de 1 a 2% entre 2015 e 2016, em virtude da desaceleração do setor petrolífero, é pouco, quando comparado à soma de recursos desviados da economia nacional, através de propinas cobradas em concorrências com preços elevados e que auxiliaram a inflar o famoso custo Brasil. E quando muitos empreendedores da iniciativa privada falam do ‘Custo Brasil’, querem falar veladamente da ‘propina’, - que conhecem - inda que os críticos ainda não tenham entendido este refrão. Não são só as artes que recorre a subterfúgios simbólicos.
Como reverter este quadro? Só com uma Receita Federal atuante, apoiada em legislação que lhe permita identificar sinais exteriores de riqueza junto a seus contribuintes, e cobrar-lhes, tanto os impostos devidos, quanto explicações para tais distorções criminais, ao abrigo do Ministério Público.
Mas estariam os legisladores empenhados em melhorar toda esta legislação, que poderia prejudicar a muitos deles? No momento não há ainda uma cultura anti-propina no país, perplexo diante do que vê. Seria um estigma do brasileiro que “gosta de levar vantagem em tudo”? O resultado está aí na fotografia ou na interminável novela de inúmeros capítulos da Operação Lava-Jato: uma estrutura de comissões e propinas conduz o país, como se estivéssemos a viver no Brasil Propina S.A.
Oxalá os frutos destas operação venham a criar raízes e alterar o curso de nossa História política, jurídica e judicial, na medida em que a nação estarrecida toma consciência deste velho e desconhecido problema.