RESUMO
O artigo, que é fruto das discussões travadas durante a primeira fase de uma investigação desenvolvida pelo grupo de pesquisa Exclusão Social, Reconhecimento e Justiça, discute, fundamentalmente, alguns aspectos teóricos das relações entre exclusão social e privação de direitos. O debate diz respeito às questões levantadas por Honneth e Rawls, atinentes ao “reconhecimento” e aos “princípios de justiça”, respectivamente. Sua primeira seção apresenta as correntes teóricas que informam a reflexão, a segunda explora a emergência das questões sociais como a pobreza e a exclusão no debate público. A terceira seção discute mais de perto a questão do reconhecimento. A parte final inicia um debate sobre alguns dos institutos jurídicos (constitucionais e/ou infraconstitucionais), engendrados a partir de 1988, que versam sobre a relação entre pobreza/exclusão e direitos/instrumentos jurídicos.
Palavras-Chave: Exclusão Social; Reconhecimento social e jurídico.
Introdução
Até pouco tempo, costumava-se ouvir a seguinte declaração de um estrangeiro acerca de nosso país: “_O Brasil é a terra do samba, carnaval e do futebol”. Hoje, porém, o estereótipo é um pouco diferente. A economia brasileira se destaca no cenário mundial tanto quanto a violência que assola todas as regiões da nação; isso sem mencionar-se o futebol (7x0...). O fato é que, ano após ano, o Brasil figura no topo da lista dos países mais desiguais do mundo. De uma forma ou de outra, defende-se aqui, a exclusão social e as desigualdades relacionam-se intimamente com a violência.
Em outras palavras, os processos que produzem as discrepâncias econômicas que marcam a nossa sociedade são acompanhados por diversos outros tipos de exclusão, assim como são diversos os modos como são percebidas as condições de vida da população. Nesta perspectiva, este texto discutirá a permanência da experiência de exclusão em diferentes espaços sociais.
Em suma, esta empresa objetiva abordar, em caráter introdutório (a pesquisa está apenas no início) as diferentes modalidades e gêneros de exclusão social, desde aquelas relacionadas ao domínio das condições socioeconômicas até os processos de exclusão responsáveis pela depreciação de formas particulares de vida, que conduzem ao rebaixamento social; à falta de estima social.[4] No âmbito da pesquisa teórica, indaga-se: em que medida os processos de exclusão social estão imbrincados às experiências de rebaixamento, desrespeito ou não reconhecimento? Quais as instâncias de legitimação, de justificação destes processos?
O presente texto, que é fruto das pesquisas bibliográficas, fichamentos e resenhas produzidas a partir dos encontros realizados no nosso grupo de pesquisa, cobriu apenas uma parte da literatura que diz respeito as nossas preocupações intelectuais, mas já são possíveis alguns apontamentos. Posteriormente, uma pesquisa de campo, centrada na aplicação de questionários e entrevistas conversacionais, atenderá aos demais objetivos do trabalho.
Pluralismo Razoável, Reconhecimento e Exclusão Social: uma visão geral.
No que diz respeito aos problemas de pesquisa que interessam ao presente grupo, duas concepções políticas mais gerais foram mobilizadas e orientaram as discussões e produções. Em primeiro lugar, a ideia de pluralismo razoável, no sentido empregado por John Rawls (2002; 2003; 2011). Esta aponta para as exigências de uma sociedade democrática, sobretudo quanto aos critérios de participação dos atores na construção da agenda pública: os critérios de uma “concepção pública de justiça” (cf. SANDEL, 2012).
Em segundo lugar, o “enriquecimento das atribuições jurídicas do indivíduo” é reconhecido, nesta discussão, enquanto conquista inalienável das sociedades democráticas. Com efeito, esta conquista, seu reconhecimento, vincula-se à “concepção moral segundo a qual todos os membros da sociedade devem poder ter assentido por discernimento racional à ordem jurídica estabelecida, deve ser esperada deles a disposição individual à obediência” (HONNETH, 2003, p. 192).
Na experiência do reconhecimento jurídico, diante do enriquecimento anteriormente mencionado, pode-se dizer que, à esteira de Honneth (2003, p. 197), o indivíduo é capaz de se considerar como “uma pessoa que partilha com todos os outros membros de sua coletividade as propriedades que capacitam para a participação numa formação discursiva da vontade” (ver também HONNETH, 2013). Outra esfera de reconhecimento é também exigida dos sujeitos a fim de se construa uma “autorrelação infrangível”: “uma estima social que lhes permita referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas” (HONNETH, 2003, p. 198). Este é o pano de fundo para as reflexões que se darão adiante, especificamente sobre as experiências de exclusão social, desrespeito moral e jurídico: o não reconhecimento (ver também FRASER, 2007; 2009; MATOS, 2014; MELO, 2013; NEVES, 2005).
Axel Honneth (2003; 2013) vislumbra um vínculo entre os processos de não reconhecimento jurídico e a paralisia, a vergonha social e a perda do autorrespeito pelos quais passam as sociedades e indivíduos vilipendiados. Considera ainda que uma outra esfera de reconhecimento é exigida dos sujeitos a fim de construírem uma “autorrelação infrangível”: “uma estima social que lhes permita referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas” (HONNETH, 2003, p. 198). Do que se poderia indagar inicialmente: no Brasil, em que medida as populações mais pobres gozam dessas formas reconhecimento?
Privado de seu caráter transcendente, o conceito de honra deu lugar às categorias de reputação e prestígio social. É em relação a estas duas as categorias que passa a ser medida a estima social que cada indivíduo goza, em face de suas realizações e capacidades. Enfatize-se que as relações de estima social, segundo o autor, sujeitam-se às lutas nas quais os grupos buscam valorizar as suas próprias formas de vida. Trata-se de uma luta por reconhecimento, cujas armas são os meios da força simbólica, a capacidade de os grupos pautarem o debate público. Para tanto, a reputação de seus membros é fator importante. Neste sentido, nas sociedades modernas, a estima social é, antes de tudo, autoestima, o que enseja um tipo de solidariedade que lhe é compatível.
O desrespeito, levando-se em consideração as implicações apontadas por Honneth até aqui, não significa uma violação a um direito tão somente, mas representa uma grave lesão à “identidade da pessoa inteira”. Assim sendo, o autor distingue três tipos de desrespeito: a) aquele vivenciado nos maus-tratos, que destrói igualmente a autoconfiança; b) aqueles radicados nas experiências de rebaixamento, “privação de direitos”; c) a ofensa, relacionada à depreciação de um indivíduo ou conjunto de indivíduos, à estima social, ao seu status (“a degradação valorativa de determinados padrões de autorrealização”), o que afeta a sua autoestima. A liberdade da autorrealização, afirma Honneth, não pode ser alcançada senão com a ajuda de parceiros. Deste modo, “os diversos padrões de reconhecimento representam condições intersubjetivas que temos de pensar necessariamente quando queremos descrever as estruturas universais de uma vida bem-sucedida” (HONNETH, 2003, p. 273). A partir destas premissas, algumas questões devem ser discutidas: que tipos de condição de “rebaixamento”, de desrespeito moral, estão sujeitados os agentes elencados nesta pesquisa?
O debate sobre as relações entre pobreza e direitos humanos, suscitado por Fernanda Doz Costa (2008), apontam caminhos viáveis de superação ou combate às diversas formas de exclusão social a partir da utilização dos instrumentos vinculantes do direito. A autora filia-se, neste debate, às teorias que consideram a pobreza como causa ou consequência de violações de direitos humanos e propõe uma discussão acerca dos instrumentos legais aos quais se poderia recorrer no combate à exclusão social. De qualquer modo, os interesses mais imediatos deste grupo de pesquisa referem-se à seara da pesquisa e da reflexão, não da intervenção. Nesta senda, o presente grupo de pesquisa discutirá as imbricações entre os processos de reconhecimento (HONNETH, 2003) de legitimação ou justificação (RAWLS, 2003) e exclusão social (COSTA, 2008), numa perspectiva teórica (revisão bibliográfica) e empírica (pesquisa de campo).
A Modernidade e a emergência das Questões Sociais
A Idade Média foi marcada por uma inquestionável ideologia que mantinha os pobres e ricos separados por uma “força natural das coisas”, segundo a qual a pobreza era inerente à condição humana, as diferenças existentes entre aqueles com uma condição econômica e social superior e os seus subordinados não eram passíveis de mudanças. Neste caso, o medievo é caudatário da antiguidade. Essa ideia prevaleceu até a Modernidade, quando a questão social começou a desempenhar um papel revolucionário, e passou a ser vista como um problema. Segundo Hannah Arendt (1988, p. 18), a questão social desempenhou imenso papel nas revoluções de motivação econômica porque “os tiranos subiram ao poder com o apoio das camadas simples ou pobres, e que sua maior probabilidade de se conservarem no poder estava no desejo do povo de ter igualdade de condição”.
A esfera pública, no contexto de vida pública, pode ser apreciada fortemente na Antiguidade Grega. Era o espaço da igualdade e da liberdade, completamente desligada das atividades relacionadas à necessidade, à sobrevivência, ao trabalho. Participar da vida pública era tido como uma conquista, algo que ia além das meras necessidades biológicas do homem. Somente podia participar na vida pública aquele considerado cidadão. Percebe-se que a esfera pública era totalmente desvinculada da esfera privada:
Tratava-se da preservação do espaço próprio para o exercício da cidadania, que se constitui em oposição ao domínio privado e a toda associação natural e familiar, ou seja, a tudo aquilo relacionado a trabalho físico, desgastante e brutal próprio do homo laborans e não do cidadão (BODSTEIN, 1997, p.3).
Nesta perspectiva, as questões sociais estão fora do âmbito público, restringindo-se à vida privada, insista-se. Razão pela qual Arendt defende que as Revoluções (burguesas) foram o início das mudanças. Assim, a Revolução Americana tornou-se símbolo de sociedade sem pobres. O seu desenvolvimento tecnológico se tornou uma porta de acesso para as ferramentas que iriam destruir a ideologia de pobreza eterna e natural. Seria o inicio de uma mudança radical das condições sociais.
A modernidade, em outras palavras, quebrou os limites até então existentes entre a esfera pública e a privada, com isso, propiciou a criação de um domínio social. As atividades produtivas, o labor, que antes eram trancafiadas dentro da esfera privada, começam a migrar para o mundo comum, possibilitando a publicização da pobreza, da desigualdade e também da necessidade. A massa oprimida que antes estava sob o manto impenetrável da esfera privada, começa a se inserir na esfera publica, e com isso aspirar sua participação na vida pública.
Consequentemente, o Ancien Règime passa a dar lugar a uma nova sociedade formada por aqueles já considerados cidadãos e aqueles que buscam essa qualificação. Por meio da quebra desse paradigma, questões sociais, como a pobreza, desigualdade, passam do polo da esfera privada para a esfera pública e começam a integrar a agenda pública. A sociedade começa a apreciar essas questões até então desconhecidas. Aqueles trabalhadores da esfera privada, agora pleiteiam direitos, começam a buscar um espaço digno na sociedade.
Neste sentido, afirma Bodstein (1997, p.3), “na modernidade, a categoria social aparece relacionada ao trabalho, à necessidade, à carência, à pobreza e à desigualdade, atributos não do cidadão, mas dos próprios homo laborans”. A esfera pública se vê diante de um confronto entre política e desigualdade. Pela primeira vez na história, surgem com a modernidade, conflitos entre o indivíduo e sociedade e entre esfera pública e privada.
Esses conflitos, de certo modo, são frutos deixados pelas revoluções nos séculos XVII e XVIII. Principalmente com a revolução francesa, 1789, que instaurou os ideais dos princípios da liberdade e da igualdade, juntamente com a Declaração Dos direitos do Homem. Esta revolução foi, sem dúvida, o espelho para a criação do Estado de Direito, do sistema democrático atual. Ocorreu, a partir dessa revolução, a ascensão da questão social no centro do debate político e, consequentemente, institui-se o desafio de se conciliar a questão da igualdade com a miséria e degradação social.
(...) o projeto revolucionário do final do século XVIII eleva a questão social ao centro do debate público, colocando para a modernidade, já de início, o desafio de conciliar a representação de uma sociedade formada de cidadãos iguais em direitos, dilacerada, porém, pelo espetáculo da miséria e da degradação social (BODSTEIN 1997, p. 4).
Revolução representava um movimento cíclico. Isso quer dizer que elas traziam a ideia de restauração e/ou renovação. Era uma troca de comandantes que buscavam restaurar a ordem das coisas.
O alvo dessas revoluções não era uma contestação de autoridade e da ordem estabelecida das coisas, como tais; era sempre uma questão de mudar a pessoa que acontecia estar investida de autoridade, fosse a troca de um usurpador por um monarca legítimo, fosse a substituição de um tirano que tivesse abusado do poder por um governante legal (ARENDT, 1988, p.32).
A Revolução Francesa também trouxe o conceito de moderno de História de Hegel e nele as revoluções passam a ter um movimento essencialmente retilíneo. Dessa forma o movimento “não retornava ao que já era conhecido anteriormente, mas se alongava rumo a um futuro desconhecido -, esse fato deve sua existência não à especulação teórica, mas à experiência política e ao curso dos acontecimentos reais” (ARENDT, 1988, p. 44).
A questão social tem seu auge na modernidade, onde também surge uma concepção individualista de sociedade. O indivíduo moderno, detentor de direitos naturais, possui valor social, representado como homo quo homo, livre, empreendedor. O indivíduo passa a ter uma liberdade de escolha. Justamente devido ao fato da publicização da esfera particular e alocação de novos sujeitos de direitos na esfera social começa a surgir, como consequência, uma ordem social em construção, calcada em uma representação liberal, universal, igualitária.
Um dos traços marcantes na nova ideologia individualista moderna é a revalorização do trabalho. A ascensão do trabalhador ao universo público e aos direitos de cidadania, sendo que, o critério definidor da condição de cidadania é ser apto ou inapto ao trabalho. Também, nessa nova era moderna, em um viés de pensamento liberal, a democracia é essencial. Esta deve ser entendida no sentido de igualdade e redefinição do poder, com um grande potencial transformador. Entretanto, desde o início da modernidade, havia um receio que tudo não passasse de um igualitarismo artificial, legitimador de uma sociedade massificada, disciplinada e autocontrolada, sem vida ativa e espaço público. Sendo assim, nada melhor que a ciência social para tentar elucidar tais incertezas.
Tem-se de um lado um pensamento liberal e de outro um pensamento material. O pensamento político-liberal demonstra a tensão que há entre o público e o privado, igualdade e liberdade, entre questão social e esfera pública. Diferente desse viés de pensamento liberal, onde a democracia traduz uma ideia de igualdade, a teoria marxista introduz a impossibilidade de existir condições de igualdade em uma sociedade organizada através do mercado, da acumulação de capital e da extração da mais valia. Só é possível, aumentar a desigualdade, até chegar ao ponto de uma “ditadura da necessidade”.
“Para Marx, sem superação da necessidade, isto é, da desigualdade social básica que separa os proprietários e não proprietários, não pode haver liberdade, democracia e direitos da cidadania” (BODSTEIN, 1997, p. 05). De qualquer modo, a despeito das contribuições preciosas do pensamento de esquerda ao desenvolvimento dos direitos sociais na contemporaneidade, uma concepção materialista ortodoxa já não parece mais compatível com os ideias modernos mais sublimes.
(...) Karl Marx é (...) o maior teórico que as revoluções jamais tiveram, era muito mais interessado em História do que em política, e, por conseguinte, omitiu quase que inteiramente as intenções originais dos homens da revolução, a fundação da liberdade, e concentrou sua atenção, quase que exclusivamente, no curso aparentemente objetivo dos eventos revolucionários (ARENDT, 1988, p. 48).
O individualismo, sem dúvidas, foi a chave para chegar-se a um entendimento da ruptura radical empreendida pela modernidade, diante dos fundamentos da visão de mundo e de sociedade que até então prevaleciam. A ideologia individualista possibilita compreender a cidadania como um processo derivado de uma sociedade que estabelece princípios básicos, que permitem o surgimento de novos sujeitos e atores sociais. E, para tal, o amadurecimento da democracia é fundamental.
Reconhecimento: um olhar panorâmico.
Nesta seção aborda a questão do conhecimento sob múltiplos olhares, dos quais destacamos Honneth (2013), Melo (2013), Salvadori (2011), Fraser (2007; 2009) e Matos (2004). Um breve olhar sobre o sentido do reconhecimento revela que reconhecer a si próprio talvez seja um dos principais e mais difíceis objetivos que temos na vida, pois muitas pessoas não se “autoconhecem”. De igual maneira, reconhecer ao próximo é um desafio, mas é necessário, porque possibilita, por exemplo, o reconhecimento de direitos que não atentem contra os de outrem, o que nos torna mais humanos e menos egoístas.
Para compreendermos melhor a tarefa difícil de reconhecer o outro, recorremos ao arcabouço de Freud que nos apresenta o Ego como uma das três formas do aparelho psíquico responsável pelas nossas satisfações com o máximo de prazer e um mínimo de consequências negativas, ou seja, é o pensamento em nós mesmos, esquecendo as necessidades do próximo.
O reconhecimento passa por transições ao longo das nossas vidas. Inicia-se ainda quando somos crianças, com a denominada fase do Édipo. Nessa fase, segundo Freud, a criança passa a ter um desejo pela mãe e até implica às vezes com a aproximação do pai. Com o passar do tempo, a criança reconhece que o pai é o parceiro da mãe e assim, passa a se aproximar mais do pai para seguir o seu exemplo.
Entretanto, a questão do reconhecimento vai além. Há vários grupos que tiveram durante toda a sua vida um descaso ocasionado por grupos de pessoas e pelo Estado diante de suas leis e privação e negação de direitos, a exemplo dos negros, idosos, crianças e adolescentes, índios, pessoas de religiões diferentes e até mesmo as mulheres que há pouco tempo eram tratadas como objeto do homem. Indo além dessa ideia, Fraser lança a seguinte questão: o reconhecimento é um problema da justiça, e, portanto, da moralidade, ou é um problema da boa vida e, portanto, da ética?
Segundo Taylor e Honneth o reconhecimento é entendido como um problema da boa vida. Para ambos, ser reconhecido por outro sujeito é uma condição necessária para a formação de uma subjetividade integral e não distorcida. Negar a alguém o reconhecimento é privá-lo dos pré-requisitos fundamentais para o pleno desenvolvimento humano. Nessa mesma linha de raciocínio, Taylor afirma que:
(...) O não reconhecimento ou o falso reconhecimento (...) pode ser uma forma de opressão, aprisionando o sujeito em um modo de ser falso, distorcido e reduzido. Além da simples falta de respeito, isso pode infligir uma grave ferida, submetendo as pessoas aos danos resultantes do ódio por si próprias. O devido reconhecimento não é meramente uma cortesia, mas uma necessidade humana vital (TAYLOR, 1994, apud FRASER, 2007, p. 111).
Diante disso, é importante destacar que reconhecer alguém de modo falso é enganar a si mesmo, pois esse comportamento nos leva a uma trajetória que vai de encontro com a evolução do ser humano. A partir do momento que tentamos enganar alguém dizendo que reconhecemos certos grupos, mas na realidade não o reconhecemos, estamos diante de grupos que fizeram pessoas sofrerem aprisionando-as por longo tempo de suas vidas, impedindo a vivência de forma mais digna, com divergência de direitos entre seus semelhantes, impossibilitando-os de cultuarem o seu deus, a exemplo dos africanos que estiveram no Brasil durante o período de escravidão, mas sem poderem expressar um sentimento, um direito inerente ao seu ser. Para Honneth, de modo semelhante:
Nossa integridade é dependente (...) da aprovação ou reconhecimento de outras pessoas. A negação do reconhecimento (...) é prejudicial porque impede (...) que as pessoas tenham uma visão positiva de si mesmas – uma visão que é adquirida intersubjetivamente (HONNETH, 1992, 188-9).
Desse modo, ambos os teóricos entendem o não reconhecimento em termos de uma subjetividade prejudicada e uma auto-identidade danificada. Eles convergem na concepção de que a lesão em termos éticos é um impedimento à capacidade do sujeito de alcançar a boa vida. Para Taylor e Honneth, então, o reconhecimento é uma questão de ética. No que se refere ao conceito formal de ética, Salvadori afirma que:
Esse conceito formal de eticidade, elaborado por Honneth, visa a ser uma ampliação da moralidade, integrando tanto a universalidade do reconhecimento jurídico-moral da autonomia individual como a particularidade do reconhecimento ético da autorrealização. Por conseguinte, esse conceito tem como objetivo alcançar todos os aspectos necessários para um verdadeiro reconhecimento. (SALVADORI, 2003, p. 192).
Na sociedade atual, o indivíduo depara-se com duas situações distintas, mas interligadas. Em primeiro lugar, precisa encontrar reconhecimento como indivíduo autônomo livre, mas também o reconhecimento enquanto membro de formas de vida culturais específicas, embora essas concepções formais de eticidade fiquem sempre limitadas pelas situações históricas concretas.
Nesse sentido, Honneth, ao discutir sobre a luta pelo reconhecimento, apresenta como cerne a forma pela qual os indivíduos e grupos sociais se inserem na sociedade atual, partindo da concepção de que isso ocorre por meio de uma luta por reconhecimento intersubjetivo.
Nessa luta por reconhecimento Honneth propõe uma concepção normativa de eticidade a partir de diferentes dimensões de reconhecimento. Para ele, o reconhecimento ocorre em diferentes dimensões da vida que explicam a origem das tensões sociais e as motivações sociais dos conflitos, quais sejam: na esfera da solidariedade social, no âmbito privado do amor e nas relações jurídicas.
No âmbito do privado amor o indivíduo passa por uma espécie de simbiose, como se dois sujeitos fossem um só, a exemplo da fase da criança com a mãe nos primeiros anos de sua vida, em que a relação de amor que a criança possui com o seu genitor é uma relação de dependência que no decorrer da vida vai sendo desconstruída. Essa fantasia que a criança ou até pessoas adultas têm com o próximo de acharem que aquela pessoa lhe pertence, como se fosse um objeto que ninguém pode chegar perto, tem que ser desconstruída, pois o amor nada mais é do que a liberdade. É reconhecer que as pessoas possuem autonomia e são independentes. A partir do momento que desenvolvemos essas características, dando a liberdade e tendo autoconfiança, estamos reconhecendo e amando o próximo.
Para Honneth, o amor somente surge quando a criança reconhece o outro como uma pessoa independente, ou seja, quando não está mais num estado simbiótico com a mãe. O amor é o fundamento da autoconfiança, pois permite aos indivíduos conservarem a identidade e desenvolverem uma autoconfiança, indispensável para a sua autorrealização. O amor é a forma mais elementar de reconhecimento
A segunda esfera é a do Direito, aqui o reconhecimento diferente do amor, não é uma questão emocional, nesse caso o reconhecimento é uma questão de respeitar o outro, mas em ambos faz-se necessário reconhecer a autonomia do sujeito. Quando dizemos que certa pessoa possui “direitos” estamos dizendo que os direitos políticos, educacionais, alimentares, e outros, devem ser respeitados e executados, de maneira que o Estado promova o bem estar de todos de forma igualitária.
A terceira esfera é a da solidariedade ou (eticidade) aqui ocorre à aceitação reciproca entre os indivíduos, ou seja, é a aceitação do outro da maneira que ele é. Por meio dessa esfera gera a autoestima, portanto, a pessoa passa a ter confiança nas suas realizações para atingir seus objetivos.
Segundo Honneth, no que se refere a cada forma de reconhecimento (amor, direito e solidariedade) há uma autorrelação prática do sujeito (autoconfiança nas relações amorosas e de amizade, autorrespeito nas relações jurídicas e autoestima na comunidade social de valores) e estas autorrelações poder sofrer rupturas ocasionadas pelo desrespeito gerando as lutas sociais.
(...) quando não há um reconhecimento ou quando esse é falso, ocorre uma luta em que os indivíduos não reconhecidos almejam as relações intersubjetivas do reconhecimento. Toda luta por reconhecimento inicia por meio da experiência de desrespeito. O desrespeito ao amor são os maus-tratos e a violação, que ameaçam a integridade física e psíquica; o desrespeito ao direito são a privação de direitos e a exclusão, pois isso atinge a integridade social do indivíduo como membro de uma comunidade político-jurídica; o desrespeito à solidariedade são as degradações e as ofensas, que afetam os sentimentos de honra e dignidade do indivíduo como membro de uma comunidade cultural de valores. (HONNETH apud SALVADORI, 2011, p. 191).
Diante do exposto, podemos inferir que as evoluções sociais podem ser explicadas por meio dos conflitos, e isso é possível vermos em várias fases da história, como por exemplo: a Revolução Francesa, um marco revolucionário na historia da humanidade. O mesmo acontece com o reconhecimento, quando uma dessas formas de reconhecimento são negadas, os conflitos surgem e assim também nascem as mudanças sociais, ou seja, é por meio da luta de interesse que emerge na maioria das vezes os nossos direitos.
Reconhecimento, Exclusão, Justiça e Constituição: primeira inserção.
A partir de 1988, com promulgação da nossa Carta Magna, e mais notadamente, na última década, a Constituição passou a desfrutar, além da supremacia formal – que sempre teve – de uma supremacia material e axiológica, potencializada pela abertura do sistema jurídico e normatividade de seus princípios. Sendo assim, “as normas constitucionais condicionam a interpretação de todos os ramos do direito, público ou privado, e vincula poderes estatais” (BARROSO, 2012, p.5).
Em consonância com as assertivas acima, destacaremos o Direito Civil, que por muitos anos desempenhou no Brasil o papel de um direito geral. Porém, com o advento da constitucionalização do direito, o direito civil foi perdendo influência, dentro do direito privado, seja pela construção de muitas leis específicas, a exemplo: alimentos, filiação, divórcio, locação, consumidor, criança e adolescente, sociedades empresárias; seja pelas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), diante das recentes demandas sociais que nasceram em razão da pobreza e da exclusão, a exemplo: união homoafetiva e sistema de cotas.
Para o ministro do STF citado anteriormente, há razoável consenso de que o marco inicial do processo de constitucionalização do direito foi estabelecido na Alemanha, através da lei fundamental de 1949 e desenvolvimento doutrinário que vinha de mais longe. Foi o Tribunal Constitucional Federal Alemão quem primeiro assentou que os direitos fundamentais, além de sua dimensão subjetiva de proteção de situações individuais, também instituiu uma ordem objetiva de valores, protegendo direitos e valores de uma ou algumas pessoas, bem como satisfazendo as demandas da sociedade em geral.
No Brasil a constitucionalização é exercida difusamente por todos os juízes e tribunais, e concentradamente pelo STF. Pois bem, em razão de fatores como a “constitucionalização, aumento das demandas por justiça e ascensão institucional do Judiciário, verificou-se no Brasil uma expressiva judicialização de questões políticas e sociais, que passaram a ter nos tribunais a sua instância decisória final” (BARROSO, 2012, p.22).
Diante desse contexto, serão apontados, a seguir, alguns dos dispositivos ou institutos jurídicos (constitucionais e/ou infraconstitucionais), engendrados a partir de 1988 – com a promulgação da nossa Constituição Federal - que trataram das demandas sociais nascidas em razão da pobreza e exclusão social, a exemplo: sistema de cotas e união homoafetivas, que foram questões de grande repercussão social decididas pela Suprema Corte brasileira.
No que concerne à união homoafetiva, através do julgamento em conjunto da ADI nº 4277 (Ação Direta de Inconstitucionalidade, proposta pela Procuradoria Geral da República) e ADPF nº 132 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, proposta pelo governador do Estado do Rio de Janeiro), em 5 de Maio de 2011, os casais homossexuais passaram a ter os seguintes direitos, reconhecidos pelo STF:
1 - Equiparação das uniões homoafetivas como entidade familiar, por analogia às uniões estáveis tradicionais;
2 - Os artigos do Código Civil que regem a união estável são: 1723 ao 1726 (quando duas pessoas convivem sem que haja impedimento de se casarem);
3 - “A coabitação brasileira (uniões não-registradas) é uma entidade real reconhecida juridicamente, que concede aos parceiros direitos e deveres semelhantes ao casamento, como o direito à adoção assim como todos os benefícios e regras do casamento, como pensões, herança fiscal, imposto de renda, segurança social, benefícios de saúde, imigração, propriedade conjunta, hospital e visitação na prisão, além de fertilização in vitro e barriga de aluguel, etc” (STF, 2011).
Considere-se ainda, em consonância com o O art. 226, §3º da Constituição Federal:
No histórico julgamento da ADPF n.º 132 e da ADIn n.º 4277, o Supremo Tribunal Federal conferiu uma interpretação sistemático-teleológica ao art. 226, §3º, da CF/88 de sorte a compatibilizar o referido dispositivo constitucional com os princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança jurídica, reconhecendo que a redação normativa segundo a qual Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar... não traz em si um óbice ao reconhecimento da união estável homoafetiva” (VECCHIATTI, 2001).
Em 14 de maio de 2013 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou uma resolução que obriga todos os cartórios do país a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Diante desse contexto, faz-se necessário descrever adiante o que disse o Ministro de STF Carlos Ayres Brito no julgamento da ADI nº 4277 e ADPF nº 132:
Pelo que dou ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de "família". Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.[5]
Uma outra questão que chegou ao STF foi o sistema de cotas. Em 26 de Abril de 2012 , por unanimidade, o STF validou a adoção de políticas de reserva de vagas. O tribunal decidiu que as políticas de cotas raciais nas universidades estão de acordo com a Constituição e são necessárias para corrigir o histórico de discriminação racial no Brasil. A discussão no STF teve início por causa do polêmico sistema de cotas que existia na Universidade de Brasília, que reserva por dez anos 20% das vagas do vestibular exclusivamente para negros e um número anual de vagas para índios independentemente de vestibular.
Em 29 de Agosto de 2012, ou seja, dois meses após decisão do STF, a presidente Dilma Rousseff, sancionou a lei 12.711/2012, “Lei de Cotas”, devidamente regulamentada pelo Decreto 7.824/2012 (define condições gerais do sistema de vagas, estabelece a sistemática de acompanhamento das reservas de vagas e a regra de transição para as instituições federais de educação superior) e Portaria Normativa nº 18/2012 (estabelece os conceitos básicos para aplicação da lei, prevê as modalidades das reservas de vagas e as fórmulas para cálculo, fixa as condições para concorrer às vagas reservadas e estabelece a sistemática de preenchimento das vagas reservadas).
Diante desse contexto, cabe a seguinte pergunta: atualmente, como é feita a distribuição das cotas? Em que medida tem contribuído para o reconhecimento dos grupos demandatários? De acordo com a lei 12.711/2012, as vagas reservadas às cotas (50% do total de vagas da instituição) serão subdivididas — metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita e metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a um salário mínimo e meio. Em ambos os casos, também será levado em conta percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas no estado, de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).[6]
Pesquisas futuras investigarão os modos pelos quais os agentes percebem estas ações, além de se preocuparem em analisar as efetivas consequências sociais de tais medidas.
REFERÊNCIAS:
BARROSO, Luís Roberto. A constitucionalização do direito e suas repercussões no âmbito administrativo. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coord.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 31-63. ISBN 978-85-7700-186-6.
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[4] Trabalhos posteriores, no plano da pesquisa empírica, irão analisar o modo como determinados grupos percebem as possíveis privações a que seriam sujeitados. Deste modo, pretende-se investigar não apenas a permanência da experiência de exclusão, mas também o modo como os grupos sociais aqui elencados percebem e interpretam estes fenômenos; aquelas que dizem respeito, inclusive, ao não reconhecimento de direitos. Como os agentes constroem discursivamente as experiências de rebaixamento ou exclusão a que estariam sujeitadas? Este é o nosso futuro problema de pesquisa.
[5] Sabemos que o STF é composto por 11 ministros, porém apenas 10 votaram, porque José Carlos Toffoli declarou-se impedido, por ter dado parecer na qualidade de Advogado Geral da União. Enfim, podemos relatar de forma resumida que foram 10 votos favoraveis.
[6] Cf. Portal do MEC, disponível em http://portal.mec.gov.br/cotas/perguntas-frequentes.html.