Sobre a amizade... E o espectro da inveja
Atahualpa FernandezÓ
“Tú que a todo envidias, envidioso, nadie ha de envidiarte nada a ti”. Marcial
Comecemos com um escudo moral em forma de frase comum: o tema é muito delicado.
O antropólogo Robin Dunbar estimou que cento e cinquenta (150) é o limite de indivíduos com os que um ser humano pode manter uma relação estável. A capacidade do cérebro põe este limite, e parece ser que os grupos humanos soem respeitá-la não crescendo mais - a vida do cento e cinquenta e um (151) deve ser naturalmente miserável. Claro que todos esses 150 integrantes do círculo social de uma pessoa não podem ser chamados precisamente de «amigos» e que nem todas as relações são igual de intrincadas.
Em primates a relação entre anatomia cerebral e grupo social é um aspecto muito complexo. Dunbar, observando em bastantes espécies uma correlação curiosa que relaciona a dimensão do cérebro com o comportamento social, mediu o tamanho social e complexidade do grupo social e constatou que o número de membros do grupo com os que um primata pode manter contato parece estar limitado pelo tamanho cerebral. Era uma correlação muito forte. Depois procedeu a mesma medida para nossa espécie e viu que com nosso cérebro de 1.500 centímetros cúbicos teremos um grupo social de 150 indivíduos.
Esta relação se conhece como «número de Dunbar»: o número de indivíduos com os quais podemos estabelecer uma relação, em função de limitações na própria capacidade do cérebro humano de lidar com a complexidade do volume de informações a serem processadas no contexto das relações sociais – o amável leitor (a), por exemplo, pode ter 5.000 contactos em Facebook, mas as relações constantes as manterá somente com 150, que é o que dá de si nosso cérebro; os 4.850 restantes são meros espectadores, «amigos imaginários» que utilizamos deliberadamente para posar e manifestar nossas opiniões e caprichos pessoais, para expressar com espontânea desfaçatez nossas preferências, idiossincrasias e obsessões, e mostrar descaradamente nossa melhor versão de nós mesmos para que nos vejam como nós nos vemos.
Pois bem, aqui se abrem algumas questões interessantes: Em que consiste uma relação de amizade? O que é um amigo? Quantos amigos temos de verdade? Quantos amigos necessitamos? Para Montaigne «la amistad que posee y rige el alma» não pode ocorrer com vários[1]; ou como Thoureau, que tinha três cadeiras em sua cabana do bosque: uma para a solidão, outra para a amizade, e uma terceira para a sociedade. Passando por alto a advertência do muito arisco Pío Baroja que calculava que «un amigo en la vida es mucho, dos son demasiado, tres son imposibles», para responder a estas perguntas há que contestar antes «para que vale um amigo».
Todos valoramos aos demais. Valoramos suas capacidades, sua calidez, sua atitude ante os outros e sua atitude ante nós mesmos. Mas, à diferença do que ocorre nas relações que estabelecemos com o resto de nossos congêneres, na relação com um amigo (a) verdadeiro nossa valoração faz com que sua imagem perca seu caráter enganoso e se identifique com a essência mais profunda do sujeito: aceitamos aos nossos amigos como tais na inocência de sua aparição e não exigimos que provem sem cessar o que são.
E ainda que nem todos os amigos valham igual e a sabedoria popular compare aos amigos com os taxis (por sua tendência a desaparecer quando fazem falta), o certo é que as relações de amizade são maravilhosas: quem carece delas tem seguramente um vazio impreenchível em sua vida. Saibamos ou não, todos os humanos necessitam «compartir a vida»: somos irremediavelmente criaturas que, com cada pensamento, com cada sentimento, com cada gesto, necessitamos experimentar «la huella de alguien en nosotros» (P. Bruckner). O problema é que as relações de amizade, além do seu lado claro ou sua cara risonha, têm também seu lado fosco ou sua cara sombria. Vejamos com algum detalhe cada uma destas faces.
O lado eticamente interessante das relações de amizade é o que os etólogos denominaram de «amor compassivo» para diferenciar do amor romântico e do altruísmo recíproco, pois na amizade não há reciprocidade, senão «simbiose». Efetivamente, o relacionamento humano entregado e a largo prazo, que encarna uma versão elástica «en la que los garantes emocionales – cariño, simpatía, gratitud y confianza - son llevados hasta el límite», é o melhor exemplo de «amor compassivo» que existe na natureza, quer dizer, «de la emoción que se halla detrás de la amistad y que tiene su propia psicología». (S. Pinker)
Pense, por exemplo, em dois amigos que resistiram durante muitos anos os embates da vida, que fomentaram uma relação em que cada sujeito encontrou seu proveito na existência do outro, não em sua supressão; uma relação em que a cada passo das respectivas existências passou a vigorar uma ampla comunhão de interesses e preocupações, de respeito e reconhecimento mútuo; uma relação de vida compartida não apenas física, mas também psicológica, intelectual e emocional, fundada sobre a intimidade intersubjetivamente afetiva, o enraizado prazer de estar junto e a inefável satisfação de atender.
Este tipo de vínculo pessoal que dá sentido às relações de amizade, às «experiências comuns compartidas», tanto ou mais que a razão, é uma entranhada sensação de transcendência, de preocupação e cuidado que dedicamos aos seres que queremos e que nos servem de guia para conduzir nossas vidas; um ato de tomar consciência da realidade íntima do outro por meio de um dialógo de mentes que se intentam compreender de uma maneira significativa; um sentimento que nos permite exercer nossas melhores capacidades e demonstrar nossa valia como seres humanos. Isto é amizade pura e dura, que não trafica com o afeto e nem rouba a alma do amigo.[2]
Mas, como dizia antes, as relações de amizade têm também sua cara torva; e é esta: a inveja. Este é o lado terrível da relação de amizade, do vínculo entre pessoas sempre «capacitadas e disponíveis» para aconselhar-se mutuamente (ou seja, para levar a cabo a «mais fácil de todas as coisas» - Tales de Mileto) e do reconhecimento da excelência, da virtude alheia, que vai ligado, entre outras coisas, à admiração que as qualidades e os logros de um amigo despertam em nós, em particular – mas não somente –, a excelência moral.
A (sempre silenciosa) inveja põe de manifesto o lado mais escuro de nossa condição humana, e quando participa no jogo, bloqueia a claridade de nossa autoestima e de nossa individualização propriamente dita, impede a automodelação virtuosa do próprio caráter e a autoconstituição como existência separada e autônoma, entorpece a visão dos amigos a quem invejamos, aniquila a capacidade de admiração e de aceitação da excelência alheia, empobrece e avilta a razão, entristece o pensamento, embota a generosidade, sufoca qualquer esperança de sensatez e acaba por consumir o «amor compassivo». Daí a certeira maldição que jogou Marcial sobre o invejoso: “Omnibus invideas, livide, nemo tibi” («Tú que a todo envidias, envidioso, nadie ha de envidiarte nada a ti»).
Observe o amável leitor (a) que a inveja – a mais desafortunada de todas as peculiaridades da natureza humana e uma das causas mais importantes de nossa desgraça, nas palavras de B. Russell – é também um pecado capital, e o único que parece desafiar a ideia de que os pecados capitais são exagerações, hipertrofias de algo em si mesmo valioso[3]. De fato, ademais de que a inveja parece surgir quando se desborda a tendência espontânea a buscar nosso ponto de comparação nos demais, o certo é que, dos sete pecados capitais, este é o único que não tem nada de divertido ou equilibrado; se trata mais bem da hipertrofia da afirmação da individualidade: o amigo invejoso é sempre um pobre homem que sente permanentemente ameaçados os lindes de sua existência separada e autônoma, e atua descomedidamente em sua defesa – a propósito, a «boa inveja» é como um «mau amigo», não existem.
Carol Dweck ilustra esta debilidade humana com uma fina reflexão: A sabedoria convencional diz que os verdadeiros amigos se lhes conhece em tempos de necessidade. E, naturalmente, é uma frase que tem toda sua razão de ser. Quem estará a seu lado, dia trás dia, em tempos de apuro? Por acaso não é quando temos mais necessidade que uma mão tendida nos comove profundamente e que nos sentimos obrigados a dizer ao amigo que nunca olvidaremos sua generosidade ou o que fez por nós?
Nada obstante, talvez ainda seja mais difícil responder a esta outra pergunta: A quem acudirá quando lhe sucedam coisas boas? Quem se alegrará realmente de ouvir as boas notícias? Os fracassos e as desgraças não ameaçam a autoestima dos demais. Para uma pessoa saturada de amor próprio (como a maioria dos mortais) é gratificante sentir empatia por alguém necessitado ou consolar-se facilmente pelo infortúnio dos demais. Para o bem ou para o mal, todos «tenemos bastante fuerza para soportar la desgracia de los demás» (La Rochefoucauld).
Mas dado que vivemos em um mundo de seres humanos, um mundo de organismos feitos «a nossa imagem e semelhança» e que vivem baixo a ilusão de uma igualdade sem moderação[4], são precisamente as habilidades, os méritos e os êxitos alheios o que mais ataganta ou aborrece aquelas pessoas que para conservar intacta ou aumentar sua autoestima necessitam (têm que) sentir-se superiores aos (ou inveja dos) demais. Por quê? Porque nos comparamos obstinada e incansavelmente com pasmosa naturalidade, com a mesma eficiência boba com que se utiliza um celular; e a diferença nos incomoda, «aunque no seamos conscientes de ello»[5].
Como explica Susan Fiske, que estudou a imagem cerebral da inveja (portanto, muito distante das fantasias pseudocientíficas e dos delírios psicanalíticos): «Lo que no soportamos no es estar mal, es estar peor que otros. Nos hace sentir inferiores, menos seguros, menos valiosos y nos da un síndrome de bajo estatus que tiene un coste para nuestra autoestima. Se trata de una emoción que sirve para proteger la imagen que uno tiene de sí mismo. Los seres humanos nos estamos comparando continuamente, somos unas máquinas de compararnos. Esas comparaciones nos dividen y generan conflictos, porque siempre deseamos pertenecer al grupo de los mejores, aunque apenas seamos mediocres. Por ello intentamos relativizar, incluso demonizar, el éxito y las habilidades de otros, sean amigos o enemigos».
Assim as coisas, é muito provável que, às vezes, o valor de um amigo consista simplesmente na feliz circunstância de que «no le causamos envidia alguna» (Nietzsche). Claro que não falo aqui para aqueles leitores (as), quiçá asquerosamente virtuosos, que nunca conheceram ou que são capazes de eludir drasticamente esta emoção demasiado feia. Mas a sofisticação da inveja (secreta, conspiradora, clandestina, sub-reptícia), que preside todas as emoções ocultas e priva nosso pensamento de toda e qualquer conexão com a virtude, chega ao extremo de que se não compreendemos seu funcionamento não temos mais remédio que entregar-nos sem resistência aos motivos contaminantes que determinam seu proceder. Não olvidemos que a inveja não necessita demasiadas escusas para começar a murmurar.
Enquanto primatas com encantos peculiares, deveríamos ao menos tentar não ignorar (recordem que a ignorância, a estupidez e o autoengano não são grátis) que se trata de um sentimento (condenadamente) natural[6], pois está unido ao «amor próprio», que capitaneia a inveja com a mesma fatalidade com que o «amor compassivo» guia a amizade. Como disse em certa ocasião Joseph Epstein: “Tal vez errar sea humano; envidiar lo es sin duda alguna”.
Em definitiva, e em palavras do próprio Jesus (cujo Pai - que também é Ele mesmo - é o exemplo supremo e absoluto de abandono afetivo): "Quien pueda entender, que entienda". (Mateo 19,12)
Ó Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] Afligido pela perda de seu amigo Étienne de la Boétie escreveu: «La amistad común puede amar en un amigo el talento, en otro el carácter y en otro la generosidad», mas não esta, que era total, «y no existía en ella otro asunto ni negocio que el de ella misma. […] Por lo demás, lo que solemos llamar amigos y amistades no son más que relaciones y familiaridades entabladas por alguna ocasión o ventaja a cuyo propósito nuestras almas se unen. En la amistad de que yo hablo, se mezclan y confunden entre sí con una mixtura tan completa, que borran y no vuelven a encontrar ya la costura que las ha unido. Si me instan a decir por qué le quería, siento que no puede expresarse más que respondiendo: porque era él, porque era yo».
[2] Platão, recorda A. Comte-Sponville, não escreveu nada valioso sobre a amizade. Aristóteles, pelo contrário, disse o essencial na Ética a Nicómaco: disse que sem a amizade a vida seria um erro; que a amizade é uma condição para a felicidade, e um refúgio contra a desgraça; que a amizade «es a la vez útil, agradable y buena»; que é «deseable por sí misma» e «consiste más en amar que en ser amado»; que não é possível sem uma forma de igualdade que a preceda ou que ela instaure; que é mais valiosa que a justiça, e que a inclui, «y que es a la vez su más alta expresión y su superación». Também disse que não é nem carência nem fusão, senão comunidade, solidariedade e fidelidade; que os amigos desfrutam tanto «los unos de los unos como de su misma amistad»; que não se pode ser amigo de todos, nem da maioria; que a amizade mais alta não é uma paixão, senão uma virtude; e finalmente - e isto o resume tudo -, que «amar (es) la virtud de los amigos».
[3] Nota bene: Já atentaram com o devido cuidado em que as coisas que se condenam moralmente são sempre o lado fosco, a exageração de algo que mais bem resulta apreciável em sua justa medida? Pensemos, por um momento, nos pecados capitais: a ira, a luxúria, a preguiça, a avareza, a soberbia, a gula, que são senão demasia, hipertrofia de disposições humanas de todo ponto estimáveis até para a deôntica cristã? Ao fim e ao cabo, o que é a soberbia, no fundo, senão um amor próprio desaforado; ou a avareza, senão a exageração do espírito de economizar ou poupar. Se cai na gula quando o organismo não responde à ingestão de alimentos com a sensação normal de saciedade. E os escravos da luxúria são os que não encontram no sexo uma satisfação plena, por cujo motivo andam sempre em busca de mais. A ira é a agressividade não sujeita pela razão; e a preguiça, o estado de quem depois da relaxação saudável não recupera o tom nem a motivação naturais. A ética de Aristóteles, particularmente sua doutrina das virtudes, admitia ademais, dito seja incidentalmente e de passagem, a crítica normativa da hipotrofia dessas disposições, do «temer ir mais além»: a hipertrofia da valentia é a temeridade; sua hipotrofia, a covardia. Também o ódio tem sua hipertrofia e sua hipotrofia, e Aristóteles recomendava, uma vez mais, o ponto médio, odiar retamente – «no poner siempre la otra mejilla». Daí sua célebre advertência: «Cualquiera puede enfadarse, eso es algo muy sencillo. Pero enfadarse con la persona adecuada, en el grado exacto, en el momento oportuno, con el propósito justo y del modo correcto, eso, ciertamente, no resulta tan sencillo».
[4] A igualdade, afirma Stephen T. Asma, «é um slogan baseado na inveja».
[5] E mais: os seres humanos se definem a si mesmos comparando-se com os demais, e a maioria dessas comparações sucedem de forma arbitrária, espontânea e inconsciente – quer dizer, se produzem de modo caprichoso, suave e com frequência apenas perceptível (T. Mussweiler). Em verdade, tudo o que sabemos sobre nós mesmos o sabemos por intercâmbio e em comparação com outros. Sabemos quem somos porque sabemos o que não somos; e porque sabemos ou imaginamos como nos veem os demais. Toda nossa vida social é uma série quase infinita de comparações: “El comparativo categórico es innato en el ser humano, el imperativo categórico no”. (R. D. Precht)
[6] Os gregos, por exemplo, consideravam a inveja como uma parte da natureza humana que se manifestava com diferentes intensidades nas diversas pessoas, mas que sempre estava presente, a ponto de emergir, como uma serpente envenenada e aparentemente dormida, mas disposta a atacar com suma facilidade. Quer dizer, segundo os gregos - escreve Peter Walcot -, «el hombre es envidioso por naturaleza, y la envidia (un hábito casquivano, erróneo y despreciable, que podía dominar el carácter) forma parte de su personalidad y disposición básica». Provavelmente os gregos, ao assumir que a inveja forma parte da natureza humana e institucionalizar modos de combatê-la e erradicá-la, «demostraron ser más sabios que nosotros»: entenderam que se trata de um dos excessos inerentes do funcionamento da mente humana, e que como tal «debe identificarse y combatirse con los únicos medios de que disponemos: la honestidad hacia nosotros mismos, el autoanálisis y el juicio equilibrado». (J. Epstein)