A autodeterminação dos povos e o sistema de tutela

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A proposta do presente trabalho é elaborar uma análise da relação entre o sistema de tutela e a autodeterminação dos povos, de modo a verificar se este sistema possui real aplicabilidade no Direito Internacional.

Introdução ao Tema

A evolução do Direito Internacional trouxe mudanças na forma de proteção dos Estados, das colônias e dos territórios. Neste contexto, é de fundamental importância tecer considerações a respeito do consagrado princípio da autodeterminação dos povos, bem como a respeito do sistema de tutela.

Por autodeterminação dos povos, entende-se que todos “os povos têm direito à autodeterminação; Em virtude desse direito, determinam livremente sua condição política e perseguem livremente seu desenvolvimento social e cultural econômico.[1] Em outras palavras, um dos principais princípios do direito internacional contemporâneo, o princípio da autodeterminação dos povos, prevê que o povo, dentro de um espaço territorial, pode escolher seu estado político.

 A consequência direta da autodeterminação é a possibilidade de resultar tanto na independência de um povo, quanto a chance de uma integração com um Estado vizinho ou mesmo de sua associação a qualquer outro Estado político.

Sob outra perspectiva, Malcon Shaw[2], aduz que a autodeterminação dos povos está relacionada também à criação de um novo Estado, à preservação da Soberania e à independência de um Estado, de modo a promover meios de solução de conflito entre Estados.

Por seu turno, o sistema de tutela tem sua origem no sistema de mandato - que estabeleceu uma forma de impedir que as potências vencidas na Primeira Guerra Mundial continuassem a exercer domínio sobre os territórios que até então possuíam[3]. Com a Segunda Guerra Mundial e a criação da Organização das Nações Unidas, há uma substituição deste instituto para sistema internacional de tutela. Deste modo, este novo instituto tinha o escopo de servir como previsão de como seriam administrados e fiscalizados os territórios neste sistema, à luz de futuros acordos individuais.

 Cabe salientar que no artigo 78 da Carta há uma previsão legal de que este novo sistema não poderia ser aplicado aos territórios que já houvessem adquirido assento na ONU, passando suas relações internacionais a operarem-se de acordo com o princípio da igualdade soberana. Isto posto, ideia central do regime de tutela era alcançar seus objetivos em médio prazo, de modo que a sua extinção deveria operar-se somente quando o território tutelado alcançasse a sua independência.

   Destarte, a proposta do presente trabalho é elaborar uma análise da relação entre o sistema de tutela e a autodeterminação dos povos, de modo a verificar se este sistema possui real aplicabilidade no direito internacional.

  1. Autodeterminação dos Povos: do conceito antigo ao moderno

Autodeterminação significa o direito que os povos de todos os Estados possuem, de determinar a forma que será legitimado seu direito interno, sem que haja influência de qualquer outro país. Assim, os países possuem o direito de se autogovernar, sendo portanto, considerados soberanos.

Segundo Maria Angélica Ikeda, tal princípio “estabelece que a um povo deve ser oferecida a possibilidade de conduzir livremente sua vida política, econômica e cultural, segundo princípios democráticos”[1].

A autodeterminação é um dos mais importantes princípios do Direito Internacional, sendo prevista na Carta das Nações Unidas elaborada após o término da Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de reestabelecer a paz mundial. Observava-se que a paz apenas poderia ser alcançada uma vez que um país não mais interferisse na ordem interna de outro, havendo o equilíbrio de poderes.

Com esse objetivo, a Carta versa, em seu artigo 1o, sobre os princípios e os propósitos das Nações Unidas, dispondo no parágrafo 2o:

“Art. 1°- Os objetivos das Nações Unidas são:

(...)

§2º - Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal;”

A autodeterminação possui caráter imperativo, sendo esse direito inerente à todas as Nações, possuindo oponibilidade erga omnes. Assim, não há a necessidade de tal direito ser reivindicado.

Hoje, o princípio da autodeterminação é amplamente reconhecido e encontra previsão em inúmeros tratados internacionais como, por exemplo, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na Declaração sobre o Direito de Desenvolvimento, e no Pacto Internacional de Direitos Humanos.

No entanto, esse termo não teve sua origem na Carta das Nações Unidas, sendo utilizado anteriormente por filósofos e políticos.

O presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, após o término da Primeira Grande Guerra, elaborou uma carta com 14 pontos que deveriam ser observados para que fosse possível reconstruir a Europa e impedir a retaliação dos países, garantindo, desta forma, a manutenção da paz entre as nações.

Entre os 14 pontos elencados na carta, Wilson dispôs sobre a autodeterminação ao prever o direito de desenvolvimento autônomo, a soberania, igualdade e consideração dos direitos dos povos colonizados.

Segundo Vladmir Ilitch Lenin, “o direito de autodeterminação das nações significa exclusivamente o direito à independência no senso político, à livre separação política da nação opressora”.

Filósofos como Francisco de Vitória e Johann Gottfried von Herderpreveram a importância da autodeterminação dos povos. Vitória acreditava que todos os povos tinham por direito natural à possibilidade de constituir uma república e de determinar o seu destino na História. Herder, um dos precursores do nacionalismo alemão, acreditava que uma nação deveria ser fundada nos princípios da autodeterminação, união territorial e identidade cultural.

Podemos observar que, apesar dos diferentes momentos históricos, o direito de um povo defender sua cultura e forma de governo, de determinar seus direitos e possuir o livre arbítrio, sempre foi de extrema importância tanto o âmbito do direito interno como externo.

Com as inúmeras formas de opressão aos povos que ocorreram ao longo de toda a história, a importância desse princípio se torna mais evidente. Não há que se falar em paz, sem se falar na autodeterminação dos povos.

Dessa forma, podemos concluir que a autodeterminação é formada por alguns conceitos: (i) o princípio da territorialidade; (ii) o princípio da democracia; e (iii) a soberania das nações.

A questão territorial mostra-se essencial, uma vez que um povo deve se identificar com a cultura, as tradições, as relações étnicas e a história de determinado território Com as inúmeras guerras e consequentes modificações de fronteiras que ocorreram ao longo da história, a questão territorial está presente ainda nos dias atuais. É notório que é impossível determinar uma fronteira considerando apenas o interesse econômico de determinado país, conforme foi feito na Conferência de Berlim de 1884, quando os países imperialistas dividiram o continente Africano.  Apesar de tal evento ter ocorrido há quase 130 anos, essa questão continua atual.

Nesse sentido, a autodeterminação, quando relacionada ao princípio da territorialidade, pode tanto significar a proibição à invasão de territórios por forças estrangeiras, como pode significar a insurgência de um grupo que não se considera fazer parte da organização estatal em que se encontre”[2].

Quanto ao princípio da democracia, somos remetidos aos movimentos revolucionários norte-americano e francês do século XVIII. O povo buscava se identificar com um líder político que pudesse atender às necessidades de todos. Buscavam derrubar a monarquia e retirar o poder daqueles que não representavam o interesse da maioria.

Podemos observar, neste cenário, o princípio da autodeterminação. Em outras palavras, mesmo que internamente, o povo deve ter seu interesse reconhecido, identificando-se com seus governantes.

É importante ressaltar que mesmo um país que encontra-se sob regime ditatorial, desde que possua um ditador que represente os interesses da maioria, estará exercendo o direito de se autogovernar, ou seja, de se autodeterminar.

Por fim, devemos falar sobre a soberania, conceito intrínseco à autodeterminação.  Neste sentido, a Paz de Westfália foi um marco para o direito internacional, uma vez que reconheceu a soberania dos Estados.

A soberania se organiza interna e externamente, devendo o poder político ser legitimado pelas leis internas. Segundo Jean Bodin, “soberania refere-se à entidade que não conhece superior na ordem externa nem igual na ordem interna”.

Podemos observar esses três pilares da autodeterminação no parecer consultivo emitido pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), em julho de 2010, no caso da independência unilateral de Kosovo. A Corte entendeu que Kosovo poderia ser reconhecido como sujeito de Direito Internacional, reconhecendo sua independência da Sérvia.

Tal parecer se deu ao observar que a maior parte da população habitando o território não se identificava com a cultura sérvia, sendo 90% desses albaneses. Assim, a população teria o direito de se autodeterminar e se autogovernar, sendo reconhecida como um Estado soberano.

Através do parecer consultivo elaborado pela CIJ, podemos concluir que o conceito de autodeterminação abrange o poder de um povo “formar um novo Estado soberano, integrar-se a um Estado já existente ou associar-se a ele[3]. No caso discutido, observamos a primeira hipótese, ou seja, a secessão.

“Enquanto secessão, o direito à autodeterminação dos povos incide em casos em que há jugo colonial e dominação estrangeira[4].

Através do acima exposto, podemos concluir que a autodeterminação, apesar de ser um conceito antigo, continua sendo de extrema importância no direito internacional, sendo pilar para manutenção da paz e para o bom relacionamento entre as diversas nações. Este direito abrange questões intrínsecas à humanidade, como a identidade cultural, o princípio da democracia e da soberania das nações. Por este motivo, encontra-se presente em inúmeros tratados e convenções internacionais, entre eles, na Carta das Nações Unidas.

2. O Sistema de Tutela

 O sistema de tutela, conforme previamente mencionado, foi criado por meio da Carta das Nações Unidas, substituindo o então existente sistema de mandato, que fora criado pela Liga das Nações.

 O sistema de mandato previa a existência de comunidades submetidas a um regime especial, no qual um Estado exercia tutela sob outro, administrando-o em nome da própria Liga das Nações, devido aos seus recursos, experiência ou até mesmo posição geográfica.

Insta salientar que o referido sistema tinha como base legal o disposto no artigo 22 do Pacto da Liga das Nações, que previa sua aplicabilidade à todos os Estados perdedores da Primeira Guerra Mundial. A questão de grande relevo levantada na época concernia ao que fazer com todas as colônias pertencentes aos Estados vencidos. Desta forma, para que as colônias não fossem simplesmente transferidas para as nações vencedoras, foi criado o sistema de mandato.

 Após a Segunda Guerra Mundial e a criação da Organização das Nações Unidas, foi estabelecido que o sistema internacional de tutela seria aplicado, em suma, aos territórios que já estivessem sob o regime de mandato e àqueles que viessem a ser separados de Estados inimigos, como via de consequência da guerra, nos termos do artigo 77 da Carta das Nações Unidas.

 Ademais, o artigo 73 da Carta das Nações Unidas prevê que “os membros das Nações Unidas que assumiram ou assumam responsabilidades pela administração de territórios cujos povos ainda não se governem completamente a si mesmos reconhecem o princípio do primado dos interesses dos habitantes desses territórios e aceitam como missão sagrada, a obrigação de promover no mais alto grau, dentro do sistema, de paz e segurança internacionais estabelecido na presente Carta, o bem-estar dos habitantes desses territórios.”[5].

Ressalta-se foi criado, também, o chamado Conselho de Tutela, formado pelos membros permanentes do Conselho de Segurança, a saber: Estados Unidos da América, França, China, Reino Unido e Federação Russa. Frise-se que o referido órgão tinha como objetivo principal supervisionar a gestão territorial.

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No ponto, convém destacar que foi implementado no Conselho um sistema de petições, que permitia que cidadãos dos territórios que encontravam-se sob tutela pudessem apresentar petições alegando eventuais incompatibilidades entre leis adotadas nas comunidades e os princípios e dispositivos trazidos pela Carta das Nações Unidas. Somado a isso, havia o direito de visitas, que permitia que habitantes locais pudessem fazer críticas e vê-las discutidas em deliberações da ONU.

Ocorre que, em 1994, as atividades do Conselho de Tutela foram suspensas, tendo em vista que tal órgão acordou em se reunir somente em situações que o exigissem, por sua decisão, de seu Presidente ou a pedido da maioria dos membros do Conselho de Segurança ou da Assembleia Geral.

Com a implementação do sistema de tutela, a soberania passou a ser o epicentro de diversos debates, pois não se sabia ao certo quem estava exercendo-a.

Convém ressaltar, ainda, que, com fim da Primeira Guerra Mundial, o Sudoeste da África passou a ser administrado, ainda pelo sistema de mandato, pela África do Sul. Entretanto, após a Segunda Guerra Mundial, a África do Sul buscou o reconhecimento das Nações Unidas da integração do território, alegando que o mandato perdera vigência.

 O caso foi levado à Corte Internacional de Justiça, que emitiu parecer afirmando que, ainda que a Carta da ONU não tivesse criado para a África do Sul a obrigação de concluir o acordo de tutela para o território sob seu mandato, o mandatário não poderia alterar o status internacional de forma unilateral.

Importante destacar que o último território constituído sob o sistema de tutela foi Palau, que conquistou independência em 1994. Ou seja, atualmente não existem mais territórios sob tutela.

 No que tange a autodeterminação dos povos, cabe informar que o sistema de tutela tinha como objetivo fomentar o progresso nos territórios, a fim de que estes pudessem atingir sua independência, chegando, assim, a possuir um governo próprio. Ou seja, os territórios sob o sistema de tutela não possuíam autodeterminação no que diz respeito sua capacidade de autogoverno.

  Desta forma, um território classificado como “sem capacidade de autogoverno”, conforme afirma Cançado Trindade, tinha seu governo exercido “pela própria comunidade internacional com o objetivo de reerguer instituições governamentais locais e a ordem constitucional de um território, como a Missão das Nações Unidas para Administração Interina em Kosovo (UNMIK).[6]

Assim, era de extrema importância que fossem impostos limites à administração internacional para evitar violações aos direitos individuais e abusos por parte dos Estados gestores. Neste sentido, o supramencionado sistema de petição representou um grande avanço ao sistema de tutela como um todo.

Destarte, ainda que o sistema de tutela tenha apresentado significativo valor do ponto de vista de transição do sistema neocolonial, convém mencionar que foi protagonizado por Estados desenvolvidos, do ponto de vista econômico. Logo, por trás dos ideias elencados na Carta das Nações Unidas, que compreendiam o bem-estar e desenvolvimento dos povos, haviam, também, interesses imperialistas, a fim de que se pudesse manter domínio territorial. Entretanto, esta mentalidade não era compatível com a nova ordem mundial, razão pela qual o sistema de tutela representou, paradoxalmente, um disfarce para a manutenção do poder econômico e político das grandes potências mundiais.

3.Conselho de Tutela Atualmente

O Conselho de Tutela surgiu com o objetivo de promover a descolonização e independência dos novos Estados. Contudo, com o ingresso de Palau nas Nações Unidas – fato que se sucedeu em 1994, a missão do referido órgão foi finalizada. Assim, em linhas gerais, existem três grandes vertentes a respeito da destinação Conselho de Tutela.

A primeira vertente, defendida por grandes nomes, como o 7° Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, prega a extinção por completo do Conselho de Administração Fiduciária das Nações Unidas. Ocorre que existe uma problemática concernente à proposta, tendo em vista que exigiria asupressão de parte do texto da Carta que deu origem a ONU, o que causaria, sem sobra de dúvidas, uma drástica reforma estrutural nas Nações Unidas.

Em contrapartida, alguns teóricos defendem que o conselho deveria assumir a função de proteger oschamados “global commons”. São exemplos desses “bens comuns” a atmosfera, os oceanos, as geleiras e o espaço sideral. Dessa forma, o sistema de tutela teria sob sua administração zonas completamente fora da jurisdição das nações, como os oceanos, que hoje representam cerca de 2/3 (dois terços) do território global. Contudo, para que o conselho assuma essa nova função, é necessária a alteração de seu objetivo, consubstanciado no artigo 76, bda Carta das Nações Unidas.

Por derradeiro, tem-se os defensores de que o conselho seja usado para tutelar os chamados estados falidos. Isto ocorreria caso o conselho assumisse função vinculada à administração do território até que houvesse a reestruturação completa do aparato estatal, ou seja, seria necessário remover do Conselho de Segurança as funções dessa natureza. Ou, ainda, a criação de um mecanismo de tutela entre os estados componentes do Conselho de Segurança e os estados falidos, visando a proteção da população local.

Porém, assim como as demais teses, existe um óbice encontrado no texto que dá origem ao conselho, principalmente no tocante a “fomentar o progresso político, econômico, social e educacional dos habitantes dos territórios tutelados e o seu desenvolvimento progressivo para alcançar governo próprio ou independência”, como preleciona o artigo 76 da Carta das Nações Unidas.

Podemos afirmar que muitas hipóteses são cunhadas sobre o futuro do Conselho de Administração Fiduciária das Nações Unidas, todavia, as dificuldades encontradas em alterar o texto da Carta das Nações Unidas e, consequentemente, de promover uma eventual reforma factual no Conselho, somente reforçam o cenário de indefinição sobre o futuro do mesmo.

4. Os Estados Falidos e o Sistema de Tutela Atualmente

O Sistema de Tutela perdeu sua efetividade, entretanto, em determinadas situações, nota-se que as intervenções internacionais acabam por assumir as mesmas características deste sistema há muito desuso. Este é o caso das intervenções nos chamados estados falidos, também conhecidos como failed states.

O conceito de estado falido fora cunhado em meados de 1990, época em que se discutia governança dos estados, dada a transição da ordem mundial de um modelo bipolar, com duas superpotências, para um modelo multipolar, regional, ou, ainda, internacional.[7]

Nesse momento cabe apontar a primeira divergência conceitual que advém do próprio conceito de estado falido, pois, para Gerald B. Helman e Steven R. Ratner, temos a perda da capacidade do estado de se manter como sujeito internacional[8] ao passo que para Seth Kaplan[9] trata-se da incapacidade de atender a população local, independentemente de existir ou não um governo central forte, em vista que minorias étnicas podem estar à frente desse governo (ex. Somália)[10]. Nesse sentido, nas palavras de Zartman, um failedstate surge quando o Estado deixa de realizar as funções básicas de um Estado.

Ademais, importante destacar que o termo “estados falidos”, apesar de consagrado pela doutrina, é repudiado nos documentos e resoluções da ONU.

Frise-se que, conforme os estudos de Rotberg, situações de conflitos com grupos radicais violentos, de diferentes facções, juntamente com a desarmonia popular, a inatividade das instituições públicas e privadas, bem como um sistema legal corrupto e a perda de território, acabavam por ruir aquilo que chamamos de “Estado”.

Assim, haveria uma perda da figura representativa do governo, tornando o Estado além do alcance de normas internas ou internacionais.

Insta salientar que, muito embora analisamos um modelo de Estado tipicamente Ocidental, há aqueles Estados que surgem e se mantém sob diferentes modelos e sistemas, como é caso dos Estados Africanos, que foram obrigados a seguir o modelo ocidental devido a Conferência de Berlim, de 1885, a qual não respeitava as diferenças culturais e sociais das diferentes etnias, apenas os ditames estipulados no Tratado de Westphalia.

Contudo, apesar das diferentes configurações de formação de um Estado, há características que se assemelham, tendo em vista que são consideradas básicas para formação de um Estado. Tais estruturas aparecem em um primeiro momento delineados pela Convenção de Montevideo, em 1933.

A Convenção de Montevideo aduz que há certos pontos necessários para que ocorra de fato o surgimento de um Estado. A princípio, deve haver uma população permanente, dentro de um território. No ponto, frise-se que território é considerado o espaço de terra a qual uma certa autoridade consegue exercer determinado poder. Deste modo, há o surgimento de um comunidade política estável.

Um outro ponto a abordado é a existência de um governo capaz de centralizar as decisões e definir uma ordem legal. Com isto, é gerada a capacidade do Estado de se interrelacionar com outros países.

Além do aspecto legal listado pela Convenção de Montevideo, deve-se levar em consideração, também, o surgimento de um Estado pelo aspecto sociológico – o que é exposto de maneira exemplar por Max Weber, ao definir o Estado como aquele que possui o legítimo direito sobre força, isto é, possui o monopólio do uso da força.

Se faz por bem salientar que um Estado é considerado “falido” pela comunidade internacional quando este perde seu reconhecimento. Ou seja, todas as intervenções internacionais surgem pela falta de reconhecimento da comunidade global na estrutura que uma vez foi um Estado.

Há, basicamente, duas teorias que narram como ocorre este reconhecimento. A primeira é denominada de Teoria Constitutiva, tendo como idealizador Hans Kelsen. Esta teoria aduz que, para a criação de um novo Estado, é necessário haver o reconhecimento de outros Estados. A Teoria Declarativa, em contrapartida, baseia-se em observações empíricas, de modo que, para seus defensores, o reconhecimento transcende a norma, uma vez que deve ser analisada a presença de os aspectos sociológicos no Estado, de modo que, mesmo que não haja o reconhecimento de um certo número de países, ainda seria considerado como um sujeito de Direito Internacional. Este é o caso da Palestina.

Neste sentido, ressalta-se que, no parecer consultivo emitido pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), em julho de 2010, no caso da independência unilateral de Kosovo, entendeu-se que Kosovo poderia ser reconhecido como sujeito de Direito Internacional, reconhecendo sua independência da Sérvia, devido ao princípio da autodeterminação dos povos.

Assim sendo, em um primeiro momento a comunidade internacional interviria para tentar assegurar um cessar fogo, a saúde e o bem estar dos civis, bem como conseguir reestabelecer o governo e suas instituições.

No ponto, convém mencionar o caso da República Democrática do Congo [11](RDC), pois foi criado, pela Resolução 1925, do Conselho de Segurança da ONU, a organização MONUSCO[12] (The United NationsOrganizationMission in DemocraticRepublicofthe Congo), que tem como objetivo a utilização de quaisquer meios possíveis para assegurar a proteção de civis, direitos humanos, assistência humanitária e apoioao governo RDC, de modo a auxiliá-lo na estabilização e consolidação da paz. Infelizmente, até o presente momento, tais objetivos ainda não foram concretizados de forma plena, de tal modo que houve a necessidade de criar-se uma força militar ligada a MONUSCO para tentar alcançar a estabilidade e, posteriormente, a reestruturação do Estado.

A ideia de um intervenção militar pelo MONUSCO no RDC está relacionada à estratégia de cessar fogo e, em seguida, introduzir mudanças e tentar reestabelecer a confiança dos cidadãos na estrutura do governo.

Logo, haveria a necessidade de seguir pelo menos três passos: abrangente desmobilização, desarmamento e reintegração, e posterior desenvolvimento de normas que assegurem tanto o equilíbrio quanto a confiança desta “nova” nação.

Note-se, portanto, que este modelo de intervenção internacional em muito se assemelha às diretrizes tomadas na vigência do sistema de tutela.

Neste sentido, convém mencionar, ainda, que o sistema de tutela fora concebido para garantir a independência dos estados tutelados e por fim reconhecê-los como estados membro da comunidade internacional. Segundo Accioly, Silva e Casella, em seu Manual de Direito Internacional Público[13], o reconhecimento do estado é irrevogável, sendo assim, uma vez que uma nação é reconhecida pela comunidade internacional, não é possível remover o status de reconhecido já concedido ao Estado.

Ou seja, não cabe discutir a personalidade jurídica internacional daqueles estados que hoje são independentes, o que cabe a comunidade internacional é, na verdade, reconhecer ou não o novo governo, ou nas palavras do próprio autor:

“O reconhecimento de governos não deve ser confundido com o de estados. Mas o de Estado comporta, automaticamente, o de governo que, no momento, se acha no poder. Se a forma de governo muda isso não altera o reconhecimento do estado: só o novo governo terá necessidade de novo reconhecimento.”[14]

   Dessa forma, eventual tutela internacional do Estado dito falido não pode se dar por meio da remoção de seu status de sujeito de direito internacional, tornando o mesmo subjugado de forças externas, ou, ainda, tornar-se meio de estabelecer novos laços de dependência entre os estados antes tutelados e suas antigas metrópoles coloniais, de forma a violar sua autodeterminação.

Cabe destacar também a existência dos chamados Programas de Reestruturação da Democracia, que incluem projetos como o SSR e DDR.

O Security Sector Reform (SSR) -[15] Reforma de Setores de Segurança, é um projeto que possui como finalidade principal o auxílio ao desenvolvimento das instituições de um Estado, de modo a providenciar administrador para ajudar a reestruturar tais instituições, bem como fiscalizar e provisionar segurança.

Além disso, existe a possibilidade de incluir a defesa, a aplicação da lei, correções, serviços de inteligência e as instituições responsáveis ​​pela gestão das fronteiras, alfândegas e emergência civil. Inclusive, se fala na elaboração de um setor da segurança que deve incluir também os órgãos de gestão e fiscalização e, em alguns casos, pode envolver os provedores de segurança informais ou tradicionais.

Já o DDR - Desarmamento, Desmobilização e Reintegração[16], é um programa que tem como finalidade a contribuição para a segurança ea estabilidade em ambientes pós-conflito, possibilitando, assim, a recuperação e o desenvolvimento destas regiões. Um exemplo é o processo de remoção de armas de combatentes, com o intuito de ajudá-los no que concerne a integração social e econômica na sociedade.

O novo sistema de tutela, deste modo, é legitimado pelo Conselho de Segurança da ONU para assegurar o estabelecimento e a manutenção da paz e da segurança internacional e interna.

Por fim, práticas indiretas de intervenções demonstram como o sistema de tutela ainda é utilizado, ainda que com nomes e formatos diferentes. 

Conclusão

  O Direito Internacional Público busca desenvolver e aprimorar mecanismos de interação entre os sujeitos de direito internacional. Este sistema está em constante evolução, entretanto, assim como diversos fatos demonstrados historicamente, muitos temas permanecem, ainda nos dias atuais, o epicentro de debates.

 O princípio da autodeterminação dos povos teve sua importância ampliada devido o parecer consultivo emitido pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), em julho de 2010, no caso da independência unilateral de Kosovo. A importância deste caso foi solidificar o reconhecimento de um Estado e a importância dos aspectos sociológicos de um Estado para sua constituição.

  Ressalta-se que, antes do parecer consultivo emitido pela CIJ, muitos Estados levavam em consideração apenas aquilo que fosse lhes atribuir determinada vantagem. A exemplo temos a posição do Reino Unido no que se refere ao caso de Kosovo, que utilizou-se da teoria declarativa, enquanto que para o caso da Irlanda utilizou-se da teoria constitutiva.

Destarte, a valorização de determinado grupo de pessoas com a mesma língua, cultura, regras e costumes, demonstra grande importância no que se refere à reestruturação dos estados falidos. Isto porque, nações que, teoricamente, teriam perdido qualidade, tanto teórica, quanto sociológica, de constituição de um Estado, precisam de auxílio da comunidade internacional para se restabelecerem, de modo a evitar que os direitos humanos de cada indivíduo sejam desrespeitados.

 O sistema de tutela, conforme mencionado, surgiu como forma de gestão territorial de regiões que já encontravam-se sob o regime de mandato, bem como àqueles territórios que viessem a ser separados de Estados inimigos, após a Segunda Guerra Mundial.

Atualmente, sua aplicabilidade se resume nas intervenções de paz da ONU, em programas de reestruturação da democracia, e em organismos internacionais chancelados pelo Conselho de Segurança da ONU.

 O princípio da autodeterminação se traduz na necessidade que os povos tem de possuir instrumentos que possam defender sua cultura e forma de governo, além do poder determinar seus direitos e instigar o livre arbítrio, a fim de que seu território seja protegido de forças estrangeiras e grupos paramilitares.

 No caso dos chamados estados falidos, a utilização de intervenção internacional seria necessária para que se pudesse assegurar a aplicabilidade dos direitos acima referidos, até que o Estado voltasse a se estruturar.

Contudo, é imprescindível que haja cautela ao se falar em falência de Estados e intervenção internacional, sobretudo militar. Isso deve ao fato de que grande parte das nações busca, incansavelmente, o aumento de poder político e econômico. Assim, a intervenção de outro Estado em um território considerado “falido”, pode acabar por representar grande perigo à democracia. Desta forma, um sistema que, em tese, teria como uma de suas principais funções proteger a cultura e a democracia dos povos, acaba instigando o neoimperialismo.

Logo, é necessário que se criem mecanismos de combate ao neoimperialismo, como, também, de ação contra a dependência de um ou mais Estados em relação a outro.

 Ante o exposto, notamos a necessidade de uma modificação nos ditames do Conselho de Tutela, a fim de que este possa abarcar programas de auxílio já existentes, bem como de propagação da paz.

Ademais, conforme os dispositivos da Carta da ONU, o controle do Conselho de Tutela deve continuar sendo realizado pelo Conselho de Segurança da ONU, haja vista que este órgão foi incumbido de decidir sobre os métodos de assegurar o estabelecimento e a manutenção da paz e da segurança interna das nações, bem como internacional.

A problemática do assunto é que tal estrutura vem se demonstrando, na prática, ineficaz. Desta forma, parece deveras utópico que um Estado preste auxílio ao outro sem interesses políticos e econômicos, sejam eles diretos, sejam indiretos. Assim sendo, não há por que manter o Sistema de Tutela em funcionamento, ainda que seu objetivo principal seja alterado. É necessário, portanto, que seja repensada a questão das intervenções internacionais, a fim de que se respeite, acima de tudo, a autodeterminação dos povos.

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Kaplan, Seth. – Rethinking State-building in a Failed State - http://csis.org/files/publication/twq10januarykaplan.pdf. Acesso em: 12/02/2015.

http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/monusco/background.shtml, acessado em 18/02/2015, às 23:02.

http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/monusco/background.shtml, acessado em 18.02.2015, às 23:06.


[1] IKEDA, Maria Angélica; “O princípio da autodeterminação dos povos” – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2001. Dissertação (mestrado) em direito internacional”, p. 75.

[2] http://relacoesinternacionais.com.br/direito-internacional/formacao-composta-principio-da-autodeterminacao-dos-povos/

[3]http://www.editorajuspodivm.com.br/i/f/Direitos%20Humanos%20e%20Direitos%20Fundamentais_Artigo%20Rob%C3%A9rio.pdf

[4]https://uspdigital.usp.br/siicusp/cdOnlineTrabalhoVisualizarResumo?numeroInscricaoTrabalho=555&numeroEdicao=20

[5]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm

[6]TRINDADE, Cançado. “A Administração Internacional de Territórios: Do Constitucionalismo Imposto à Construção de uma Ordem Constitucional”. Rev. Fac. De Direito UFMG, Belo Horizonte, 2010, pg. 282.

[7]Nessa transição, cabe destacar que, com o fim do suporte advindo das referidas potências mundiais, vários países tiveram de se socorrer junto ao FMI, Banco Mundial, entre outros, porém, tais instituições exigiram dos diversos países pacotes de “boa governança”, ou seja medidas que atendiam aos mercados, porém muitos países acabaram por se endividar ao ponto de colapsarem.Segundo Paul Collier, esses países caem em uma verdadeira “armadilha”, ficando presos em ciclos viciosos de violência, subdesenvolvimento e má governança.

[8] Saving Failed States How the United Nations let countries fall apart -- and how it needs to adapt if it wants to put them back together. (Originally published in the Winter 1992-1993 issue of Foreign Policy.)

Extraído de http://foreignpolicy.com/2010/06/15/saving-failed-states/ acessado em 10/02/2015.

[9] Kaplan, Seth. – Rethinking State-building in a Failed State http://csis.org/files/publication/twq10januarykaplan.pdfacessadoem 12/02/2015

[10]Kaplan, Seth. Op.cit.

[11] “Na sequência do genocídio de 1994 em Ruanda e na criação de um novo governo de lá, cerca de 1,2 milhão de hutus ruandeses - incluindo elementos que tinham participado no genocídio - fugiram para as regiões vizinhas do Kivu do leste da República Democrática do Congo, ex-Zaire, uma área habitada por tutsis e outros. A rebelião começou lá em 1996, colocando as forças lideradas por Laurent Désiré Kabila contra o exército do Presidente Mobutu SeseSeko. Forças de Kabila, auxiliados por Ruanda e Uganda, tomou a cidade capital da Kinshasa em 1997 e rebatizou o país a República Democrática do Congo (RDC). Em 1998, uma rebelião contra o governo de Kabila começou nas regiões do Kivu. Em poucas semanas, os rebeldes haviam tomado grandes áreas do país. Angola, Chade, Namíbia e Zimbabwe prometeu Presidente Kabila apoio militar, mas os rebeldes mantiveram seu controle sobre as regiões orientais. Ruanda e Uganda apoiou o movimento rebelde, a União Congolesa para a Democracia (RCD). O Conselho de Segurança pediu um cessar-fogo e à retirada das forças estrangeiras, e instou os Estados a não interferir nos assuntos internos do país”. http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/monusco/background.shtml, acessado em 18/02/2015, às 23:02.

[12]http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/monusco/background.shtml, acessado em 18.02.2015, às 23:06.

[13]Casella, Paulo Borba – manual de direito internacional público/G.E. do Nascimento e Silva, Hidelbrando 16 eds., 2008

[14] Ob. Cit. P.264

[15]http://www.un.org/en/peacekeeping/issues/security.shtml, acessado em 18/02/2015, às 23:52.

[16]http://www.unddr.org/what-is-ddr/introduction_1.aspx, acessado em 18/02/2015, às 00:23.


[1] Resolution 1514, the Declaration ob the Granting of Independence to the to the Colonial Countries and People, adotadaem 1960.

[2]Malcon Shaw, pg. 257.

[3] art. 22 do Pacto da Liga das Nações.

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Sobre os autores
Natália Balbino da Silva

Graduanda em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Juliana Dias Avezum

Graduanda pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Caio Cezar Lazare Gabriel

Graduando pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Tatiana Casseb Bahr de Miranda Barbosa

Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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