1. Introdução
No passado recente nas grandes cidades brasileiras referir-se a cartório trazia, de imediato, reminiscência de algum dissabor. Talvez a lembrança de levantar-se cedo e ser dos primeiros da fila para reconhecer uma assinatura ou autenticar documento (o conhecido confere com o original). Ou passar horas em local insalubre para entregar documentos submetidos à conferência artesanal, esperar que o oficial, suboficial ou preposto assinasse e desse a fé pública de que a assinatura era mesma a sua — e ainda pagar caro pelos serviços. Era o perfil da maioria dos cartórios, principalmente nas capitais de Estados, onde, embora circulasse grande volume de dinheiro, pouco ou quase nada era oferecido aos clientes cidadãos. Pior quando era obrigado a apresentar em curto prazo documento com autenticidade reconhecida para matricular-se em escola pública ou iniciar no emprego. Aí, recorria a expediente não recomendável para acelerar o andamento dos serviços: propina. Não raro, os próprios atendentes de cartórios ofereciam a celeridade em troca de pagamento acima das taxas obrigatórias, que já eram altas. Cartório era termo genérico do local onde se realizavam atividades de registros públicos em geral, para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, segundo o art. 1º da Lei 6.015/73. Até pouco tempo permaneciam com os mesmos procedimentos de ocupação elitista do tempo do império, direcionados aos detentores do poder político/econômico. Cartório tinha dono e passava de pai para filho, aderente ou protegido. Geralmente o dono era o chefe político ou alguém ligado a este.
2. Novo perfil do serviço cartorário
A Constituição Federal de 1988 mudou o perfil das atividades “cartorárias” quando determinou no art. 236 “Das Disposições Constitucionais Gerais”: Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. § 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. § 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. § 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. Trouxe mudança radical na concepção e própria natureza das atividades, a começar pela definição clara das atividades e executores: notários e oficiais de registro. Determinou às leis infraconstitucionais regularem atividades, responsabilidade civil e criminal dos agentes em relação à nova realidade jurídica, à luz dos princípios da nascente Carta Magna. Disciplinou constitucionalmente o ingresso às atividades de Notário e Registrador, agora só acessíveis via concurso de provas e títulos com igualdades de condições aos concorrentes. Foram mudanças significativas em uma das atividades mais cobiçadas do serviço público. A sociedade acatou os novos mandamentos como um avanço em busca da tão sonhada igualdade material entre cidadãos. Entretanto, foi o caput do art. 236 da Constituição Federal que levantou maiores clamores e reflexos nas estruturas judiciárias do país, ao determinar que os serviços notariais e de registro “são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro”[1] — em caráter privado, por delegação do Poder Público, como se mostrará adiante. De imediato, aplausos generalizados. A sociedade, pela evidente modernização de serviços historicamente ineficientes e atrasados; os agentes, em geral, receptivos ao caráter privado das atividades, agora delegadas pelo poder público, prenúncio de eficiência e modernidade. Enterravam-se velhas práticas da ineficiência no exercício de função pública de reconhecida importância. Melhor ainda: continuavam públicas, agora passadas aos particulares sob o regime de delegação, ou seja, atribuíam-se atividades próprias da administração pública a um ente privado, que, pela lógica, agiriam com a eficiência então incomum no Estado em geral. Para regulamentar o art. 236 da Lei Maior foi editada pela União, no exercício da competência privativa para legislar sobre registros públicos, a Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1.994. Observe-se que a Lei entrou em vigor seis anos após a determinação constitucional. Ou os políticos não se dispuseram a contrariar interesses dos donos dos cartórios, pois continuava a mesma estrutura antiga, ou não consideraram a mudança importante. O reflexo da demora é que, segundo o Professor Marco Antonio Villa em artigo publicado em seu blog, acessado em 10 de junho de 2015, “começaram a operar 7.828 titulares de cartórios sem concurso”. Informa Walter Ceneviva que “a lei n. 8.935, ao ser sancionada coroou longo processo de elaboração, iniciado, no plano político institucional, com intervenção direta dos senadores Mauro Benevides e Nelson Carneiro e, depois, do Deputado Renato Vianna, enquanto deputados interessados no tema”.[2] E ainda que “o esforço inicial dos registradores e dos notários brasileiros foi no sentido de criarem um Conselho Federal, provido de competência nacional e Conselhos Seccionais, operativos nos Estados, em moldes semelhantes ao de outros conselhos profissionais, em particular os da Ordem dos Advogados. O estatuto do Conselho Federal do Notariado, com personalidade jurídica de direito privado, determinaria as regras sobre o funcionamento dos conselhos estaduais e do conselho distrital, com atribuições definidas em lei. [...] Composto de por dois representantes de cada Conselho Seccional, o proposto Conselho Federal de Notários e Registradores teria competência, entre outras matérias, para regular e disciplinar em ato normativo a organização e o funcionamento dos serviços notariais e de registro, bem como sistematizar as práticas notariais e de registro”.[3] Essa proposta de organização não foi adiante. Segundo ainda Ceneviva, a deliberação de que tabeliães e registradores prosseguiriam sujeitos à fiscalização judiciária foi tomada no Instituto de Advogados de São Paulo, IASP, e dali encaminhada ao Congresso Nacional. Já a lei federal prevista no § 2º do mesmo art. 236, para estabelecer normas gerais para “fixação de emolumentos aos atos praticados pelos serviços notários e de registros”, foi sancionada (Lei Complementar nº 10.169/2000) em dezembro de 2000, portanto, doze anos após. Segundo esta, para fixação dos valores de emolumentos a lei dos Estados e do Distrito Federal “levará em conta a natureza pública e o caráter social dos serviços notariais e de registro”. Por fim, de acordo com a nova realidade, os titulares de serviços notariais e de registro são: Tabeliães de notas; Tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos; Tabeliães de protesto de títulos; Oficiais de registros de imóveis; Oficiais de registros de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas; Oficiais de registro civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas e oficiais de registro de distribuição. A questão fiscal-tributária só foi tratada em 2003, através da Lei Complementar nº 116, que dispunha sobre o Imposto Sobre Serviços - ISS, de competência dos Municípios e do DF, quase quinze anos após, nos seguintes termos: Art. 1º O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador. [...] § 3o O imposto de que trata esta Lei Complementar incide ainda sobre os serviços prestados mediante a utilização de bens e serviços públicos explorados economicamente mediante autorização, permissão ou concessão, com o pagamento de tarifa, preço ou pedágio pelo usuário final do serviço, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador. A lista de serviços incluía os itens 21 e 21.01: Serviços de registros públicos, cartorários e notariais. Assim, em 31 de julho de 2003, a Lei Complementar nº 116 trazia aos municípios e Distrito Federal a competência para tributar os serviços notariais e de registros, delegados nos termos da Lei nº 8.935/94.
3. Judicialização do ISS sobre atividades Notariais e de Registro
Após regulamentação do art. 236 entra em cena a ANOREG-BR, antiga ATEB - Associação dos Titulares das Serventias Extrajudiciais do Brasil, que passou a denominar-se Associação dos Notários e Registradores em 22 de novembro de 1994, após promulgação da Lei nº 8.935/1994. A entidade propôs a ADI nº 3.089-2/DF, arguindo que a cobrança do ISS sobre serviços notariais violava os artigos 145, inciso II, e 150, inciso VI, da CF, que tratam das limitações ao poder de tributar, e ainda o próprio art. 236, origem do mandado constitucional. O inciso II do art. 145 é a própria definição de “taxa”. Já o art. 150 veda aos entes federativos instituir impostos sobre patrimônio, renda ou serviços uns dos outros. Segundo a ANOREG-BR, as atividades notariais e registrais são serviços públicos específicos e divisíveis, cuja realização o Estado delega aos particulares (art. 236, caput); portanto, os emolumentos cobrados possuem natureza de taxa (art. 145, II), não podendo o município (Distrito Federal ostenta competência atribuída aos municípios) instituir e cobrar Imposto Sobre Serviços concernente a um Estado-membro (art. 150, VI, alínea “a”, §§ 2º e 3º). Argumentou ainda, com base em Pareceres dos Professores Roque Carrazza e Osíris Lopes Filho: a) É inconstitucional Município ou DF tributar serviço público prestado por Estado da Federação. As atividades notariais e registrais são públicas, embora prestadas por particulares por delegação do poder público. b) Os emolumentos dos serviços estatais realizados por delegatários particulares têm natureza de taxa. É vedado constitucionalmente aos municípios e DF “instituir tributos sobre atividades precípuas de um Estado Federado”. c) Os serviços notariais e de registro, embora delegados a particulares, não perdem a natureza jurídica de serviço público. Não podem estar na incidência do ISS, que trata de prestação de serviços privados. Se o fato gerador, in abstracto, for uma atuação estatal, o tributo correspondente será taxa ou contribuição; por impossibilidade constitucional jamais será imposto. d) A equação não se altera, mesmo sendo exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. Assim, continuam serviços públicos específicos e divisíveis. Só podem ser remunerados por meio de taxa de serviço. e) A Lei Complementar nº 116/2003 extravasou o campo da atuação do ISS ao estabelecer incidência do imposto sobre serviço público. Ao utilizar base de cálculo e fato gerador de taxa na configuração do ISS aplicável à prestação de serviços de registros públicos, possibilita invasão de competência. f) Fundamental para determinar a natureza jurídica de serviços prestados a terceiros, remunerados por emolumentos, não é ser realizado por particular em observância à delegação estatal, mas a índole da atividade exercida: pública. g) A execução de atividade contida no âmago das funções estatais não se desnatura quando realizada mediante a delegação de ofício do Poder Público, fixada pela Constituição (art. 236, caput da CF). h) O art. 145 da CF admite cobrança de “taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição”. Tal conceito abrange não só custas judiciais, mas, também, as extrajudiciais (emolumentos), que resultam, igualmente, de serviços públicos, ainda que prestados em caráter particular.
4. Julgamento da ADI nº 3.089-2/600-DF
O Procurador Geral da República Claudio Fontelles recepcionou a tese da Impetrante pela inconstitucionalidade dos itens 21 e 21.1 da Lista de Serviços anexa à LC 116/2003. Argumentou que: a) O poder público somente transfere aos particulares a execução do serviço público, permanecendo com o próprio Estado sua titularidade e submetem-se ao estrito regime de direito público. b) Os serviços notariais e de registro enquadram-se nos três critérios doutrinários para definição de serviço público: Subjetivo: Serviço prestado por particular por delegação do Estado, que permanece com sua titulação. Material: Serviço visa atender ao interesse público de publicidade, certeza e segurança dos atos jurídicos. Formal: Serviço público realizado sob regime de direito público. Diferente da Procuradoria Geral da República, o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional a incidência do Imposto compreendendo que: a) Os delegatários não são imunes à tributação. Desenvolvem serviços com intuito lucrativo, invocando o art. 150, VI, “a” e §§ 2º e 3º da CF: § 3º As vedações do inciso VI, "a", e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel. b) A imunidade recíproca é uma garantia ou prerrogativa imediata de entidades políticas federativas, e não de particulares que executam, com inequívoco intuito lucrativo, serviços públicos mediante concessão ou delegação, devidamente remunerados. c) Não há diferenciação que justifique a tributação dos serviços públicos concedidos e a não tributação dos serviços delegados. d) A taxa é cobrada do usuário; o Imposto sobre Serviços, do delegatário. e) O Imposto sobre Serviços incide sobre as atividades e serviços praticados pelo delegatário dos serviços notariais e de registros. f) A atividade notarial é exercida por entes privados, havendo viés lucrativo. g) A tributação de serviços de índole pública, mas em atividade explorada economicamente por particular, não implica risco à harmonia federativa. h) Os agentes possuem capacidade contributiva por se dedicaram à atividade lucrativa. i) A atividade notarial é, em tudo, semelhante aos demais serviços públicos concedidos, não existindo motivo para tributar os serviços públicos concedidos e deixar de fazê-lo quanto às atividades delegadas.
5. Outras questões
Após pacificação da incidência do ISS nas atividades cartorárias, as associações estaduais de Notários e Registradores levantaram questões acerca da forma da incidência, sob o argumento de que o Decreto-Lei nº 406/68 permanecia em vigor: Decreto-Lei 406/68: Art. 9º A base de cálculo do imposto é o preço do serviço. § 1º Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho. Arguiram que, como as atividades dos notários são consideradas típicas de Estado e exige-se que o delegatário seja Bacharel em Direito, estariam equiparados a estes, que recolhem um valor fixo. E ainda: Perante a Receita Federal do Brasil os Notários e Registradores recolhem o Imposto de Renda como pessoa física, sendo inconcebível tratamento diferenciado pelo Fisco municipal, com o ISS sobre as renda obtida com a prestação dos serviços. Paulo Barros de Carvalho e Kyoschi Harada emitiram Pareceres, após decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da ADI 3089-2/DF, defendendo que a tributação do ISS deveria ter como base um valor fixo, de acordo com o art. 9º do Decreto-Lei 406/68. Arguiram que as atividades dos notários e registradoras são consideradas típicas de Estado e exigem que o delegatário seja Advogado; pela lógica, estariam equiparados a estes, que recolhem valor fixo por profissional. E ainda: Perante a Receita Federal notários e registradores recolhem Imposto de Renda como pessoa física, sendo inconcebível tratamento diferenciado pelo Fisco municipal, com o ISS sobre as renda obtida com a prestação dos serviços. O Superior Tribunal de Justiça encerrou a discussão ao decidir ser incabível o benefício da tributação fixa do ISS nas atividades notariais e de registrais; a base de cálculo deve ser mesmo o preço do serviço. Foi relator o Min. Humberto Martins, que registrou: “Ainda que essa delegação seja feita em caráter pessoal, intransferível e haja responsabilidade pessoal dos titulares de serviços notariais e de registro, tais fatores, por si só, não permitem concluir as atividades cartorárias sejam prestadas pessoalmente pelo titular do cartório” —REsp 897.471/ES, Relator Min. Humberto Martins. 6. Cobrança do ISS sobre fatos geradores anteriores à decisão do STF Qual o termo inicial para a exigência do tributo? Observa-se o seguinte. Se o Município/DF possuía lei vigente antes do trânsito em julgado da ADI 3.089-2/DF, pode cobrar o imposto referente ao período anterior, limitando-se ao prazo decadencial de cinco anos para o lançamento por homologação, de acordo com o art. 150, § 4 do CTN. A argumentação é que a Lei Complementar nº 116/2003 não cria o tributo, mas, define as linhas gerais para o exercício da competência vinda da Constituição Federal. Mesmo com a decisão da ADI 3089/DF só poderá cobrar o imposto se estiver em vigência Lei que o instituiu. Assim, se município ou DF tivesse lei vigente antes do trânsito em julgado da referida Ação de Inconstitucionalidade, que tem efeito erga omnes e ex-tunc, poderia cobrar o imposto referente ao período anterior, limitado ao prazo decadencial de cinco anos para o lançamento por homologação, de acordo com o art. 150, § 4 do CTN. Por fim, mesmo se houvesse decisão judicial transitada em julgado em desfavor de município, seria possível cobrança retroativa através de ação rescisória, que poderia ser proposta em até dois anos após julgamento da ADI 3.089/DF. Ou seja, o prazo encerrou-se em 31 de julho de 2010. _______________
Bibliografia: 1. Ceneviva, Walter. Lei dos notários e dos registradores comentada. São Paulo: Saraiva, 2010. 2. Pantaleão, Moacir. Tratado prático dos registros públicos. Campinas, SP: Servanda Editora, 2008. 3. República Federativa do Brasil. Constituição Federal do Brasil de 1.988. 4. Leis relacionadas ao tema, entre as quais: - Lei Complementar nº 116/2003. - Lei federal nº 8.935/94 - Lei Complementar nº 10.169/2000 - ADI nº 3.089-2/600-DF. Inteiro teor e julgamento.
[1] Moacir Pantaleão, Tratado prático dos registros públicos, p. 23. [2] Walter Ceneviva, lei dos notários e dos registradores, p. 20. [3] Ibdem.