O devido processo legal e suas potencialidades: o caso do direito de voto dos negros nos Estados Unidos da América

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O devido processo legal tem forte relação com o sufrágio negro nos Estados Unidos. E que o nascimento da equal protection clause foi motivada pela Guerra Civil estadounidense como continuidade dos esforços para a inclusão da população negra.

 

 

 

Este artigo foi publicado originalmente na Revista da Universidade Federal de Pernambuco- http://www.repositorios.ufpe.br/revistas/index.php/ACADEMICA/article/view/1586/1211

 

RESUMO

 

São apresentadas as definições do instituto do devido processo legal, da razoabilidade, da proporcionalidade e das suas fases históricas. Em seguida, demonstra-se que seu surgimento como emenda na Constituição dos Estados Unidos, vem com forte relação com o sufrágio negro nos Estados Unidos. E que o nascimento da equal protection clause foi motivada pela Guerra Civil estadounidense como continuidade dos esforços para a inclusão da população negra.

 

ABSTRACT

 

We studied the due process of law from the idea of reasonable intervention to the proportionality requirement, that is, the substantial due process. Furthermore, the birth of this guarantee is examined in its relation with the black suffrage, in the beginning of the American Constitutional History, right at the Bill of Rights and the equal protection clause.

 

Palavras-chave

Devido processo legal- equal protection clause-voto dos negros- Constituição dos Estados Unidos da América- proporcionalidade.

SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Devido processo legal: potencialidades. 2.1. O devido processo legal substancial e a razoabilidade. 2.2. O devido processo legal e o voto dos negros. 3. Conclusões. Bibliografia

 

1. Introdução

 

            Quando se fala em devido processo legal, o pensamento se dirige rapidamente às garantias do processo. Quando se fala em direito dos negros, surge, imediatamente, a ideia do direito à igualdade.

            Mas qual é a relação entre devido processo legal e direito dos negros? Esta pergunta é que nos instiga neste ensaio. Pretendemos, neste artigo, voltar a atenção para concepções pouco usuais do devido processo legal, explorando a importância dele na luta dos direitos dos negros nos Estados Unidos da América. A ideia é mostrar que o devido processo legal, mais do que garantir direitos das partes nos processos judiciais ou administrativos, foi usado para combater o arbítrio estatal e, também, assegurar parcela do direito à igualdade.

            Para chegar a essa constatação, trataremos, inicialmente, das concepções mais tradicionais do devido processo legal e, então, discutiremos o potencial que ele mostrou ter: um mais explorado no Brasil, que foi a força do devido processo legal substancial; e outro, quase ignorado entre nós, que se revelou como uma faceta da luta pela igualdade racial nos Estados Unidos da América.

 

2. Devido processo legal: potencialidades

 

            Inicialmente, o devido processo legal se mostra como uma garantia processual (procedural due process), que assegura o direito ao contraditório, à ampla defesa,[2] bem como o direito de ninguém ser julgado, senão por um juízo pré-constituído e competente para analisar o caso,[3] e somente por fato definido anteriormente como crime, e com pena previamente estabelecida em lei.[4] Também como decorrência do procedural due process surge o direito de ser assistido por um advogado e ter acesso ao Judiciário, mesmo sem possuir recursos financeiros para tanto.[5]

            O sentido processual do devido processo legal aparece, de início, vinculado às garantias do processo penal e se estende à jurisdição civil para, posteriormente, alcançar os procedimentos administrativos.[6]

            Se, historicamente, essas garantias foram um grande avanço para o combate ao arbítrio estatal – e são comumente lembradas –, o fato é que o devido processo legal teve outras qualidades extremamente relevantes. Como mencionamos acima, algumas – como a que resultou na construção do conceito jurídico da razoabilidade – têm sido mais exploradas doutrinariamente, mas outras, como a que impulsionou a garantia do direito de voto dos negros nos Estados Unidos da América, são praticamente ignoradas no Brasil.

            Analisaremos, a seguir, essas duas virtudes do devido processo legal.

 

2.1. O devido processo legal substancial e a razoabilidade

 

            Siqueira Castro, Barroso e Nery Junior, dentre outros, afirmam que a razoabilidade tem fundamento na cláusula do due process of law.[7] Tal cláusula se desenvolveu a partir da fórmula law of the land, consagrada na Carta Magna, de 1215, documento outorgado por João “Sem Terra” para satisfazer as reivindicações dos barões feudais que buscavam limitar as ações do rei. Depois de contemplado pelas emendas V e XIV à Constituição norte-americana,[8] o devido processo legal passou a se espraiar pelos ordenamentos jurídicos de outros países.[9]

            Como já dissemos, o sentido processual do devido processo legal propiciou a proteção do direito ao contraditório e à ampla defesa, bem como das outras garantias decorrentes dessa ideia inicial. Já o devido processo legal substancial (substantive due process), nas palavras de Luis Roberto Barroso, se caracteriza como a cláusula que “enseja a verificação da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a aferição da legitimidade dos fins. Somente presentes essas condições poder-se-á admitir a limitação a algum direito individual. Aliás, tais direitos não se limitam aos que se encontram expressamente previstos no texto, mas também incluem outros, fundados nos princípios gerais de justiça e liberdade”.[10]

            Analisando sua evolução histórica, no âmbito norte-americano, é possível identificar as fases percorridas pelo devido processo legal substancial.[11]

            A primeira delas, marcada pela ascensão e consolidação do princípio do substantive due process, tem início no fim do século XIX e se estende até a década de 1930, caracterizando-se como uma reação ao intervencionismo estatal na ordem econômica. Nessa etapa, a Suprema Corte norte-americana encampa o ideal liberal, segundo o qual o desenvolvimento deve ocorrer com a menor ingerência possível do Poder Público nos negócios privados.

            A segunda fase começa com a ampliação da legislação social e de intervenção no domínio econômico levada a efeito com a eleição do presidente Franklin Roosevelt, e o consequente desprestígio do devido processo legal pela Suprema Corte, que passa a se abster de examinar o mérito das normas de cunho econômico.

            E na terceira fase, que se inicia na década de 1950, o substantive due process renasce a partir da distinção entre liberdades econômicas e não econômicas. Naquele domínio (o das liberdades econômicas), o Judiciário deveria respeitar a atitude dos outros poderes. No domínio das liberdades pessoais (ou não econômicas) — como a liberdade de expressão e de religião, bem como o direito à privacidade e de participação política —, a intervenção do Judiciário continuava indispensável.

            O devido processo legal firma-se, então, como fundamento para o exame pelo Judiciário do mérito dos atos do Poder Público, impondo a redefinição da noção de discricionariedade.[12] E, nesse sentido, cria as condições para o surgimento do princípio da razoabilidade, que nos dizeres de Linares Quintana, consiste no seguinte:

“Para determinar e decidir sobre a conformidade e adequação dos atos do Estado com a Constituição Nacional, esta, em sua letra e em seu espírito, impõe a regra da razoabilidade. Toda atividade estatal, para ser constitucional, deve ser razoável. O razoável é o oposto ao arbitrário, e significa conforme a razão, justo, moderado, prudente, tudo o que pode ser resumido em conformidade com o que dita o senso comum. O Congresso, o Poder Executivo e os Juízes, quando atuam no exercício de suas funções específicas, devem fazê-lo de maneira razoável. Todo ato governamental deve resistir à prova da razoabilidade. A lei que altera e, com maior razão, a que suprime o Direito cujo exercício pretende regulamentar, incorre em irrazoabilidade ou arbitrariedade se impuser limitações a este que não sejam proporcionais às circunstâncias que as motivam e aos fins a que se propõe alcançar com elas.”[13]

            Virgílio Afonso da Silva, baseado nas explicações de Willis Santiago Guerra Filho, contesta a referida origem da razoabilidade e afirma que ela não surge em 1215, uma vez que naquela ocasião falava-se em princípio da irrazoabilidade. Na verdade, a razoabilidade teria nascido de uma decisão judicial de 1948, proferida na Inglaterra, no caso Associated Provincial Picture Houses Ltd. versus Wednesbury Corporation, quando se passou a entender que o Judiciário poderia afastar os atos praticados por qualquer autoridade, desde que se constatasse sua absurda irrazoabilidade. Não concordamos com essa afirmação, pois, ao tratar da irrazoabilidade, também se está tratando, a contrario sensu, da razoabilidade, visto que uma é a negação da outra. Em outras palavras, irrazoável é aquilo que não é razoável, aquilo que é arbitrário. Ademais, se a decisão inglesa de 1948 autoriza o Judiciário a afastar atos irrazoáveis dos outros Poderes, o devido processo legal substancial já caminhava em sentido análogo ao fundamentar o exame pelo Judiciário do mérito dos atos do Poder Público.

            Com isso, podemos afirmar que, no Brasil, o fundamento da adoção do princípio da razoabilidade estaria no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, que consagra o devido processo legal.[14]

 

2.2. O devido processo legal e o voto dos negros

 

Como já afirmamos, o devido processo legal tem como marco histórico a Carta Magna de 1215. Sua maturidade, no Brasil, se deu com Constituição de 1988.[15]

No entanto, um traço bastante significativo desta garantia passa praticamente ao largo da doutrina especializada:[16] a relação entre o direito ao sufrágio dos negros e as Emendas XIII, XVI e XV à Constituição dos Estados Unidos da América.[17]

Celso Ribeiro Bastos{C}[18] enuncia a aplicação do devido processo legal e aborda o surgimento da Emenda XIV à Constituição norte-americana citando como “a aplicação mais natural introduzida” por ela como a de permitir a integração racial nos anos de 1960.

Pinto Ferreira,{C}[19] de igual modo, refere-se à Emenda XIV como “princípio da igualdade perante a lei”, baseando-se na “igualdade de condições e de circunstâncias”.

Crettela Júnior{C}[20] limita-se à tradução do due process of law, sem maiores incursões históricas.

Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano{C}[21] afirmam, de certa forma, a redundância da Emenda XIV ao repisar o princípio do devido processo legal da já previsto na Emenda V, sendo a “finalidade essencial” do devido processo legal substantivo a de servir para o controle de constitucionalidade.

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Pariz,{C}[22] de igual modo, afirma que a Emenda V foi “convertida” na Emenda XIV e que o devido processo legal no seu sentido substantivo se fixa com a tutela das minorias étnicas e econômicas pela Corte Warren (1950-1960). Miranda[23] trata as Emendas V e XIV como instituidoras do due process of law.

Maciel{C}[24] acentua uma abrangência maior da emenda 14, em relação à Emenda V, constituindo-se a primeira como uma “salvaguarda mais explícita de proibição da iniquidade”. Aponta ter sido somente em 1921 a primeira menção à intima relação entre ambas as emendas, no precedente do Juiz Willian Taft (Truax v. Corrigan).

Oliveira,{C}[25] embora reconheça que as Emendas XIII, XIV e XV destinaram-se “a garantir os direitos de cidadania aos ex-escravos e descendentes de cor negra”, igualmente situa o devido processo substancial na Corte Warren.

Para Del Claro, o escopo da Emenda XIV era permitir, no âmbito estadual, a imposição das garantias já consagradas na Emenda V, cuja incidência era, precipuamente, na Jurisdição Federal.

A Emenda XIV, também para Brindeiro,{C}[26] apenas vincula os Estados ao devido processo legal adrede afirmado para a União pela Emenda V, sendo tal alteração fonte da atuação da Corte Warren na proteção dos direitos civis na década de 60.

Observa-se das colações acima que inexiste na doutrina especializada a relação direta entre as emendas mencionadas e o direito à inclusão da população negra nos Estados Unidos.

A cláusula do devido processo legal,{C}[27] tal qual inscrita na Emenda V da Bill of Rights, se integrou às primeiras dez emendas incorporadas à Constituição estadunidense em abril de 1791 e fez constar também a advertência que ninguém poderia “ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo legal”. A propriedade também não poderia “ser expropriada para uso público sem justa indenização”.[28]

Esta garantia, todavia, não permitiu a emancipação da pessoa negra na sociedade americana. Ao revés, em precedente de bastante relevância, o devido processo legal foi usado como fundamento para se declarar a inconstitucionalidade da proibição da escravidão. Neste caso específico, o devido processo legal serviu para manter a escravidão de Dred Scott.

Com efeito, Dred Scott teve seu dia na Corte, quando, em março de 1857, a Suprema Corte dos Estados Unidos foi chamada a decidir o seu caso. Por sucessão, o escravo Dred Scott foi adquirido pela esposa de um cirurgião. Dred Scott arguiu, então, que seu serviço num Estado que não permitia a escravidão, fazia dele um homem livre[29]. A decisão fincou-se em três argumentos principais, em desfavor da pretensão do autor: i) os negros, mesmo aqueles libertos, não são cidadãos dos Estados Unidos; ii) Dred Scott não havia se tornado um homem livre, em razão de sua residência num Estado, onde vigorara a abolição, pois as disposições do Congresso Nacional não poderiam afastar a legislação do Estado escravocrata; iii) Dred Scott não se tornara um homem livre, em face de seu retorno para o Estado escravocrata de origem (Missouri). A questão dramática nesta decisão, segundo Bernard Schwartz,[30] além de ter ajudado a promover a Guerra Civil é o fato de a Suprema Corte ter negado o direito dos negros à cidadania americana, bem assim a afirmação da ausência de poderes do Congresso de interferir nos Estados adeptos da escravidão.

E a concepção deste precedente repousava, de forma expressa, exatamente na impossibilidade de o Congresso Nacional admoestar os direitos de propriedade assegurados pelo devido processo legal insculpido na Emenda V. No precedente restou claro que o fato de a União possuir ascensão sobre um determinado território não poderia redundar na perda da propriedade dos particulares ali residentes, por ofensa ao devido processo legal. O Compromisso de Missouri, que assinalava o fim da escravidão em parte dos Estados Unidos, nesta decisão foi julgado inconstitucional em nome do devido processo legal.

Mais tarde e somente após a Guerra Civil Americana (1861-1865), em 1866, sobreveio a Emenda XIV, como uma resposta clara e direta ao Caso Dred Scott,[31] assegurando aos cidadãos, em face dos Estados, a mesma garantia, mais alargada,[32] não sem alguma restrição da Corte Suprema norte-americana.[33] A Emenda XIV, de forma direta, afirma que todos aqueles nascidos ou naturalizados nos Estados Unidos são cidadãos e que nenhum Estado poderá aprovar legislação que afaste os “privilégios e imunidades” relacionados a esta cidadania.[34]

A Emenda XIV, conforme Lúcia do Valle Figueiredo, representou uma “grande transformação” no devido processo legal:[35] “isso porque já não mais se fala, apenas, do devido processo legal, mas na igual proteção da lei, equal protection of law. Então, depois da Emenda nº 14, sobretudo com a aplicação que a Suprema Corte Americana faz da cláusula, dá-se abrangência muito maior. O devido processo legal passa a significar a “igualdade na lei”, e não só “perante a lei”.

Como já observamos, a doutrina tem uma apreciação um tanto asséptica do fenômeno, como se a cláusula da equal protection of law fosse um avanço exclusivamente de índole processual, haurida no Parlamento estadounidense, sem maiores reflexos da vida cotidiana, abstraindo-se a riqueza de uma luta histórica e concreta.

No entanto, a introdução da Emenda XIV obedece à continuidade do mote da Guerra Civil, agora travado nas Cortes de Justiça e no Poder Legislativo, mormente, uma guerra de posição e de conceitos travada entre o Poder Federal e os Estados verdadeiramente autônomos na Federação americana. É que a Constituição dos Estados Unidos prescrevia que as eleições dos representantes dar-se-ia nos “tempos, lugares e modos”[36] designados pelo Legislativo de cada Estado. Este dispositivo permitiu uma autonomia dos entes federados que barrou os avanços relacionados ao voto dos negros.

A nascença dessas emendas é de curial importância para o desenvolvimento do direito ao voto das minorias, havendo mais sangue e disputa que o relato do processo legislativo de alteração de uma regra processual.[37] Vencida a Guerra Civil, cujo objetivo expresso fora a derrocada da escravidão pela União, para uma escravocrata Confederação de muitos Estados, restava a implementação da igualdade também na vida daqueles recém-libertos.[38] E a potencialidade desta Emenda está em representar um fundamento jurídico para a ascensão de outras minorias políticas como as mulheres, os homossexuais e os indígenas, em contraposição à timidez da Emenda V.

A Emenda XIII, além da proscrição da escravidão, invalidou a fórmula para a definição da representação no Congresso que contava um escravo como 3/5[39] de qualquer outro homem. O Ato Civil de 1866 declarou todos os descendentes de africanos nos Estados Unidos como cidadãos americanos. E aí afirma Richard Claude: “Os republicanos no Congresso tentaram elevar os princípios dos Atos de Direitos Civis para o status de emenda constitucional: a Emenda XIV que foi adotada em 1868. O significado para o negro foi o seu reconhecimento como pessoa e a aquisição da cidadania plena, com os ‘privilégios e imunidades’ da cidadania americana. Historicamente, as cláusulas do devido processo legal e da igual proteção foram as únicas partes das emendas a serem efetivamente empregadas para salvaguarda do sufrágio negro”.[40]

Em 1875, logo após a Emenda XIV (1868), que definira que todas as pessoas que moram nos Estados Unidos sujeitam-se à sua jurisdição, sendo vedada a negativa ao usufruto dos “privilégios e imunidades” dos cidadãos americanos pelos Estados, houve a tentativa de assegurar o voto às mulheres, direito não reconhecido no Estado do Missouri. A Suprema Corte, então, nas palavras do juiz Waite, declinou do pedido de Francis Minor, em Minor v. Happersett, afirmando que a cidadania não necessariamente coincide com o direito ao voto. Neste contexto, restou decidido que “a Constituição não confere o direito ao voto para ninguém”. A interpretação dada pelo juiz Waite acolheu a percepção de que caberia aos Estados a definição sobre a qualificação dos eleitores, permitindo-se, assim, a manutenção da inelegibilidade das mulheres.

Em 1888, um inspetor das eleições (federais) decidiu destruir algumas urnas com resultado desfavorável às suas pretensões. Em sede de habeas corpus, a Suprema Corte, então, negou o writ para afirmar que o inspetor, naquela qualidade, numa eleição federal, deveria responder, igualmente, pelas sanções previstas na lei nacional e não somente, como alegara a defesa, por aquelas admoestações paroquiais derivadas de sua condição de servidor público estadual. Este precedente alargou a competência do Congresso para a atuação nas eleições ocorridas nos Estados e por eles regulados, de acordo com o tempo e a forma próprios.

A cassação dos direitos dos negros ao sufrágio, mesmo após as Emendas XIII, XIV e XV, deu-se, basicamente, segundo o relato de Richard Claude, nesta batalha de competências entre os entes federados: enquanto alguns Estados e particulares barravam negros nas diversas fases do processo eleitoral, o Poder central federal tentava alargar sua autoridade para impedir a vulneração dos direitos e garantias individuais da população negra. Pode-se classificar as dificuldades apresentadas, de acordo com o mesmo autor: i) no afastamento da população negra da participação das eleições primárias; ii) na manipulação da realização de testes de alfabetização para os eleitores; iii) na imposição da adimplência de taxas para o exercício do voto e, finalmente, iv) na discriminação pela manipulação dos distritos, de acordo com critérios raciais, o famoso gerrymandering,[41] enriquecido com o fator da cor.

E mesmo quando assegurado o direito ao sufrágio em dez dos Estados do Sul pelo Ato Militar de Reconstrução de 1867, no exemplo de Kousser,[42] democratas brancos do Estado da Geórgia fizeram valer o entendimento que o voto não implicava a assunção de cargo público para expulsar todos os negros eleitos para a legislatura posterior.

Observa-se que os contornos políticos do direito ao sufrágio dos negros e de suas liberdades públicas nos Estados Unidos beberam no binômio ballot/bench, ou seja, dividiram-se entre o exercício do voto na urna (ballot) e a sua judicialização (bench).[43] O papel da Suprema Corte daquele país na construção da democracia é um fato inquestionável, sendo a judicialização da política um instrumento vigoroso de sua transformação.

Finalmente, é necessário que se resgate o quão importante foi a luta das minorias étnicas nos Estados Unidos pelo sufrágio para o aprimoramento e surgimento da cláusula do devido processo legal das Emendas XIV e XV da Constituição norte-americana, hoje instrumento de defesa de todos os cidadãos, consagrado na Constituição Brasileira de 1988.

 

3. Conclusões

 

            Como procuramos demonstrar, se o devido processo legal já teria uma importância histórica relevantíssima ao se revelar como uma garantia dos direitos das partes nos processos judiciais ou administrativos (procedural due process), ele, na verdade, foi muito além.

            Mostrou-se fundamental para combater o arbítrio do Estado – quando se desenvolveu a ideia do substantive due process –, permitindo que o Judiciário analisasse o mérito dos atos do Poder Público, criando condições para que surgisse o princípio da razoabilidade.

            Mas pouco se falou – ao menos aqui no Brasil – sobre a valiosa contribuição que o devido processo legal deu para combater a desigualdade racial e para que um outro direito fundamental fosse exercido em sua plenitude: o direito ao voto.[44]

            Portanto, dos vários ângulos pelos quais se analisa o devido processo legal percebe-se como ele se mostra intrinsicamente vinculado à ideia de democracia. A história desta não pode ser escrita sem mencionar aquele. Claramente, não há democracia sem respeito ao devido processo legal.

 

 

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Sobre os autores
Marcelo Ramos Peregrino Ferreira

advogado, autor do livro “O Controle de Convencionalidade da Lei da Ficha Limpa: direitos políticos e inelegibilidades”. Editora Lumenjuris, RJ, 2015.Mestre em Direito pela PUC/SP, Ex-juiz TRE/SC 2012-2014.

Roberto Dias

Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor de Direito Constitucional da PUC-SP e Coordenador da Graduação da FGV DIREITO (São Paulo, SP/Brasil).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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