Análise da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do AI nº 598.212/PR

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O presente estudo tem por objeto uma análise da decisão do Supremo Tribunal Federal que determinou ao Estado do Paraná a criação da Defensoria Pública.

Sumário: 1. Do acesso à justiça e a fundamentalidade da Defensoria Pública – 2. Bibliografia.

Resumo: O presente estudo tem por objeto uma análise da decisão do Supremo Tribunal Federal que determinou ao Estado do Paraná a criação da Defensoria Pública.

Palavras chave: Políticas públicas, Acesso à justiça e Defensoria Pública.

1. DO ACESSO À JUSTIÇA E A FUNDAMENTALIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA.

A noção de acesso à justiça é fundamental para contemplar-se o alcance e efetividade dos direitos insculpidos em nosso texto constitucional. Que a Constituição Federal de 1.988 é dirigente não há como se ignorar; que ela promove um projeto de Estado plural, justo e igualitário, igualmente não restam dúvidas; contudo, sem mecanismos que tenham o condão de garantir a efetivação dos projetos delineados pelo texto constitucional, diante da inércia do poder público, o próprio texto constitucional perde àquilo defendido por Konrad Hesse como a força normativa do texto constitucional, tornando o texto mero conjunto de declarações sem o condão de alterar a realidade fática, de modo que a constituição e a realidade fática devem ser tomadas em seu conjunto, como fatores indissociáveis[1].

Nesse ponto, convém destacar que a maior das garantias, considerando que as garantias outorgadas pelo texto constitucional são a defesa dos direitos que por ele são proclamados, é a inafastabilidade da tutela jurisdicional, porquanto, sem maiores ilações, tal garantia possibilita que aquele que viu sua órbita de direitos vulnerada, tenha acesso direto e imediato ao conjuntos de instituições públicas que possuem competência para a manutenção da paz social, reestabelecimento dos direitos lesados e reafirmação da ordem jurídica positiva. Tal competência é justamente a jurisdicional, contudo, ainda que a prestação jurisdicional seja efetivada pelo poder judiciário, este não atua sozinho, havendo instituições que são indispensáveis à prestação jurisdicional, tal como a advocacia pública e privada, o ministério público e a defensoria pública.

O acesso à tutela jurisdicional deve ser desobstaculizado, fácil e efetivo, para que os mais necessitados possam ter acesso à eficácia concreta e material dos direitos que integram o sistema jurídico, mormente àqueles cujo status vertical na ordem jurídica os qualifica como fundamentais. Para que o acesso fosse facilitado para todos, mesmo para aqueles cujas condições materiais não possibilitariam a contratação de advogado privado para pleitear em seu nome, no art. 5º, inciso LXXIV, conta que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, de modo que mesmo àqueles cujas condições materiais não permitirem a contratação de advogado privado, será dado acesso aos órgãos jurisdicionais, mediante a assistência jurídica gratuita a ser prestada pelo Estado.

Justamente nesse ponto situa-se a Defensoria Pública. Ela é a instituição concebida para a prestação da assistência jurídica gratuita aos necessitados, segundo a dição precisa do art. 134, caput, da CF/88, que dispõe que

A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)[2].

Dessa forma infere-se que a Defensoria desempenha papel fundamental na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos fundamentais, porquanto promove o acesso dos necessitados a estes; assegurando, com isso, a própria supremacia da ordem jurídica e sua eficácia material e concreta.

A Defensoria e sua função fazem parte de um programa mais amplo de políticas públicas que visam promover o acesso à justiça; esse é o desenho institucional e as funções para as quais concebeu-se a Defensoria Pública. Acesso à justiça é uma política pública fundamental para assegurar o respeito à ordem jurídica e a supremacia dos direitos e valores insculpidos no texto constitucional, e enquanto política pública pressupõe uma série de processos pelos quais o Estado conseguirá atender concreta e materialmente as demandas e as determinações que são feitas pelo texto constitucional.

É conveniente mencionar que Maria Paula Dallari Bucci define política pública como:

O programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas para a realização dos objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.[3]

Assim sendo, a efetivação do Acesso à justiça, por meio da Defensoria Pública, é um programa governamental que pressupõe uma série de atos administrativos e legais, tanto na órbita Federal, quanto na Estadual, para que tal instituição fosse concretamente estabelecida, atendendo e patrocinando as demandas jurídicas dos necessitados. No âmbito dos Estados (justamente onde se dará nosso enfoque, diante da temática que foi decidia pelo Supremo Tribunal Federal), a implementação da Defensoria Pública como instituição vocacionada para a efetivação do Acesso à justiça pressupõe: i) dotação orçamentária para a criação do órgão, aí compreendidos os salários dos servidores, a base material para instalação e a infraestrutura necessária para que o órgãos atue; ii) realização de concursos públicos para o preenchimento dos cargos que vierem a ser criados diante da disponibilidade orçamentária.

Dessa forma verifica-se a Defensoria Pública para ser criada passa por um complexo processo administrativo e legislativo, para que, enquanto órgão essencial à prestação jurisdicional, possa cumprir sua missão precípua, dando acesso à ordem jurídica para os hipossuficientes.

Justamente nesse ponto situa-se a decisão que será objeto de, ainda que sucinta, análise pelo presente estudo. É que o Estado do Paraná, praticamente vinte e cinco anos após a promulgação da Constituição Federal de 1.988, e do delineamento de um programa de acesso à justiça como condição de possibilidade para a efetividade concreta e material da ordem jurídica, não havia criado a Defensoria Pública Estadual, contrariando a determinação constitucional.

Diante de tal substancial omissão legislativa e política, o Ministério Público estadual ajuizou uma Ação Civil Pública, pretendendo a condenação do Estado do Paraná no cumprimento de obrigação de fazer, consistente na criação da Defensoria Pública do Estado, diante da inconcebível e inconstitucional mora no cumprimento dos programas delineados constitucionalmente.

Após muita discussão a questão chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio do Agravo de Instrumento nº 598.212/ PR, distribuído à relatoria do Exmo. Min. Celso de Mello. A decisão proferida no aludido agravo restou assim ementada:

EMENTA: Defensoria Pública. Implantação. Omissão estatal que compromete e frustra direitos fundamentais de pessoas necessitadas. Situação constitucionalmente intolerável. O reconhecimento, em favor de populações carentes e desassistidas, postas à margem do sistema jurídico, do “direito a ter direitos” como pressuposto de acesso aos demais direitos, liberdades e garantias. Intervenção jurisdicional concretizadora de programa constitucional destinado a viabilizar o acesso dos necessitados à orientação jurídica integral e à assistência judiciária gratuitas (CF, art. 5º, inciso LXXIV, e art. 134). Legitimidade dessa atuação dos Juízes e Tribunais. O papel do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas instituídas pela Constituição e não efetivadas pelo Poder Público. A fórmula da reserva do possível na perspectiva da teoria dos custos dos direitos: impossibilidade de sua invocação para legitimar o injusto inadimplemento de deveres estatais de prestação constitucionalmente impostos ao Estado. A teoria da “restrição das restrições” (ou da “limitação das limitações”). Controle jurisdicional de legitimidade sobre a omissão do Estado: atividade de fiscalização judicial que se justifica pela necessidade de observância de certos parâmetros constitucionais (proibição de retrocesso social, proteção ao mínimo existencial, vedação da proteção insuficiente e proibição de excesso). Doutrina. Precedentes. A função constitucional da Defensoria Pública e a essencialidade dessa instituição da República. Recurso extraordinário conhecido e provido[4].

A decisão de primeira instância havia condenado o Estado do Paraná na criação da Defensoria, cuja fundamentalidade da existência fundamenta-se na própria supremacia do texto constitucional. Contudo, tal decisão fora reformada pelo Tribunal de Justiça, sob o fundamento que a determinação por parte do judiciário, no sentido de impor ao Estado a atividade legislativa para a criação da Defensoria Pública violaria a separação dos poderes.

A tempo, e de forma muito contundente, o Min. Celso de Mello, ao decidir a questão, pontuou que não se sustenta a violação à separação dos poderes, porquanto se está a tratar de omissão inconstitucional, de inércia do poder público na efetivação da política pública de acesso à justiça. Ademais, pontua o eminente relator que mesmo a justificativa reserva do possível (fundamentação teórica que justifica a limitação de direitos diante da ausência de recursos) não se sustenta diante da inobservância de parâmetros mínimos de atuação estatal; dito de outro modo, a supremacia do texto constitucional suplanta a alegação de reserva do possível, diante da natureza injustificável da mora de praticamente vinte e cinco anos para a criação de um órgão cuja competência é de dar voz aos necessitados que têm seus direitos de cidadania tolhidos e vilipendiados todos os dias.

Em outro ponto do voto tal perspectiva é bem visível:

O Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que é lícito, ao Poder Judiciário, em face do princípio da supremacia da Constituição, adotar, em sede jurisdicional, medidas destinadas a tornar efetiva a implementação de políticas públicas, se e quando se registrar, como sucede no caso, situação configuradora de inescusável omissão estatal. A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental [...][5].

Aqui é cabível uma outra digressão: a Defensoria Pública é a instituição concebida essencial para o regime democrático e para o Estado de direito, porquanto possibilita àqueles que necessitam o acesso à tutela jurisdicional; encara esta última como a derradeira das garantias sobre a efetividade dos direitos contidos no sistema jurídico que é verticalizado pelo texto constitucional. Assim sendo, não é demais destacar que a própria atuação do Supremo Tribunal Federal no caso concreto, determinando a criação da Defensoria Pública, se deu na qualidade de última garantia do cidadão, visto que reafirmou a efetividade dos direitos insculpidos no texto constitucional, mesmo contra eventuais maiorias legislativas, que não se sabe se por inércia ou má-fé, deixam de cumprir os programas delineados pelo texto constitucional; o que acaba por inflar a necessidade e a importância da atuação contra majoritária do poder judiciário na efetivação concreta e material dos postulados que nos possibilitam uma visão otimista dos postulados e escopos que marcam o sistema jurídico nacional.

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Fundamental seria que em outras temáticas a atuação da Suprema Corte fosse enérgica como no caso em apreço, visto que não são poucas as áreas nas quais os programas desenvolvidos para cumprir os comandos constitucionais não existem ou são insuficientes. Como se verifica no aludido precedente, mecanismos para buscar a atuação contra majoritária do poder judiciário existem, bastando a atuação das demais instituições essenciais à prestação jurisdicional para que possa ocorrer a atuação concreta e material daquele que é responsável pela derradeira das garantias dadas ao cidadão, a inafastabilidade da tutela. Justamente nesse ponto ganha relevo o quão absurdo é um Estado federado buscar escusas para a ausência de criação de um dos órgãos cuja função é essencialmente levar pleitos dos necessitados ao poder judiciário, enquanto última garantia. É inegável o paradoxo: o Estado não cria instituições que velem pela supremacia do texto constitucional, para não se ver questionado nas medidas que negam a supremacia do texto constitucional, porquanto não existirão instituições aptas a provocar o judiciário (que é inerte), mantendo-se o estado inconstitucional de coisas; que somente é servível àqueles que são descompromissados com o projeto emancipador, social, econômico e democrático de Estado, que é desenvolvido pela Constituição Federal de 1.988.

2. BIBLIOGRAFIA.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento nº 598.212/PR. Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/AI598212CM.pdf. Acesso em: 26 de out. 2015.

BRASIL. Constituição Federal de 1.988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 26 de out. 2015.

BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). O conceito de política pública em direito. In: Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. P. 39.

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. 1991.


[1] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. 1991.

[2] BRASIL. Constituição Federal de 1.988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 26 de out. 2015.

[3] BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). O conceito de política pública em direito. In: Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. P. 39.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento nº 598.212/PR. Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/AI598212CM.pdf. Acesso em: 26 de out. 2015.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento nº 598.212/PR. Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/AI598212CM.pdf. Acesso em: 26 de out. 2015.

Sobre os autores
Pedro Casquel de Azevedo

Acadêmico de Direito, cursando a 10ª etapa na Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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