Impossibilidade de aplicação de multa por descumprimento de ordem judicial aos advogados públicos

30/10/2015 às 16:16
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São analisados os deveres das partes no processo civil, a representação das pessoas jurídicas de direito público interno e as normas do Código de Processo Civil de 2015 sobre o assunto.

Tendo em conta que o processo instaura uma relação jurídica entre os seus participantes, inserindo-se neste conceito não só as partes, mas todos aqueles que de qualquer forma participem do processo, determinados deveres são estipulados pelo Código para que o processo possa atingir seu objetivo final, que é a efetiva prestação jurisdicional.

Dentre o rol de deveres elencados no artigo 77 do Código de Processo Civil de 2015 estão os de expor os fatos conforme a verdade, não formular pretensão sem fundamento, não criar artifícios ao regular andamento do processo como a produção de provas inúteis ou desnecessárias, deixar de cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, inovar de forma ilegal o estado de fato de bem ou direito litigioso e deixar de informar o endereço para o recebimento das intimações.

O rol de deveres contido no artigo 77 não é exaustivo, pois o próprio caput dispõe que “além de outros previstos neste Código” são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo. No artigo 78 veda a utilização de expressões injuriosas, determinado que todos os participantes do processo se tratem com urbanidade (dever de urbanidade), no artigo 80 elenca as hipóteses de litigância de má-fé (dever de lealdade processual), no artigo 139, inciso VIII e artigo 772, inciso III, o dever de comparecimento em juízo quando determinado pelo magistrado e o dever de prestar informações sobre fatos da causa, no artigo 396 o dever de exibir documento ou coisa que se encontre em seu poder, no artigo 774 dispõe sobre os atos atentatórios à dignidade da justiça praticados no processo de execução e no artigo 1.026, § 2º e 3º sanciona a interposição dos embargos de declaração manifestamente protelatórios.

Os deveres explicitados são corolários da lealdade e da boa-fé, no sentido de que quem de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé, cooperando entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva (art. 5º e 6º do CPC de 2015).

As normas relativas aos deveres das partes e daqueles que participem do processo tem por escopo coibir o abuso de direito na relação jurídica processual, zelando pela paridade de tratamento conferida as partes litigantes e ao efetivo contraditório (art. 7°).

Neste sentido era expresso o CPC de 39, ao dispor no parágrafo único do artigo 3º que “o abuso de direito verificar-se-á, por igual, no exercício dos meios de defesa, quando o réu opuzer, maliciosamente, resistência injustificada ao andamento do processo”.

Os incisos I, II, III e IV do artigo 77 correspondem aos incisos I, III, IV e V do artigo 14 do CPC de 73, que trava dos deveres das partes e de todos que participam do processo. O inciso II do referido artigo 14 que tratava do dever de lealdade e boa-fé encontra correspondente no artigo 5º deste Código.

Conforme disposto no inciso III, do artigo 139 do Código, incumbe ao juiz prevenir ou reprimir qualquer ato atentatório a dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias.

No tocante ao dever de expor os fatos conforme a verdade, todos os que participem do processo não devem proferir afirmações falsas, negações falsas, omitir propositalmente fato ou fatos de relevância no processo. Especificamente em relação as testemunhas o juiz advertirá que incorre em sanção penal quem faz afirmação falsa, cala ou oculta a verdade (art. 458, parágrafo único do CPC).

A desobediência aos incisos I, II e III do artigo 77 pode acarretar a responsabilização das partes e dos intervenientes por litigância de má-fé, nos termos do artigo 80, incisos I, II, IV e VI. Verificada a litigância de má-fé o juiz condenará o litigante ao pagamento de multa no percentual de 1% a 10% do valor da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos sofridos e a arcar com as despesas e honorários advocatícios.

As condutas descritas nos incisos IV e VI do artigo 77, são atentatórias a dignidade da justiça, devendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa de até 20% do valor da causa, conforme a gravidade da conduta (§ 2º do art. 77). Quando o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o valor do salário-mínimo (§ 5º do art. 77).

A resistência injustificada ao cumprimento das ordens judiciais mediante atos maliciosos é sancionada com a pena de multa de caráter repressivo por desrespeito à autoridade judiciária e por acarretar um obstáculo ao exercício da jurisdição.

Conforme explicitado por SERGIO SAHIONE FADEL: “realmente, é pouco adequada a expressão “dignidade da justiça” para traduzir esses atos atentatórios, porquanto o que estes atos constituem, na verdade, é um obstáculo ao exercício da jurisdição, pelo que é mais propícia a linguagem utilizada pelo inciso V do art.14 do CPC” (Código de Processo Civil Comentado, 2004, pág. 37). O referido inciso V do artigo 14 do CPC de 73 fala em ato atentatório ao exercício da jurisdição ao invés de ato atentatório a dignidade da justiça.

As condutas que acarretem inovação ilegal do estado de fato de bem ou direito litigioso, além da aplicação da multa de até 20% do valor da causa, estarão sujeitas ao disposto no § 7º que determina ao juiz o restabelecimento do estado anterior, podendo, ainda, proibir a parte de falar nos autos até a purgação do atentado.

O § 1º do artigo 77 dispõe que o juiz deverá advertir as pessoas mencionadas no caput, que as hipóteses dos incisos IV e VI, poderão ser sancionadas como atos atentatórios a dignidade da justiça.

A multa do § 2º tem natureza de pena pecuniária civil de caráter repressivo por desrespeito a autoridade da justiça e ao exercício da jurisdição, beneficiando o Estado, quando aplicada na justiça estadual, ou a União Federal, quando aplicada na justiça federal.

Os valores das sanções pecuniárias processuais destinadas à União e aos Estados serão revertidos aos fundos de modernização do Poder Judiciário (art. 97 do CPC de 2015), e a sua cobrança será realizada por meio do processo de execução fiscal da Lei nº 6.830/80, quando não pagas espontaneamente no prazo estipulado pelo juiz.

Conforme dispõe o § 4º a multa do § 2º será aplicada independentemente das multas previstas no cumprimento de sentença por obrigação de pagar quantia certa (art. 523, § 1º), e no cumprimento de sentença por obrigação de fazer, não fazer e de entregar coisa (art. 536, § 1º). Deste modo, não ocorrendo o pagamento voluntário no prazo de 15 dias, ou o cumprimento da obrigação de fazer, deixar de fazer e entregar a coisa, além da multa de 10% caberá a multa por ato atentatório ao exercício da jurisdição se o executado violar os incisos IV e VI do artigo 77. Isto porque, a multa aplicada no cumprimento de sentença beneficia a parte adversária (o exeqüente) enquanto a multa do artigo 77 é revertida em favor do Estado ou da União Federal.

As disposições dos parágrafos 2º a 5º não se aplicam aos advogados, públicos ou privados, e aos membros da Defensoria Pública e do Ministério Público, devendo eventual responsabilidade disciplinar ser apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria, ao qual o juiz encaminhará ofício.

O CPC de 39 no § 3º do artigo 63 dispunha que se a temeridade ou malícia fosse imputável ao procurador o juiz deveria levar o caso ao conhecimento do Conselho local da Ordem dos Advogados do Brasil, sem prejuízo da condenação da parte a pagar o décuplo das custas. O comando contido no § 6º do artigo 77 significa exatamente isto, que se os atos forem praticados pelos representantes judiciais, estes responderão junto ao seu órgão de classe ou corregedoria, sem prejuízo da condenação da parte na pena de multa.

O parágrafo único do artigo 14 do CPC de 73 dispõe que “ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB”, a violação do disposto no inciso V do referido artigo, o dever de cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final, constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a 20% do valor da causa. A ressalva foi objeto de ação direita de inconstitucionalidade de nº 2652-6/DF, proposta pela Associação Nacional dos Procuradores de Estado – ANAPE, julgada procedente pelo Supremo Tribunal Federal para dar interpretação conforme a constituição, sem redução de texto, ao parágrafo único do artigo 14 do Código de Processo Civil de 73, para abranger advogados do setor público e privado.

O § 6º do artigo 77 já abarca os advogados públicos, a defensoria pública e o ministério público, além dos advogados privados. Deste modo, pode-se dizer que a disciplina moralizadora do artigo 77 se aplica a todos aqueles que de qualquer forma participam do processo, excluindo-se apenas os advogados, públicos e privados, a defensoria pública e o ministério público. Estão abrangidos no artigo as partes, autor e réu, os intervenientes, o juiz e seus auxiliares, as testemunhas e outros.

O valor das sanções impostas aos serventuários pertencerá ao Estado ou à União (art. 96).

O § 8º do artigo 77 do CPC de 2015 tem especial aplicação nas demandas em que figuram como parte as pessoas jurídicas de direito público, federal, estadual e municipal, representadas em juízo por seus procuradores. Isto porque, ainda é recorrente a aplicação de multa pessoal aos representantes judiciais das pessoas jurídicas de direito público nos casos de descumprimento de decisão judicial por parte destas.  

As disposições do artigo 75 do Código de Processo Civil de 2015 são correspondentes ao do artigo 12 do Código de Processo Civil de 1973.

O Código Civil diz que as pessoas jurídicas são de direito público, interno e externo, e de direito privado (art. 40). As pessoas jurídicas de direito público interno são a União Federal, os Estados e o Distrito Federal, os Municípios e as respectivas autarquias e fundações públicas (art. 41).

A administração pública para se organizar pode se descentralizar criando outros entes públicos para a prestação do serviço público. Deste modo, são criadas as autarquias, fundações públicas e as empresas públicas.

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As autarquias são as pessoas jurídicas de direito público criadas por lei para auxiliar a administração direta, que está regulada na Lei nº 10.683/2003. Equiparadas às autarquias são as fundações públicas, cuja criação deve ser autorizada por lei, assim como para as empresas públicas e sociedades de economia mista, que são pessoas jurídicas de direito privado criadas para exploração de determinada atividade econômica ou prestação de serviço público.

As empresas públicas e sociedades de economia mista, embora integrantes da administração pública indireta, tem natureza de pessoa jurídica de direito privado e deste modo não se enquadra no conceito de Fazenda Pública para ser parte legítima na ação de execução fiscal.

Surgem, também, as entidades paraestatais como o SESI, SESC, SENAC, conhecidas como serviços sociais autônomos, de natureza privada que atuam ao lado do Estado como colaboradores, desempenhando suas atribuições em comparação com os órgãos afins da administração pública em razão de autorização legal.

Os conselhos profissionais, por terem natureza de autarquias especiais, enquadram-se no conceito de Fazenda Pública, tendo legitimidade para propor a ação de execução fiscal para a cobrança das suas anuidades (ADI 1.717/DF).

Conforme dispõe a Constituição Federal de 88, no artigo 131, cabe a Advocacia-Geral da União a representação judicial e extrajudicial da União Federal, e a consultoria e o assessoramento do Poder Executivo Federal. A lei complementar nº 73/93 dispõe sobre a organização e o funcionamento da AGU, como determina a CF.

O § 3º do artigo 131 da Constituição Federal, dispõe que cabe a Procuradoria da Fazenda Nacional, órgão integrante da Advocacia-Geral da União (art. 2º, I, b da LC 73/93) e subordinado administrativamente ao Ministério da Fazenda, a representação judicial e extrajudicial da União Federal na cobrança da sua dívida ativa de natureza tributária. Portanto, possui a PGFN atribuição constitucional específica de representação da União na cobrança da dívida ativa de natureza tributária, embora seja integrante da Advocacia-Geral da União. Os artigos 12 e 13 da LC nº 73/93, dispõem sobre as atribuições da Procuradoria da Fazenda Nacional.

A Procuradoria-Geral Federal é o órgão da Advocacia-Geral da União responsável pela representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas federais, bem como pelas respectivas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos, nos termos do artigo 10 da lei nº 10.480/2002 (STJ, AgRg no REsp nº 1101231/SC).

Do mesmo modo, os Estados e o Distrito Federal são representados judicialmente e extrajudicialmente por seus procuradores, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, conforme determina o artigo 132 da Constituição Federal e o inciso II do artigo 75 do CPC.

A Procuradoria-Geral do Estado é instituída pelo respectivo ente federado, sendo disciplinada nas Constituições Estaduais e na legislação estadual de cada Estado e do Distrito Federal. No Estado do Rio de Janeiro a Procuradoria-Geral é disciplinada nos artigos 176 e 177 da Constituição do Estado, e na Lei Complementar nº 15/80 que é a Lei Orgânica da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro.

Os Municípios são representados judicialmente por seus procuradores ou por advogados particulares contratados para a sua representação, tendo em conta que não há na Constituição Federal dispositivo semelhante ao artigo 132 para determinar a representação dos Municípios por procuradores, organizados em carreira e com ingresso mediante concurso público.

Como os Municípios são entes públicos autônomos (art. 18 da CF) regidos por suas Leis Orgânicas (art. 29 da CF), e que tem competência para criar e organizar o seu quadro de servidores, podendo criar o cargo de procurador do município para a sua representação judicial e consultoria jurídica. A Procuradoria-Geral do Município pode ser disciplinada na Lei Orgânica do respectivo ente.

Os Municípios que não tem quadro próprio de procuradores devem constituir seus advogados particulares por meio de procuração individual ao patrono para sua representação em juízo (STJ, AgRg no Ag nº 1252853).  

Quando o Código fala da representação judicial do Município por prefeito, é no sentido de que o chefe do Poder Executivo possa receber as citações nas ações propostas contra o ente público, constituindo advogado particular para realizar a defesa cabível, bem como para constituir advogado para propor as ações de interesse do Município. A disposição contida no inciso III, do artigo 12 do Código de Processo Civil é decorrente da inexistência de obrigatoriedade legal dos Municípios criarem as suas procuradorias. Nestes casos, a representação judicial do Município é exercida por advogados particulares contratados por meio de processo licitatório. Deve-se ressaltar que o Prefeito não tem capacidade postulatória.

A Advocacia Pública é função essencial à justiça a qual incumbe, na forma da lei, defender e promover os interesses públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por meio da representação judicial, em todos os âmbitos federativos, das pessoas jurídicas de direito público que integram a administração direta e indireta, nos termos da Constituição Federal e do artigo 182 deste Código.

Inovação introduzida com o § 4º do artigo 75 do Código é a possibilidade dos Estados e do Distrito Federal de firmar compromisso recíproco para a prática de ato processual por seus procuradores, em favor de outro ente federado, mediante convênio firmado pelas respectivas procuradorias.

A referida prática de firmar convênios entre as procuradorias estaduais, para a prática de atos processuais, já era realizada ante a necessidade de representação dos Estados em juízos localizados em outras Unidades Federadas. É o caso da representação do Estado nas cartas precatórias.

Nestes casos, a procuradoria de um Estado representa o outro por expressa autorização firmada em convênio. Como, por exemplo, uma ação distribuída no Rio de Janeiro em que seja parte o Estado, mas que tenha sido expedida carta precatória para a prática de atos processuais em São Paulo. Havendo convênio firmado entre as procuradorias estaduais, a Procuradoria-Geral de São Paulo poderá representar o Estado do Rio de Janeiro na referida carta precatória.

Desde modo, o representante judicial da parte não pode ser compelido a cumprir a decisão em seu lugar, conforme determina o § 8º do artigo 77 do CPC de 2015 e o parágrafo único do artigo 14 do CPC de 1973 (em vigor até março de 2016), não podendo ser sancionado pelo descumprimento de decisão judicial pela parte. Apenas o destinatário das decisões judiciais tem o dever de cumpri-las, sob pena de incidirem nas sanções do § 2º.

O descumprimento de ordem judicial por parte da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, ensejará aplicação da pena de multa apenas a pessoa jurídica de direito público e não ao seu procurador, que poderá responder por eventual infração disciplinar junto ao órgão administrativo de controle.

Sobre o autor
Raphael Funchal Carneiro

Advogado formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, pós graduado em direito tributário

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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