O direito de morrer dignamente

05/11/2015 às 18:50
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O presente trabalho visa apresentar questões médicas e juridicas a respeito da autonomia do paciente na escolha do seu fim, sendo o princípio da dignidade da pessoa humana o alvo do estudo.

Sumário: 1.Introdução  2. Morte e dignidade 2.1. Evolução do conceito de morte 3. Princípios e suas questões  4. Ética 4.1. Ética na Medicina 5. Processos na Medicina   5.1. Eutanásia 5.2. Distanásia 5.3. Ortotanásia 5.4. Ortotanásia pelo mundo 5.5. Ortotanásia no Brasil 6.Conclusão 7. Citações 8. Referências Bibliográficas

1. Introdução

Atualmente, os avanços da medicina trazem diversos benefícios à sociedade. Hoje, por um lado, não é mais visto a morte por doenças que antes eram letais, mas por outro lado, há uma incansável luta contra a morte, sem pensar às vezes na dignidade do paciente, adiando-se a morte por tempo indeterminado.

Todos têm o direito de sua morte digna, o que causa certa discussão em seus diversos aspectos: respeitar a vontade do paciente (ou de sua família) ou respeitar a ética médica?

Tal discussão torna-se cada vez mais presente na medida em que é aprofundado o estudo dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional.[1]

As idéias aqui apresentadas, como veremos, valorizam a autonomia do paciente como expressão da dignidade da pessoa humana, e procuram justificar as escolhas feitas pelas pessoas.

  1. Morte e dignidade
    1. Evolução do conceito de morte

Dentre os avanços da medicina, um deles é considerado importante para o presente estudo: a evolução do conceito de morte.

Antes, o que definia a morte era a cessação das atividades cardíacas e respiratórias, hoje, a morte se dá com a paralisação da atividade cerebral – hipóxia (falta de oxigenação dos tecidos, que leva à cessação irreversível da atividade cerebral).

O cenário da morte e a situação do paciente que vai morrer ensejam grandes conflitos, considerando-se o princípio  da preservação da vida e do respeito à dignidade humana.[2]

  1. Princípios do Biodireito e suas questões
    1. Princípio da autonomia

Este princípio diz respeito à relação médico-paciente. Antigamente, a relação médico-paciente era vista como paternalista, onde de um lado havia o poder decisório (imposto pelo médico), e por outro lado apenas a submissão do paciente.

Talvez, aqui, havia uma certa “futilidade médica”, pois o médico impunha tratamentos que talvez não fossem a solução da cura, apenas serviriam de estancamento da doença e prolongamento da vida, causando sofrimento e limitações.

Hoje, a relação médico-paciente encontra-se mais equilibrada, o médico não possui poder supremo sobre seus pacientes, pois estes tem capacidade para se auto determinar e realizar suas próprias escolhas, com a sua própria autonomia ; o paciente deve poder decidir como deseja passar seus últimos dias.

Tratando-se da autonomia, algumas questões podem ser tratadas:

Por um lado, o médico ao impor um certo tratamento, prolonga a vida, interferindo assim no seu nível qualitativo ; por outro lado, a interrupção do tratamento pode diminuir o tempo de vida, contudo, a qualidade do seu final de vida seria elevada.

Sobre o paciente terminal: como resolver tal problema? É sabidamente conhecido os benefícios trazidos pela tecnologia, porém, o que deve ser afastado é o mau uso desses recursos, com suas implicações éticas, sociais e legais. Deve-se evitar a todo custo a exploração e sofrimento inútil. A medicina no cuidado ao paciente terminal deve transitar pela ética sem perder a excelência técnica, pois cada enfermo vive seu processo de forma peculiar.

Declarações de última vontade: é aplicado o disposto na Resolução CFM nº 1.995/2012:

Artigo 1: Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.

Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade. (grifos nossos)

§ 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.

§ 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.

§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.(...)

  1. Princípio da Beneficência

Tal princípio encontra-se fundado no juramento a Hipócrates: “(...)Exercerei minha arte com consciência e dignidade. Considerarei a saúde do meu doente como minha primeira preocupação(...).”

O médico tem o dever de tratar o paciente da melhor forma possível, tem por objeto a promoção do bem da sociedade, especificamente a do paciente ; tal princípio visa maximizar benefícios e minimizar prejuízos.

  1. Princípio da não maleficência

Tal princípio guarda relação direta com os riscos e incertezas que estão naturalmente presentes em toda a atividade médica.

Assegura a não causação de danos ao paciente .

Hipócrates: “Em primeiro lugar, não prejudicar.”

  1. Ética
    1. Ética na Medicina 

Hoje, na medicina, aplica-se o Código de ética, onde o alvo é sempre a saúde do ser humano, respeitando-se sempre os princípios da bioética.

A vida é vista como a integralidade de corpo juntamente com a integralidade do indivíduo , o que gera uma relação. Cessando-se tal relação, cessa-se a vida, pois seria somente uma vida de “corpo presente”.

  1. Processos na Medicina
    1. Eutanásia

                                                                      

A Eutanásia é um processo pelo qual é levado em conta a morte serena. É a prática pela qual se busca aliviar, sem dor ou sofrimento, o final da vida de um doente reconhecidamente incurável.

Deve-se observar a origem etimológica da palavra eutanásia:

Eu (bom) e thánatos (morte), cujo sentido é de boa morte, morte sem dor.

Assim, a eutanásia pode ser definida como  “tirar a vida do ser humano com as considerações humanitárias, para aliviar o sofrimento e a dor”.

A ênfase na eutanásia é dada para a qualidade de vida, não se preocupa com o prolongamento meramente quantitativo do tempo de vida.

Só é eutanásia a morte provocada em doente com doença incurável, em estado terminal e que passa por fortes sofrimentos, movida por compaixão ou piedade em relação ao doente.[3]

Mas, pode-se utilizar da eutanásia?

Na medicina, é aplicado o artigo 41 da Resolução CFM nº 1931/2009, cujo teor diz:

É vedado ao médico: “[...] Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.”

Ora, observa-se que na medicina tal prática é VEDADA, não levando-se em consideração a autonomia do paciente, bem como sua qualidade de vida. Ainda, constitui crime de homicídio perante o Código Penal.

  1. Distanásia

A Palavra se origina do grego “Dys”, que significa “ato defeituoso”.

Tal procedimento significa a ação, intervenção ou procedimento médico que não atinge o objetivo de beneficiar o paciente que se encontra em estado terminal, prolongando-se inutilmente e de forma sofrida a sua morte.[4]

Na França, o mesmo é visto como a “Utilização de processos terapêuticos cujo efeito é mais nocivo do que os efeitos do mal a curar, ou inútil, porque a cura é impossível e o benefício esperado é menor que os inconvenientes previsíveis”.

Aqui, ocorre o mero prolongamento do processo de morte, o que nos leva a diferenciar a vida biológica da vida bibliográfica.

Assim, devem ser levantadas algumas questões:

A distanásia é considerada a ampliação da vida ou o simples adiamento da morte?

A vida deve ser preservada independentemente de sua qualidade, por ser o bem tutelado de forma superior?

A solução talvez seja a utilização do Princípio da Autonomia, que leva a pensar sobre a dignidade da vida, para melhorar, no que possível, a sua qualidade, não no mero adiamento da morte.

  1. Ortotanásia

A ortotanásia é o procedimento visto como a “correta eutanásia”.

Na ortotanásia, é levada em consideração a vontade do paciente ; o paciente deve poder decidir sobre como passar seus últimos dias de vida.

Por um lado, temos presentes os defensores do direito à ortotanásia, os quais asseguram:

  • O respeito à autodeterminação do ser humano e a sua autonomia: liberdade individual ;
  • Todos os seres humanos têm direito á morte (direito de dispor sobre a própria vida) – tal pensamento surge quando a vida não é mais digna – A vida só é vida quando é vida de relação, depois é sobrevida;
  • Há um consenso quanto ao disposto na Declaração Antecipada de Vontade

Por outro lado, temos os defensores do não direito á ortotanásia, os quais possuem seus pontos:

  • O desligamento de aparelhos, mesmo em pacientes com condições irreversíveis é considerado eutanásia, e não ortotanásia;
  • Medidas que facilitem alterar o curso da natureza serviriam de estímulo para que as pessoas portadoras de quadros depressivos entendessem ser socialmente aceitável dispor de suas vidas;
  • Seria um estímulo ao suicídio;
  • Direito à vida é diferente de direito sobre a vida.

Há objeções à licitude da ortotanásia. O principal é o de que, com o intenso desenvolvimento do conhecimento médico, a determinação da irreversibilidade de um quadro de saúde pode ser falha. Trata-se, na verdade, da indagação sobre os limites ou possibilidades do conhecimento científico num determinado momento.[5]

  1. Ortotanásia pelo mundo

Nos EUA:

Em Oregon, verifica-se lei sobre “morte com dignidade”, de 1994, e entrou em vigor em 1997 – Médicos não podem ser criminalmente responsabilizados por prescrever remédios a pacientes terminais, para que eles possam dar cabo às suas vidas)

Em Montana, Vermont e Washington, também existe legislação sobre a morte assistida.

Na Europa:

Na Holanda, há lei sobre eutanásia – de 2001;

Na Bélgica, há lei sobre eutanásia – 2002 ; em 2014 houve a disposição de lei sobre a eutanásia para menores (sem limite mínimo de idade);

Em Luxemburgo, há lei dispondo sobre a eutanásia desde 2009;

Na Suíca, há a permissão para o suicídio assistido.

  1. Ortotanásia no Brasil

No Brasil, em nossa Constituição Federal, temos tutelado o direito à liberdade: valor supremo tanto quanto a vida, considerando-se, ainda, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República.

O direito à vida não é um direito absoluto – pois, há em nossa Constituição, a pena de morte (em caso de guerra declarada, conforme artigo 5º, inciso XLVII, da Constituição Federal[6]¹), e ainda, não é um direito intangível, pois caso fosse, não seria permitido o aborto em nosso país (não é inconstitucional, conforme artigo 128, inciso II do Código Penal²[7])

No Brasil, diferentemente de outros países, não temos LEI que regulamente sobre a ortotanásia.

Atualmente, em nosso país, há apenas a vigência da Resolução CFM nº 1805/2006, a qual dispõe o seguinte:

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.       

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§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.

Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.

Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.

Tal Resolução foi alvo de Ação Civil Pública quando ao seu efeito: estaríamos todos vinculados à ela? Seu efeito é ERGA OMNES, ou seja, todos estão vinculados à ela, podendo assim, o médico, praticar o que foi disposto, se assim resolvido de acordo com a autonomia do paciente ou seus representantes.

  1. Conclusão

Conforme observado, a legislação brasileira tem certa tutela sobre a proteção à vida. Não existe o direito de morrer, pois o principio da dignidade da pessoa humana tutela o nosso direito à vida.

No entanto, o direito à vida não é absoluto, pois não é necessário somente viver – vida biológica, é necessário viver com dignidade – vida de relação.

Quando uma pessoa é acometida de doença cujo sua vida vira um mero “prolongamento de vida biológica”, deve-se levar em consideração sua dignidade, pensando também na sua autonomia: é digno e justo manter uma vida que não é vida de relação?

Certamente, o direito precisa tutelar o direito à vida, bem como o direito à morte digna e à sociedade, mas, também deve-se levar em conta a sua vontade.

Por tal razão, considerou-se legal a aplicação do instituto da ortotanásia ; em prol do direito à morte digna, deve-se deixar morrer ao fazer viver.

7. Referências Bibliográficas

BRASIL, Resolução CFM nº 1995/2012, disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf

BRASIL, Código de Ética Médica, disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2009/1931_2009.htm

BRASIL, Resolução CFM nº 1.805/2006, disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2006/1805_2006.html

BARROSO, Darlan. JUNIOR, Marco A.A. VADEMECUM – Legislação selecionada para OAB  e concursos. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

BULOS, Uadi Lammego. Constituição Federal Anotada. São Paulo: Saraiva, 7ª ed. 2007.

CONTI, Matilde Carone Slaibi. Biodireito: a norma da vida. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004.

GOLDIM, José Roberto. Bioética e Ética na Ciência. Disponível em: http://www.bioetica.ufrgs.br

GOZZO, Débora. LIGIERA, Wilson Ricardo. Bioética e direitos fundamentais. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

SANTOS, Maria Celeste C. L. S. Biodireito: Ciencia da vida. Os novos desafios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.


[1] GOZZO, Débora. LIGIERA, Wilson Ricardo. Bioética e direitos fundamentais. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

[2] CONTI, Matilde Carone Slaibi. Biodireito: a norma da vida. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004.

[3] SANTOS, Maria Celeste C. L. S. Biodireito: Ciencia da vida. Os novos desafios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 286.

[4] SANTOS. Op cit. p. 287.

[5] SANTOS, Maria Celeste C. L. S. Biodireito: Ciencia da vida. Os novos desafios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.  288.

[6] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLVII - não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;

[7] Art. 128: Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário:

  • Se não há outro meio de salvar a vida da gestante

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro:

  • Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

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