O crime antecedente de sonegação fiscal na tipificação do delito de lavagem de dinheiro

11/11/2015 às 10:16
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O texto versará acerca de breves apontamentos quanto à possibilidade de tipificação do crime de lavagem de dinheiro, na hipótese de existência de sonegação fiscal como delito prévio.

Discute-se, atualmente, a (im)possibilidade da tipificação do crime de lavagem de dinheiro, na hipótese em que bens, direitos ou valores são adquiridos com recursos oriundos do crime de sonegação fiscal. Malgrado existam correntes doutrinárias que decretam que é atípica a conduta de lavagem de dinheiro em casos de supressão ou redução de tributos, por inexistência de crime antecedente, há, nessa problemática, relevantes desdobramentos.

Sabe-se, nessa quadra argumentativa, que, desde a edição da Lei n.º 12.683/2012, a lavagem de capitais passou a admitir, como crime antecedente, qualquer infração de temática penal. A alteração legislativa veio a derrubar a taxatividade dos delitos que antecediam o cometimento do branqueamento de capitais, expandindo o espectro de abrangência do tipo penal cotejado, trazendo ao cenário jurídico discussões bastante intrigantes em relação à estrutura típica do delito. Veja-se que a existência de uma infração penal, seja ela uma simples contravenção penal até um vultoso caso de tráfico de entorpecentes, é indispensável para a tipicidade, não obstante não necessitar, sequer, da existência de ação penal tendente a apurar, julgar e condenar o acusado pelo delito prévio (art. 2.º, inc. II, da Lei n.º 9.613/98). Assim, a partir do advento da nova lei, tem-se, por certo, um nebuloso alcance da lavagem de capitais, pois, grosso modo, qualquer crime ou contravenção penal que gere algum tipo de lucro, ou seja, conversão de dinheiro ilícito em idôneo, é suficiente para consumar a lavagem de dinheiro[1].

O crime antecedente, contudo, é autônomo em relação ao branqueamento de capitais, de sorte que, mesmo havendo absolvição no primeiro em razão, por exemplo, de inexistência de provas ou dúvidas quanto à autoria, a lavagem de dinheiro, mesmo assim, se perfectibiliza. Nesse aspecto, avulta-se a seguinte questão: considerando que a configuração do crime de sonegação fiscal depende do prévio esgotamento da via administrativa, enquanto que o crime de lavagem de capitais se consuma assim que os bens, direitos ou valores voltam a circular na economia lícita[2], é possível ter-se um crime de lavagem de capitais cujo delito antecedente seja a supressão ou redução de tributos?

A priori, é de rigor destacar-se que o crime tipificado no art. 1.º da Lei n.º 8.137/90 é um crime material e de dano, cujos elementos objetivos do tipo consistem na efetiva supressão ou redução de tributos ou contribuições sociais. Ainda, o elemento subjetivo é o dolo. À base dessas ponderações, interessa-nos, nos limites desta exposição, o dado momento de consumação do crime, havendo, para tanto, duas possibilidades: quando da conjuntura de todos os elementos normativos do tipo (supressão ou redução de tributos ou contribuições sociais, somado ao não-pagamento) ou após a constituição definitiva do crédito tributário.

Não há se olvidar-se, nesse cenário, a existência da Súmula Vinculante n.º 24, a qual estipula que não há tipificação material do crime de sonegação fiscal antes do lançamento definitivo do crédito tributário. Ou seja, será necessário o prévio esgotamento da esfera administrativa, para, finalmente, se iniciar a persecução penal. Nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal, no habeas corpus n.º 81611, de lavra do ex-Ministro Sepúlveda Pertence, reconheceu que não há condição objetiva de punibilidade, no delito em análise, enquanto não houver o lançamento definitivo do tributo. Em outras palavras, não se consuma o crime quando ainda há discussão sobre a existência (ou não) da exigibilidade do imposto, em tese, devido[3].

Sucede, no entanto, que nem sempre foi assim: o julgado alhures representou uma mudança no entendimento do Pretório Excelso, pois, conforme bem elucida José Paulo Baltazar Júnior¸ antigamente, o crime de sonegação fiscal se consumava quando existentes todos os elementos normativos do tipo, a partir do vencimento do prazo para pagamento do débito tributário:

 

Ao contrário do que se dava no regime da Lei 4.729/65, os crimes do art. 1.º da Lei 8.137, com exceção daquele previsto em seu parágrafo único, são materiais e de dano, consumando-se quando todos os elementos do tipo estão reunidos. Exige-se, então, para a consumação, a efetiva supressão ou redução de tributo ou contribuição social (STF, HC 75.945, Pertence, 1.ª T., u., DJ 13.2.98) (...) Tradicionalmente, entendia-se, então, consumado o crime por ocasião do vencimento do prazo para pagamento[4].

 

Indubitável, pois, pela existência dos precedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido de considerar-se, especialmente por conta da fluência do prazo prescricional do crime do art. 1.º da Lei n.º 8.137/90, em razão do óbice da Súmula Vinculante n.º 24, que o momento da consumação do delito é “no dia seguinte ao término do prazo para recurso voluntário no processo administrativo fiscal[5]”.

À base desse cenário, temos duas linhas de entendimento, prevalecendo-se a primeira: 1. o crime de sonegação fiscal se consuma a partir da constituição definitiva do crédito tributário, vale dizer, após o esgotamento da via administrativa e; 2. o delito contido no art. 1.º da Lei n.º 8.137/90 se consuma quando da conjunção de todos os elementos normativos do tipo, isto é, quando há a efetiva supressão ou redução de tributos ou contribuições sociais e, por via de consequência, a ausência de adimplemento do tributo, ainda que pendente discussão administrativa[6].

Nessa ordem de ideias, as reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal tendentes a afirmar que o momento da consumação do crime de sonegação fiscal é a partir do lançamento definitivo do crédito tributário é, sem dúvida, uma providência plausível para evitar que a sonegação fiscal, enquanto tipo penal, se torne inócua. Explico: uma representação fiscal, assim como um processo judicial, pode demorar muitos anos, face a todos os recursos que o contribuinte tem à sua disposição. Nesse contexto, se, porventura, a consumação do delito se desse, para esses fins, na data da conjuntura de todos os elementos normativos do tipo e, consequente, vencimento do prazo para pagamento do débito tributário (não esqueçamos que o pagamento integral do tributo extingue a punibilidade do agente), o crime de sonegação fiscal, em sua extensa maioria, na prática, poderia estar prescrito, pois, com o advento da Súmula Vinculante n.º 24, é necessário o prévio esgotamento da via administrativa para, então, iniciar-se a persecutio criminis in judicio. Vale dizer, a contagem do prazo prescricional se inicia a partir da consumação do crime. Então, o Pretório Excelso tomou a (necessária) medida para fazer valer o jus puniendi estatal, evitando, deste modo, que o crime de sonegação fiscal se tornasse “letra morta” no ordenamento jurídico brasileiro.

Em outro cenário, muito embora o crime de lavagem de dinheiro seja autônomo em relação aquele que o originou, certo é que há de existir, ao menos, indícios da prática delitiva. Uma ponderada reflexão e imediata conclusão no tocante à sonegação fiscal como crime prévio ao branqueamento de capitais, nos leva a crer ser impossível a tipicidade nesses casos, pois a data de consumação do crime antecedente será posterior ao delito de lavagem de capitais. Portanto, em tese, não haverá crime antecedente.

Não se desconhece, igualmente o entendimento segundo o qual haverá tipicidade de lavagem de dinheiro oriunda de sonegação fiscal, pois, o art. 2.º, inc. II, da Lei n.º 9.613/98 estipula que a ação penal do crime de lavagem de dinheiro “independe do processo e julgamento das infrações penais antecedentes”, nos mesmos moldes do delito do art. 180 do Código Penal, o qual, na conclusão de Vladimir Aras “nem mesmo a Súmula Vinculante 24 impede a acusação por lavagem de dinheiro decorrente de sonegação fiscal”[7].

Entretanto, apesar disso, a questão redunda sobre a seguinte assertiva: deverá existir o crime antecedente (ou indícios) para tipificar o branqueamento de capitais. Nesse passo, as ações penais que visam a apurar a lavagem de capitais provenientes de ilícitos fiscais penais pode, sobremaneira, após impulsionamento da persecução penal em juízo perder o seu objeto. Isso porque as discussões acerca da exigibilidade do crédito tributário perduram por anos, de modo que, na existência de ação penal paralela, das duas uma: ou o processo criminal de apuração da responsabilidade pelo branqueamento de capitais será levado a efeito, sem qualquer problema, ou, na hipótese de reconhecimento, no processo fiscal, da inexigibilidade do tributo ou, até mesmo, outros aspectos que sejam relevantes ao processo penal (como o dolo, por exemplo), a ação penal deverá ser arquivada, trazendo um severo prejuízo ao acusado e ao Estado.

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Portanto, em nossa concepção, levar a efeito uma persecução criminal em juízo que pode, ao fim e ao cabo, se tornar inócua é, sem sombra de dúvida, um ônus que o Estado não pode suportar. Não só isso, o próprio acusado em processo penal, não pode ser processado, julgado e condenado sem ter certeza quanto à existência de elemento normativo do tipo. Isto é, não compactua com os preceitos republicanos de um Estado Democrático de Direito, a marcha de um processo criminal no qual haja, desde sempre, a bem da verdade, dúvida quanto à existência de tipicidade. Destarte, em que pese a prescindibilidade de condenação quanto ao crime antecedente, no âmbito da lavagem de dinheiro, certo é que deverá haver o delito prévio. A norma não exclui essa indispensabilidade de os ativos ilícitos serem oriundos de infração penal.

Por conta disso, pela consumação do crime de sonegação fiscal se perfectibilizar na data em que é constituído o crédito tributário e, em sendo o branqueamento de capitais consumado em momento anterior a isso, não há se falar em lavagem de dinheiro proveniente da supressão ou redução de tributos. Essa é a conclusão que se perfilha nos estreitos limites deste ensaio, porém, o tema gera outros diversos posicionamentos que corroboram a impossibilidade da sonegação fiscal como crime antecedente, tais como, a título de exemplo, o adimplemento integral do débito tributário oriundo da supressão ou redução de tributos ou, ainda, a ausência, neste tipo penal, de inserção de recursos inidôneos aos seus proventos lícitos. Isto é, os valores da sonegação fiscal não são incorporados ao patrimônio do sonegador, eles existem desde sempre e, simplesmente, não são recolhidos aos cofres públicos.

 


[1] Não obstante, há precedentes, especialmente emanado na Ação Penal n.º 470, que a simples ocultação de ativos ilícitos é suficiente para a consumação do crime de lavagem de dinheiro.

[2] Idem 1.

[3] HC 81611, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 10/12/2003, DJ 13-05-2005 PP-00006 EMENT VOL-02191-1 PP-00084.

[4] BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. – 9.º ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 844.

[5] BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. – 9.º ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 845.

[6] Nesse caso, por certo, a ação penal possui severo risco de se tornar inócua, uma vez que com o andamento simultâneo de ação penal e representação fiscal para fins penais é possível, ao fim e ao cabo, haver sentença administrativa favorável ao contribuinte decretando-se, por exemplo, a inexigibilidade do tributo devido. Na hipótese, inexistiria crime de sonegação fiscal, gerando, destarte, um desnecessário desgaste ao acusado em processo penal.

[7] ARAS, Vladimir. A investigação criminal na nova lei de lavagem de dinheiro. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, boletim n.º 237, ago/2012.

Sobre o autor
Marcelo Lemos

Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Especializando em Direito Penal Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Estado do Rio Grande do Sul. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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