Considerações acerca da lavratura do auto de prisão em flagrante contra sargento PMSP Charles Otaga, à luz do ordenamento jurídico pátrio

13/11/2015 às 12:21
Leia nesta página:

O Presente artigo aborda o fatídico episódio que acentuou a crise na segurança pública e a rivalidade entre as polícias militar e civil do estado de São Paulo envolvendo um delegado e um sargento.

Na noite do dia 20 de outubro (terça feira) uma equipe de policiais militares do estado de São Paulo chefiada pelo sargento Charles Otaga prendeu em flagrante Afonso de Carvalho Trudes por ter roubado com emprego de um simulacro – arma de brinquedo – uma loja de calçados, ao ser apresentado no 113º DP, situado em Itaquera, na Zona Leste da capital, o preso assumiu a prática do roubo, entretanto, alegou ter sido torturado antes de ser conduzido à delegacia, tendo sofrido choques no pescoço, na região das costelas e nos órgãos genitais, o que levou o delegado de plantão, Raphael Zanon, a lavrar um auto de prisão em flagrante contra o conduzido pela prática do roubo e outro contra o sargento Otaga por tortura.                

O presente artigo analisará o ocorrido considerando que o noticiado pela mídia tenha sido realmente o acontecido e que não haja nada importante oculto ao público.

A priori é necessário analisarmos o teor do art. 304 do Código de Processo Penal, transcrito in verbis:

Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva, suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto. (Redação dada pela Lei nº 11.113, de 2005)

Percebam que consoante o art. 304 do CPP, apresentado o capturado ao delegado de polícia, com a respectiva prova da materialidade e com os indícios suficientes da autoria, ele (o delegado) deverá obrigatoriamente ouvir o condutor e, convencendo-se da materialidade e dos indícios de autoria imputada ao conduzido, deverá entregar ao autor da captura/condutor  cópia do recibo de entrega do preso; só depois dessa providencia é que estará livre para ouvir as demais testemunhas e a proceder ao interrogatório do capturado.

Ocorre que pelo que foi divulgado pela imprensa o delegado que exarou o APF descumpriu as disposições do indigitado art. 304 CPP, vez que antes de realizar o procedimento obrigatório determinado pela lei ele (o delegado) solicitou a realização de exame de corpo delito no capturado; não que essa providencia não devesse ser tomada, muito pelo contrário. Claro que as lesões existentes no corpo do capturado deveriam ser objeto de exame por médico legista e também apuradas as acusações do preso, mas não da forma intempestiva como foi feita, pois como veremos mais adiante, na nossa humilde opinião, em tese, a lavratura do APF contra o policial militar foi manifestamente ilegal.

Conforme o Direito Administrativo um dos atributos da atuação dos agentes públicos - ato administrativo - é a presunção de legitimidade/veracidade, evidente que essa presunção de legitimidade/veracidade é juris tantum (até prova em contrário), sendo assim, forçoso concluir que até “prova”, repetindo, “prova”! em contrário a palavra do agente público em inequívoco exercício da função, como no caso do sargento Otaga, é absoluta!

Advirta-se que a acusação da “suposta” vítima não é “prova”, tanto é que vítimas estão descompromissadas da obrigação de dizer a verdade; advirta-se, igualmente, que o laudo pericial não atestou, nem poderia, que as lesões existentes no corpo do capturado foram praticadas pelo policial militar, tampouco com intenção de obtenção de confissão da localização da arma utilizada na pratica do crime que ensejou a prisão-captura da “suposta” vítima de tortura. A “suposta” vítima alegou que a “suposta” tortura fora praticada com utilização de aparelho de emissão de descarga elétrica – choque – e com uma faca (instrumento perfurocortante), no que foi desmentido pelo laudo pericial que atestou não haver em seu corpo lesões causadas por choques nem por instrumento perfurocortante, mas sim por instrumento contundente, o que é perfeitamente compatível com as partes da bicicleta que fora transportada no mesmo compartimento – camburão – que a “suposta” vítima.

A Lei processual penal (art.312, in fine, CPP) estabelece que para a prisão de alguém é obrigatório a existência de “prova” da materialidade e indícios “suficientes” de autoria. Como a “suposta” autoria era conhecida, resta a análise da “prova” da materialidade. Contra o policial depunha apenas “indícios” de materialidade, posto que contra o sargento pesava tão somente as alegações da “suposta” vítima, que como já dito, não é “prova”.

Em favor do sargento Otaga pesava o benefício da dúvida, não se trata, obviamente, de invocação ao princípio do in dubio pro reo, visto que esse princípio presta-se tão somente para nortear a decisão do julgador, mas sim de dúvida insuperável acerca da materialidade do “suposto” crime de tortura imputado ao policial militar. Para situações em que paira dúvida absoluta, como no caso sub examine, o delegado deveria ter lançado mão do inquérito policial para apurar a denúncia do capturado (suposta vítima). No IP o delegado poderia, por exemplo, solicitar o documento do itinerário realizado pela equipe de policiais registrado pelo equipamento de localização instalado na viatura, e a partir desse documento requisitar as filmagens de câmeras que, por ventura, existam no itinerário, entre outras providenciais para apurar a denúncia do capturado.

Em última análise, admitindo que houvesse, de fato, “prova” da materialidade do crime de tortura, cabe verificar se a lavratura do APF ocorreu em conformidade com as disposições o art. 302 do mesmo CPP.

Art. 302.  Considera-se em flagrante delito quem:

 I - está cometendo a infração penal;

 II - acaba de cometê-la;

 III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

 IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

Lido o texto do art. 302 surge uma pergunta que deve ser respondia, a saber: em qual das situações do art. 302 o policial acusado pelo preso (suposta vítima) enquadra-se?

Até para um leigo é cristalino que não se enquadra na situação do inc. II, posto que o policial recebera voz de prisão na delegacia de polícia em que apresentou o capturado, e não no mesmo local da “suposta” pratica do crime de tortura, “quando acabara de pratica-lo”.

Hélio Tonarghi[1] citado por Tales Castello Branco nos esclarece, “A hipótese do sujeito que acaba de cometer a infração (CPP, art. 302, II) se diferencia daquela em que o agente é perseguido logo após a infração, ou é encontrado logo depois de sua prática, primeiramente, portanto, por uma circunstância de tempo. [e que] Está implícita, também, uma circunstância de lugar”. (grifo no original)

Prossegue Tonarghi[2], “No primeiro caso (acaba de cometer a infração), entre a infração penal e o surpreendimento do agente não houve nenhum acontecimento relevante, ele foi encontrado em momento imediatamente sucessivo à prática do ato infracional”.

Borges da Rosa[3], também citado por Tales Castello Branco, leciona que, “Entende-se que o agente acaba de cometer a infração, quando já tem cessado o último ato de execução e ainda se acha no mesmo local do crime, logo após tê-lo cometido”. (grifei)

Alguém pode dizer que enquadra-se no inciso IV, porém essa argumentação não se aproveita, na medida que o policial militar condutor do capturado que o acusara de “suposto” crime de tortura não foi encontrado, ele compareceu à delegacia apresentando um capturado pela prática de crime de roubo. Atente-se que ser encontrado é absolutamente distinto de comparecer à delegacia.

Aqueles que não se derem por satisfeito com tais constatações surge outra pergunta: Quais instrumentos, armas, objetos ou papéis que tenham relação com as acusações foram encontradas com o policial condutor do capturado que fizeram presumir ser ele o autor da “suposta” tortura? A arma de fogo está fora de questão; 1º, porque trata-se de uma das ferramentas de trabalho de todo policial; 2º, porque se tivesse alguma relação com o crime deveria ter sido apreendida como sendo instrumento relacionado ao “suposto” crime de tortura, e ao que se sabe, não foi; 3º, porque o laudo pericial constatou que as lesão no corpo do capturado (suposta vítima) foram causas por instrumento contundente, e não acredito que alguém com suas faculdades mentais preservadas possa imaginar que policial tenha arremessado a arma a qual estava trabalhando na “suposta” vítima causando-lhe tais lesões; 4º, porque o conduzido alegou que a “suposta” tortura fora praticada, como visto acima, com instrumento de emissão de descarga elétrica – choque – e com uma faca, objetos estes, que segundo o divulgado pela imprensa não foram apreendidos, muito menos localizados.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Há ainda duas obscuridades que não podem passar despercebidas na lavratura do APF em estudo, uma é o fato de o delegado, conforme entrevista de um deputado do estado de São Paulo concedida à tv, ter recusado-se a juntar ao APF o documento oficial do caminho percorrido pela viatura comandada pelo sargento Otaga, a outra é o fato de que se o delegado estivesse realmente convencido que estava diante de crime de tortura, o que justifica sua omissão quanto aos desdobramentos obrigatórios em caso de “suposto” crime de tortura em que necessariamente haveria a omissão dos outros  policiais da equipe do sargento Otaga perante tal delito? vejamos:

Se admitirmos que o policial militar bandeirante comandante da equipe, de fato, tenha praticado o ilícito penal de tortura, o delegado, em tese, “prevaricou” por não ter autuado em flagrante o restante da equipe como incursos no tipo penal encartado no § 2º do art. 1º da mesma lei de tortura, transcrito in verbis:

 "§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas [tortura] quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos."

Por fim, a confirmação da ilegalidade do APF contra o sargento Otaga veio com o parecer do representante do Ministério Público pugnando pelo relaxamento da prisão em flagrante por falta de “prova” da materialidade e com o deferimento do pedido de habeas corpus pela justiça, senão vejamos:

Constituição Federal

Art. 5º (...)

LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder; (grifei)

Notem que como explícito no texto magno, concede-se habeas corpus somente quando há ilegalidade ou abuso de poder na prisão ou ameaça de prisão. Se a prisão não fosse ilegal a justiça teria indeferido o pedido de habeas corpus e informado aos advogados do policial militar que o Pedido de Habeas Corpus era inepto e que o pedido adequado a ser ajuizado seria o Pedido de Liberdade Provisória.

Sub censura

Notas

1. Hélio Tonarghi, prisão e liberdade, Manual de processo penal, pg. 477. Apud Tales Castelo Branco, Da Prisão Em Flagrante, Ed. Saraiva, 5ª Edição, 2001, pg.46.

2. Hélio Tonarghi, Ob. cit, pg. 477. Apud Tales Castelo Branco, Da Prisão Em Flagrante, Ed. Saraiva, 5ª Edição, 2001, pg.46.

3. Inocêncio Borges da rosa, Processo Penal Brasileiro, Livr. do Globo, 1942, v.2. pg.235/6. Apud Tales Castelo Branco, Da Prisão Em Flagrante, Ed. Saraiva, 5ª Edição, 2001, pg.39.

Fontes

 G1, disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/10/pm-e-detido-por-tortura-e-delegado-deixa-delegacia-escoltado-em-sp.html

G1, disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/10/justica-determina-liberdade-para-sargento-da-pm-suspeito-de-tortura.html

Referências bibliográficas

BRANCO, Tales Castelo. Da Prisão em Flagrante. 5ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2001.

GONÇALVES, Daniela Cristina Rios. Prisão em Flagrante. São Paulo: Saraiva, 2004.

LOPES, Rogério Antonio; OLIVEIRA, Joel Bino de. Teoria e Prática da Polícia Judiciária - À Luz do Princípio da Legalidade. 2ª Edição, revista e ampliada com modelos e tabelas de fiança, 5ª reimpressão. Paraná: Juruá, 2002/2008.

MORAIS, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 6ª Edição, São Paulo: Atlas, 2006.

NASSARO, Adilson luís Franco, A Voz de Prisão em Flagrante. Jus navigandi, Teresina, ano 12, n. 1319, 10 fev. 2007. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/9483/a-voz-de-prisao-em-flagrante

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9ª Edição, São Paulo: RT, 2009.

ROSA, Alexandre Morais; BERCLAZ, Mário Soares. Prisões em flagrante não motivadas devem ser anuladas. Disponível em:http://www.conjur.com.br/2014-jun-04/prisoes-flagrante-fundamentacao-anuladas

SILVA, Jose Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 2ª Edição, São Paulo: Malheiros, 2006.

SOUSA, António Francisco de. A polícia no Estado de Direito. São Paulo: Saraiva, 2009.

Sobre o autor
Paulo Souza

Pesquisador.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos