Uma das formas utilizadas pelas pessoas naturais para iniciarem seu próprio negócio, dentre as possibilidades existentes na legislação brasileira, é se organizando juridicamente sob a modalidade de empresário individual. Esta estratégia, apesar de típica, não traz consigo todas as características de uma sociedade empresária. Uma delas é a sua constituição como pessoa jurídica detentora de patrimônio e personalidades jurídicas distintas de seus sócios, o que impede que seja a pessoa física atuante na modalidade de empresário individual garantidora de seu próprio negócio, por meio da fiança, o que se esclarecerá adiante.
Para que possamos adentrar ao objeto desta análise, salientamos que o empresário individual é um arranjo jurídico sem personalidade jurídica, que corresponde à própria pessoa do empresário, ainda que possua inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) para fins tributários. Rubens Requião ensina que:
À firma individual (hoje denominada firma mercantil individual pela Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994, artigo 32, inciso II, alínea a), do empresário individual, registrada no Registro do Comércio, atualmente Registro Público de Empresas Mercantis, chama-se também de empresa individual. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina explicou muito bem que o comerciante singular, vale dizer, o empresário individual, é a própria pessoa física ou natural, respondendo os seus bens pelas obrigações que assumiu, quer sejam civis, quer sejam comerciais. A transformação de firma individual em pessoa jurídica é uma ficção do direito tributário, somente para o efeito do imposto de renda (Ap. civ. nº 8.447 – Lajes, in Bol. Jur. ADCOAS, nº 18.878/73).
Em simples observação, não há segregação de patrimônio em relação à pessoa titular de uma firma individual como acontece nas pessoas jurídicas, notadamente as sociedades. Ou seja, a pessoa titular de firma individual responde com os próprios bens, sendo que a inscrição perante o CNPJ possui fins meramente fiscais, não tendo o condão de constituir pessoa jurídica não elencada no rol taxativo do Art. 44 do Código Civil, in verbis:
Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:
I - as associações;
II - as sociedades;
III - as fundações.
IV - as organizações religiosas; (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)
V - os partidos políticos. (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)
VI - as empresas individuais de responsabilidade limitada. (Incluído pela Lei nº 12.441, de 2011)
Ressalvando, inclusive, que o ME - Microempresário e o EPP - Empresa de Pequeno Porte, não possuem ligação direta com a definição de empresário individual, sendo esta uma questão meramente tributária/contábil.
Esclarecidos tais pontos, analisaremos a possibilidade de um empresário individual figurar como Locatário, utilizando-se do CNPJ cadastrado, em um contrato de locação, no qual ainda assume as obrigações de fiança (como Fiador/Garantidor) em nome próprio.
Neste sentido, exemplifiquemos tal relação: em um contrato de locação de loja comercial, temos o José Fulano de Tal – EI, figurando como empresário individual. A fim de garantir as obrigações assumidas pelo referido locatário, o Sr. José Fulano de Tal, qualificado com seu CPF, assume a condição de fiador e garantidor do mesmo contrato.
Neste exemplo, a fiança pode ser considerada nula, pois contraria expressamente o próprio conceito de fiança, conforme reza o Art. 818 do Código Civil: “Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não cumpra”. Ou seja, só há fiança quando uma “terceira” pessoa assume, perante o credor, a obrigação de pagar a dívida, se o devedor não o fizer.
A jurisprudência majoritária, inclusive, prevê a invalidade da garantia prestada pela pessoa natural em favor de obrigação firmada pelo empresário individual, considerando o conceito que ambos representam um mesmo ente jurídico:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. ENCARGOS LOCATÍCIOS. LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. NULIDADE DA FIANÇA PRESTADA POR EMPRESÁRIO INDIVIDUAL. ARTIGO 818 DO CÓDIGO CIVIL. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. O empresário individual, ou titular de firma individual, não pode prestar fiança para a empresa por ele mantida, visto a impossibilidade de se transformar uma firma individual em pessoa jurídica.(TJ-SC - AI: 566227 SC 2008.056622-7, Relator: Fernando Carioni, Data de Julgamento: 23/05/2011, Terceira Câmara de Direito Civil, Data de Publicação: Agravo de Instrumento, de Joinville)
DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL - EMPRESÁRIO INDIVIDUAL - PENHORA QUE RECAIU SOBRE ÚNICO IMÓVEL DA TITULAR - FIANÇA PRESTADA EM FAVOR PRÓPRIO - INEFICÁCIA - PATRIMÔNIO E PERSONALIDADE JURÍDICA ÚNICOS - APLICAÇÃO DA LEI 8.009/90 - IMPENHORABILIDADE - RECURSO PROVIDO. 1.Inexiste distinção entre a personalidade jurídica do empresário individual e da pessoa que a titula. 2. A fiança prestada em favor próprio é totalmente ineficaz, já que esta pressupõe a garantia de dívida de terceiro, com personalidade distinta da do fiador. 3.É impenhorável o imóvel residencial do devedor, nos termos da Lei n. 8.009/90, independentemente da dívida ter sido contraída no exercício de atividade de empresa.(TJ-PR - AI: 2816944 PR Agravo de Instrumento - 0281694-4, Relator: Luiz Sérgio Neiva de L Vieira, Data de Julgamento: 22/03/2005, 18ª Câmara Cível, Data de Publicação: 27/05/2005 DJ: 6877)
Por fim, cumpre ressalvar que tal entendimento doutrinário e jurisprudencial não se restringe apenas às relações locatícias, mas a qualquer relação que envolva obrigações a serem afiançadas/garantidas.