A inconstitucionalidade da condução coercitiva no inquérito policial sem prévia intimação

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O presente artigo cuida da condução coercitiva do indiciado na fase de inquérito policial e tem como finalidade averiguar se a prática de tal ato contra aquele que ainda não recebeu a intimação prévia configura evidente inconstitucionalidade/ilegalidade.

RESUMO: O presente artigo cuida da condução coercitiva do indiciado na fase de inquérito policial e tem como finalidade averiguar se a prática de tal ato contra aquele que ainda não recebeu a intimação prévia configura evidente inconstitucionalidade/ilegalidade ao nosso ordenamento pátrio, vez que  apesar de não haver disposição legal sobre condução coercitiva do indiciado, faz-se uma interpretação analógica, aplicando-lhe as mesmas regras. Sendo o instituto frisado permitido apenas quando há a ausência injustificada, a sua prática não encontra respaldo na aplicação subsidiária do princípio geral da cautela do juiz no processo civil para o processo penal, como afirmam alguns, e por fim e mais importante, implicaria num flagrante desrespeito ao  princípio da presunção de inocência, bem como a colisão  com os direitos individuais do indiciado.

PALAVRAS-CHAVES: Condução Coercitiva. Inquérito Policial. Inconstitucionalidade.

ABSTRACT: This article takes care of coercive conduct of the accused in the police investigation stage and aims to ascertain whether the practice of such an act against one who has not received prior intimation sets clear unconstitutionality / illegality to our paternal system, since although there legal provision on coercive conduct of the accused , it is an analog interpretation , applying to it the same rules. As the beaded institute allowed only when there is unjustified absence , the practice is not supported by subsidiary application of the general principle of the judge's caution in civil proceedings for criminal proceedings, as some claim , and finally and most importantly imply an attitude of disrespect the principle of presumption of innocence , and the collision with the individual rights of the accuse.

INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico pátrio autoriza a condução coercitiva diante da negativa de comparecimento em vários dispositivos legais. Destaque-se que o Código de Processo Penal prevê a condução coercitiva da vítima em seu art. 201, § 1º, da testemunha, no art. 218, dos acusados no art. 260, inclusive dos peritos, conforme art. 278. Há que se falar que o Estatuto da Criança e Adolescente também abriu espaço para o instituo em estudo ao prever a condução coercitiva de adolescentes em seu art. 187.

Não obstante a previsão legal e a disposição literal sobre as hipóteses de cabimento, o que se vê nos telejornais e demais meios de informação afasta-se da condução coercitiva autorizada pela lei. Os acusados estão sendo conduzidos coercitivamente às delegacias, independente de prévia intimação e sem sequer posse de mandado de prisão. Como se não bastasse a violação da lei, os acusados acabam se tornando verdadeiras vítimas da mídia (muitas vezes sensacionalista) que de maneira irresponsável  transmite à sociedade informações que expõem a vida íntima do acusado, antes mesmo de lhe ser dada a oportunidade de exercer o contraditório e ampla defesa. Essa exposição produz efeitos irreparáveis para o indiciado, afetando sua vida profissional e pessoal, vale ressaltar que sua  família  acaba se tornando vítima secundário desse processo.

                   nesse diapasão, faz-se necessário o estudo acerca da legalidade destas conduções que hodiernamente se tornam gradativamente mais usuais, a fim de fazer com que a lei seja aplicada nas balizas da vontade do legislador e não de acordo com a arbitrariedade da polícia e do Ministério Público.                                          

1. O instituto da condução coercitiva sob a égide da lei processual penal vigente

Nesse primeiro tópico abordaremos a previsão legal e conceito doutrinário da condução coercitiva em relação ao posicionamento jurídico do sujeito no âmbito do inquérito policial.

                   O estudo da previsão legal e do conceito doutrinário da condução coercitiva na fase de inquérito policial faz-se necessário para o estabelecimento de um paralelo entre a lei processual penal vigente e a sua efetiva aplicação ao caso concreto.

                   Isto posto, passaremos à análise da condução coercitiva de cada um dos sujeitos que protagonizam a fase de inquérito policial.

1.1 Ofendido

                   A condução coercitiva do ofendido está autorizada pelo art. 201, §1º do Código de Processo Penal, ao prever que o ofendido será questionado sobre as circunstância da infração e, “se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade”. Entretanto, é mister observar que tal instituto está restrito aos casos em que o inquérito policial esteja apurando fatos que configurem crimes objeto de ação penal pública incondicionada ou condicionada, uma vez que na hipótese de crime de ação penal privada a condução coercitiva configuraria constrangimento ilegal. Isto porque o art. 57 do Código de Processo Penal prevê a renúncia e o perdão de forma tácita, e o desatendimento a intimação para comparecimento perante a autoridade policial desaguaria em uma eventual renúncia tácita.

                   Ressalte-se que sempre que possível, o ofendido deve ser ouvido pelo magistrado, nos termos do caput do art. 201 do Código de Processo Penal e, ainda que a falta de sua oitiva constitua nulidade relativa, “se devidamente intimado, deixar o ofendido de comparecer sem motivo justo, poderá ser determinada sua condução coercitiva” (REIS e GONÇALVES, 2012, p. 285).

                   Desta feita, conclui-se que a autoridade policial tem a prerrogativa de valer-se da condução coercitiva para tomar as declarações do ofendido, bem como para que ele proceda ao reconhecimento de pessoas e coisas, e à acareação. Contudo, o instituto em estudo somente será cabível nos casos em que houver a ausência injustificada por parte do ofendido.

1.2 Testemunha

A testemunha, assim conceituada como aquele sujeito que é chamado ao processo para esclarecer fatos perceptíveis a seus sentidos e que guardam relação com o objeto do litígio, também pode ser conduzida coercitivamente. O art. 218 do Código de Processo Penal submete a testemunha a comparecer em juízo no dia e hora designados, dispondo que

se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.

Fernando Capez aduz que “o ofendido e as testemunhas podem ser conduzidos coercitivamente sempre que deixarem, sem justificativa de atender a intimações da autoridade policial (...).” (CAPEZ, 2012, p. 132). Ressalte-se que a testemunha faltosa poderá responder por crime de desobediência, além da aplicação da pena prevista no art. 436, §2º do Código de Processo Penal.

1.4 Indiciado

                   A priori, faz-se necessário identificar a figura do indiciado no inquérito policial, sendo este o sujeito a partir do qual o presidente do inquérito policial concluiu pela existência de indícios suficientes de autoria e materialidade do crime investigado, aquele a quem está sendo imputada a prática do ilícito penal. Quando o inquérito é iniciado por prisão em flagrante, o flagrado torna-se desde já indiciado de maneira automática em relação ao crime que ensejou sua prisão.

                   Não há dispositivo que preveja a condução coercitiva do indiciado de maneira expressa na lei processual penal vigente. Entretanto, a doutrina utiliza-se da interpretação analógica a fim de permitir a condução coercitiva do indiciado, fazendo-o com fundamento no art. 6º, V do Código de Processo Penal, uma vez que não se justificaria privar a autoridade policial de determinar a condução coercitiva daquele cuja presença seja essencial no curso da investigação criminal. Ademais, o art. 201, § 1º e o 278, ambos do Código de Processo Penal, conferem à autoridade policial a faculdade de promover a condução coercitiva do ofendido e do perito criminal, não se demonstrando razoável não fazê-lo também em relação ao indiciado sob pena de comprometer a elucidação dos fatos.

                   A propósito, cumpre-nos distinguir a figura do indiciado da figura do acusado. O indiciado, aqui tratado, trata-se do indivíduo apontado como suspeito pelo Estado no transcorrer da investigação criminal. O acusado, por sua vez, é o sujeito passivo da relação processual, aquele que já foi denunciado, no caso de oferecimento de denúncia, ou querelado, no caso do oferecimento de queixa.

                   Em relação ao acusado, a condução coercitiva é apresentada por Reis e Gonçalves como uma faculdade do magistrado que a determinará caso o ele desatenda a prévia intimação para o comparecimento ao interrogatório, ao reconhecimento ou outro ato processual cuja realização possa ser prejudicada pela sua ausência. 

                   A legitimidade da providência dependerá, no entanto, da constatação de que a presença do acusado é indispensável para o ato, de modo que a condução coercitiva para o interrogatório deverá ocorrer, apenas, quando houver necessidade de qualificação ou de esclarecimento sobre a vida pregressa do réu. (2012, p. 363).

                   Destacam os supracitados autores que a condução coercitiva do réu ao interrogatório acaba por se tornar injustificada, uma vez que a ele é conferida a faculdade de optar pelo silêncio em relação aos fatos pelos quais está sendo acusado. Assim preceitua o art. 5º, LXIII da Constituição Federal de 1988: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado".                    Neste sentido, na hipótese do não comparecimento do acusado a atos cuja sua presença não seja indispensável, o único prejuízo ao qual estará submetido será à decretação da revelia.

                   Nosso entendimento é pelo tratamento do indiciado de maneira analógica ao tratamento dispensado pela lei em relação ao acusado, como o faz boa parte da doutrina.

                   Interessante salientar o posicionamento de Nucci ao afirmar que “somente o juiz pode determinar a condução coercitiva, visto ser esta uma modalidade de prisão processual, embora de curta duração”. (2014, p.515). Entretanto, há opiniões divergentes, que afirmam que a condução coercitiva do indiciado, de vítima e de testemunha possa ser praticada também pela autoridade policial.

                   No mesmo sentido, Reis e Gonçalves salientam que sendo o indiciado notificado a comparecer ao Distrito Policial para ser interrogado, terá o dever de comparecer, ainda que apenas para ser qualificado, já que tem o direito de permanecer calado em relação fatos criminosos.

                   A fim de garantir a providência da qualificação do indiciado, o art. 260 do Código de Processo Penal admite a sua condução coercitiva, cujo mandado pode ser expedido pela própria autoridade policial, posto que não equivale a uma ordem de prisão, na medida em que o indiciado será liberado imediatamente após o interrogatório, durante o qual, obviamente, poderá fazer uso do direito ao silêncio no que diz respeito aos fatos. (2012, p. 62).

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2. Condução coercitiva autônoma

                   A condução coercitiva é uma das formas presentes em nossa legislação de restrição á liberdade de locomoção, ou seja é um instituto do direito processual penal conferido  á uma autoridade que autoriza o impedimento do direito de ir e vir para garantir o devido andamento do processo penal. O instituto  da condução coercitiva evoluiu ao longo dos anos e se tornou cabível sempre que aquele que foi regulamente intimado não comparece a audiência ou não justifica sua ausência.

                   A condução coercitiva autônoma surge do poder de cautela dos magistrados, quando não for cabível a prisão preventiva ou for desnecessária a prisão temporária e se caracteriza principalmente por não depender da prévia  intimação.

                   A problemática dessa espécie derivada gira em torno do afastamento de um dos requisitos que mais preenchiam o instituto de segurança em relação ao conduzido. Isto porque sem a prévia intimação se oportuniza um possível juízo de culpa.

                   Frise-se que o que está acontecendo na prática e o deveria ser feito na condução coercitiva autônoma são realidades bem distintas. A condução coercitiva sem prévia intimação almejada no intuito de reter por algumas horas o ofendido, testemunha ou o suspeito, para a fins de elucidação da materialidade e da autoria delitiva, muitas vezes se transforma num dramalhão midiático com exacerbada exposição pública do conduzido.

2.1 A inconstitucionalidade condução coercitiva autônoma

                   Observamos nos tópicos anteriores que o Código Processual Penal regulamenta a condução coercitiva apenas em relação as testemunhas, ofendidos e acusados, não se referindo ao indiciado.

                   Destarte, a falta de expressa previsão legal da condução coercitiva do indiciado, acaba por dar abertura a interpretações diversas, o que traz insegurança jurídica à todo o meio social.        

                   Logo em seguida expusemos que a condução coercitiva autônoma não vem sendo praticada com a prudência devida, resultando em exposição pública negativa da imagem do sujeito, e o fato de ser feita sem a prévia intimação só contribui para bagunçar o instituto. Nesse aspecto entendemos que ela só se justifica quando escorada nos casos em que o intimado se recuse injustificadamente a atender o chamamento ou em que a urgência reclame tal medida.

                   Nesse diapasão, fica clara a  controvérsia frente ao princípio constitucional da presunção de inocência, que apesar de não impedir a possibilidade de prisões cautelares (e isto nem deve ser feito), no contexto de prática da condução coercitiva autônoma o agride no cerne por não ser feito da maneira correta e ainda por permitir sua banalização e juízo de culpa.

                   Frisa-se também que a condução coerciva do sujeito é uma responsabilidade e dever da autoridade judicial, só podendo ser realizada de forma escrita e fundamentada pela mesma, a extensão dessa prerrogativa a autoridade policial e ao ministério público implica em erro e ofensa a constituição que só atribui o encargo ao juiz.

                   Em suma, concluímos que ninguém pode ser obrigado a depor sem a prévia intimação feita por uma autoridade judicial, isenta de julgamento e juízo valorativo, preservado assim os princípios que norteiam o nosso ordenamento jurídico e com estrita observância  das garantias individuais do indivíduo.

                 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

                  Impende concluir, que o atual instituto da condução coercitiva no Brasil é um método falho,  ou pelo menos não funciona da forma como deveria.

                  Parece-nos inadequado e impróprio a ordem de condução coercitiva sem prévia  intimação,  já que  para atingir  suas finalidades acaba pecando na forma e danificando um dos mais importantes  dos princípios constitucionais, que é o da presunção de inocência.

                   O direito de locomoção já procedeu a diversos conflitos ao longo da história, sendo um dos mais relevantes direitos fundamentais conquistado nesse decorrer, é de suma importância que escolta em torno dele seja mais vigorosa. 

                   Assim,  este trabalho reconhece a necessidade de supressão de toda norma ou situação que contrarie o direito de ir e vir e não esteja em  conformidade com o ordenamento constitucional e seus princípios.


REFERÊNCIAS

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

REIS, Alexandre Cebrian Araújo; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios; coordenador LENZA, Pedro. Direito processual penal esquematizado. São Paulo : Saraiva, 2012.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 27ª. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

SPITZCOYSKY, Celso. O direito constitucional ao silêncio e suas implicações. Disponível em:http://jus.com.br/artigos/7361/o-direito-constitucional-ao-silencio-e-suas-implicacoes#ixzz3dOpC2p9i. Acesso em: 01 de junho de 2015.

BRITTO, Aldo Ribeiro. Particularidades da condução coercitiva no inquérito policial. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12490&revista_caderno=22. Acesso em: 01 de junho de 2015.

REZENDE, Alex Levi Bersan. Condução coercitiva: Controvérsias á luz do garantismo penal. Disponível em: https://periodicos.dpf.gov.br/index.php/RSPC/article/view/258/224. Acesso em: 16 de junho de 2015.

Sobre os autores
Júlia Veloso dos Santos

Advogada, mestranda em Sociedade, Ambiente e Território pela UFMG/UNIMONTES, graduada em Direito pela UNIMONTES.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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