1. INTRODUÇÃO
Define-se o Direto, enquanto objeto de estudo, como conjunto de princípios e regras jurídicas que regulam a vida em sociedade. Como tal, o conteúdo do Direito não é apreensível na natureza, não se depreende de uma iluminação divina, não cai do céu, nem emerge da terra. É, ao contrário, é um fenômeno político-cultural, decorrência da construção gradativa e histórica de parâmetros de vida em sociedade. Não se deve olvidar, porém, que tais parâmetros são uma decorrência lógica da vida vem sociedade: são consequências políticas da organização econômica que foi pouco a pouco constituindo a vida humana em comunidades, desde os tempos primevos.
Desse modo, o Direito está presente em cada situação do mundo da vida. Bem afirma Karl Engish (1988, p. 12) que
não há ninguém que não viva sob o Direito e que não seja por ele constantemente afetado e dirigido. O homem nasce e cresce no seio da comunidade e - à parte casos anormais - jamais se separa dela. Ora, o Direito é um elemento essencial da comunidade. Logo, inevitavelmente, afeta-nos e diz-nos respeito.
A evolução histórica do Direito o caracterizou como conjunto de regras de organização social e política (com uma base, uma infraestrutura econômico-social). Na medida em que a sociedade foi se modificando no que respeita aos modos de produção, às estruturas de poder, à concentração demográfica, ao desenvolvimento urbano, o Direito foi pouco a pouco sendo ajustado como mecanismo de regulação social (servindo, no mais das vezes, como mecanismo de dominação político-estatal).
O fato é que as normas jurídicas por muitos séculos tiveram variações na caracterização de suas fontes, que não eram formalizadas. Basicamente, porém, originavam-se dos costumes, com a interferência direta sobre o seu conteúdo por parte da religião e dos detentores do poder (este, no mais das vezes, absoluto).
Tal quadro só sofreu mudanças significativas nos últimos séculos - especialmente nos últimos três séculos - com a gradativa consagração político-jurídica do chamado estado de direito. Luigi Ferrajoli (2002, p. 687-688) identifica o estado de direito como caracterizado:
No plano formal, pelo princípio da legalidade, por força do qual todo poder público – legislativo, judiciário e administrativo – está subordinado às leis gerais e abstratas que lhe disciplinam as formas de exercício e cuja observância é submetida a controle de legitimidade por parte dos juízes delas separados e independentes (a Corte Constitucional para as leis, os juízes ordinários para as sentenças, os tribunais administrativos para os provimentos); b) no plano substancial da funcionalização de todos os poderes do estado à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das vedações legais de lesão aos direitos de liberdade e das obrigações de satisfação dos direitos sociais, bem como dos correlativos poderes dos cidadãos de ativarem a tutela judiciária.
Já no século XX, ganhou um caráter mais especial ainda, com a emergência do estado democrático-constitucional de direito. A peculiaridade da imposição cultural do Direito no mundo da vida, no estado de direito e, mais recentemente, no estado democrático-constitucional de direito, é que essa imposição está baseada na institucionalização das normas.
A imposição cultural e institucionalizada de normas não se dá, porém, de modo apartado do restante das relações sociais, políticas e econômicas. Na realidade, o Direito está dentro do sistema social, é um subsistema social - faz parte das relações sociais, políticas e econômicas -, só que possuindo uma matriz própria, ou seja, a normatividade. A peculiaridade do Direito enquanto subsistema social consiste exatamente na circunstância de que ele regula comportamentos públicos e privados através de mandamentos de dever ser, através de normas, que são imponíveis a todos (regulação esta condicionada pelas próprias relações sociais, políticas e econômicas).
Já em relação às suas áreas específicas (penal, civil, tributário etc), o Direito é um sistema próprio, um sistema jurídico com vários subsistemas. Os subsistemas jurídicos (as áreas específicas) estão interligados através de princípios jurídicos gerais (por vezes comuns a todas as áreas, como o princípio da igualdade, por exemplo), e por uma referência jurídica necessária, superior às regulações jurídicas de cada área: a Constituição (na qual parte dos princípios jurídicos gerais estará incluída). Cada subsistema é, no entanto, composto por um conjunto consistente de normas específicas - as regras jurídicas.
2. NORMAS JURÍDICAS
Considerando-se que o Direito, como âmbito de regulação da vida em sociedade, vale-se de normas, a definição do seja uma norma jurídica consiste em um aspecto básico para qualquer um que queira mergulhar no estudo do Direito, especialmente no estudo das fontes jurídicas. Não obstante isso, a concepção de norma jurídica tem sido objeto de frequentes confusões. Tal se dá porque muito facilmente se reduz a concepção de norma jurídica à lei, desconsiderando-se que a norma é o conteúdo e a lei é sua forma (uma das formas, embora a principal).
De qualquer modo, importa estudar-se a forma e o conteúdo. Assim, primeiramente serão analisadas as características gerais das leis no sistema jurídico (em ênfase o sistema jurídico brasileiro); em seguida, analisar-se-ão as normas, em seus aspectos principais, destacando-se os princípios jurídicos como normas.
2.1 As normas jurídicas
As leis são a forma que as normas tomam no mundo jurídico positivado. A lei tem caráter descritivo; a norma caracteriza-se como mandamento de dever ser. Assim, por exemplo, o artigo 121 do Código Penal brasileiro prevê: “Matar Alguém. Pena: Reclusão, de 06 a 20 anos.” – este é o texto legal, a lei. Implicitamente, tem-se que ‘não se deve matar’, ou ‘se matar alguém, deverá receber uma pena de 06 a 20 anos de reclusão’ – estes são enunciados normativos- a norma propriamente dita.
De imediato importa frisar que não necessariamente uma norma, para ter caráter jurídico, deverá ter a forma de lei, mas sim que as leis têm em seu conteúdo normas, as quais indiscutivelmente terão caráter jurídico por absorverem as características formais das leis.
As normas consistem, então, em mandamentos de dever ser (mandamentos de conduta, de direitos e obrigações, de diretrizes ou de procedimentos formais), podendo se dirigir aos indivíduos em geral e às instituições privadas e públicas1. Como mandamentos de conduta, indicam proibições, permissões ou obrigações (ex. artigo 155, caput, do Código Penal). Como mandamentos de direitos, indicam direitos e obrigações correlatas, e conferem poderes (ex. artigo 186 do Código Civil). Como mandamentos de diretrizes, indicam princípios (ex. art. 5º, caput, da Constituição). Como mandamentos de procedimentos, indicam formas para que se produzam atos jurídicos ou até mesmo outras normas (ex. artigo 61 da Constituição).
Evidentemente, as normas jurídicas contêm implícito o objetivo de regular as relações sociais nas mais diversas situações possíveis. Assim, através das normas se prevê que o cometimento de crimes estará sujeito a sanções, e com isso se quer evitar que as pessoas lesionem direitos fundamentais de outras; prevê-se que os danos materiais ou morais causados por descumprimento de contratos, por exemplo, deverão ser economicamente compensados por quem os causou; prevê-se que para que se possa reclamar, no Judiciário, direitos lesionados, deve-se seguir uma série de procedimentos e critérios formais (advogado constituído, tipo de ação e procedimento etc).
Por evidente, não se trata aqui de uma visão romântica, de que tal regulação destina-se apenas a promover o bem comum. De diversas maneiras está demonstrado que o Direito é instrumento de dominação e de controle social, e, por decorrência, as normas que o compõem servirão a este fim. Ressalve-se, porém, que há uma constante tensão dialética entre os diversos aspectos que determinam as finalidades jurídicas, de maneira que se possibilita visualizar que a dominação e o controle social não necessariamente são realizados em nome de poucos em detrimento de muitos, possibilitando-se, ao menos formalmente, a inversão desta lógica.
De outra parte, deve-se ressaltar que a concepção de norma, sob o ponto de vista lógico-formal, leva-nos à norma como proposição, entendida como uma proposição de dever ser (como um comando). A norma prevê um fato como hipótese abstrata e conecta a ele uma possibilidade jurídica, uma consequência jurídica, e esta é possivelmente - mas não necessariamente - uma sanção. Neste sentido vale destacar Norberto Bobbio (Teoria do ordenamento, p. 29), que afirma:
quando se fala de uma sanção organizada como elemento constitutivo do Direito nos referimos não às normas em particular, mas ao ordenamento normativo tomado em seu conjunto, razão pela qual dizer que a sanção organizada distingue o ordenamento jurídico de qualquer outro ordenamento não implica que todas as normas daquele sistema sejam sancionadas, mas somente que o são em sua maioria.
Destaca-se que as normas jurídicas reguladoras da vida social, em especial aqui as normas legisladas, possuem caráter abstrato. Vale dizer, sua hipótese e possível consequência jurídica estão abstratamente previstas, dirigindo-se para o futuro - um futuro que pode não ocorrer nunca. Bem salienta Karl Engish (1988, p. 57) que
tanto a hipótese legal quanto a estatuição (consequência jurídica) são, enquanto elementos da regra jurídica, representadas por conceitos abstratos. (...) Por isso, a 'hipótese legal' e a 'consequência jurídica' (estatuição), como elementos constitutivos da regra jurídica, não devem ser confundidas com a concreta situação da vida e com a consequência jurídica concreta.
Enfim, está explícito em cada norma do Direito, um enunciado normativo, descrevendo a situação jurídica. Está implícito, de outra parte, um mandamento normativo, indicando os comportamentos devidos e os comportamentos proibidos; os direitos existentes e as obrigações decorrentes; os procedimentos possíveis e necessários. Enunciado normativo e mandamento normativo são dois conceitos complementares, em que o enunciado tem caráter descritivo, enquanto que o mandamento é o significado do enunciado normativo enquanto mandato de dever ser.
2.2 As leis
Uma lei (do latim lex) nada mais é do que uma regra escrita, segundo procedimentos previstos no sistema jurídico. A lei é identificada, então, como norma formal (em sentido estrito) por ter a forma escrita e ser aprovada pelo Poder Legislativo (o que a diferencia de regras morais ou religiosas, por exemplo).
Quanto à aprovação pelo Poder Legislativo, ela deve seguir os parâmetros previstos nos artigos 59 a 69 da Constituição. Cada espécie legal seguirá procedimento próprio, desde quem é habilitado a propor o texto legal até o quorum (quantidade mínima de presentes e votantes) necessário para sua aprovação.
Quanto à sua forma escrita, as leis são compostas por artigos, que podem estar contidos em títulos, capítulos e seções. Os artigos podem ser divididos em parágrafos (representados pelo símbolo §) incisos (representados por números romanos) e alíneas (representadas por letras minúsculas).
As leis possuem características peculiares, que as singularizam frente a regras não legisladas: generalidade (têm eficácia erga omnes); abstração (dirigem-se a hipotéticos fatos futuros); estatalidade (possuem origem estatal); coercibilidade (possibilitam o uso da coerção estatal); imperatividade (impõem-se a todos).
Podem ser identificadas como espécies legais propriamente ditas: as leis complementares, as leis ordinárias e as leis delegadas. São, ainda, espécies legais em sentido amplo: as emendas constitucionais, as medidas provisórias e os decretos legislativos2.
As emendas constitucionais são as mais importantes alterações legislativas possíveis previstas em nossa Constituição, pois significam a alteração de normas hierarquicamente superiores dentro do sistema jurídico brasileiro: as próprias normas constitucionais. Sua iniciativa e limites estão previstos no artigo 60 da Constituição (destacando-se seus incisos I, II e III, que prevêem requisitos específicos para a titularidade de sua proposta). As emendas deverão ser aprovadas por três quintos dos membros de cada casa do Congresso Nacional.
As leis complementares destinam-se especificamente a complementar uma disposição constitucional, federal ou estadual, que as prevê como necessárias (assim, por exemplo, o artigo 169 da Constituição Federal e a Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar nº 101, de 04/05/2000). Sua iniciativa está prevista no artigo 61 da Constituição, devendo ser aprovadas por maioria absoluta nas duas casas do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal).
As leis ordinárias são cabíveis para as situações em que não estiver prevista a necessidade de lei complementar. Sua iniciativa está prevista no artigo 61 da Constituição, devendo sua aprovação se dar por maioria simples nas duas casas do Congresso Nacional.
As leis delegadas são espécies legislativas elaboradas pelo Presidente da República, mediante prévia resolução delegativa do Congresso Nacional, na forma e limites do artigo 68 da Constituição3. Deverão, a exemplo das leis ordinárias, ser aprovadas por maioria simples.
As medidas provisórias não são leis propriamente ditas, mas sim propostas legislativas especiais, de iniciativa da presidência da República, que têm, de imediato e provisoriamente força (eficácia) de lei. Sua iniciativa e sua possibilidade estão previstas no artigo 62 da Constituição, devendo sua aprovação se dar por maioria simples, após o que se converterá em lei ordinária.
Os decretos legislativos são as espécies legais destinadas a regulamentar as matérias constantes nos incisos I a V do artigo 49 da Constituição, devendo ser aprovados por maioria simples de votos.
2.3 Os princípios jurídicos
O Direito consagra normativamente valores sociais, culturais e políticos. Ocorre que há alguns desses valores que se destacam por serem núcleos valorativos, eixos de unidade entre vários outros valores. Num plano jurídico macro, pode-se afirmar que são valores nucleares gerais do sistema jurídico aqueles que resguardam a condição humana de existência, fator legitimante do sistema jurídico. Num plano específico, porém, cada área do Direito terá os seus próprios valores nucleares, identificáveis de acordo com o conteúdo da área jurídica para a qual servem como ponto de unidade (naturalmente, em consonância com os valores nucleares gerais do sistema jurídico).
O que se tem é que a concretização normativa de tais valores superiores se dá através da formulação de princípios. Pode-se dizer, assim, que os princípios jurídicos representam o lugar normativo privilegiado em que estão localizados alguns poucos mas indispensáveis valores de racionalização da convivência humana em sociedade, e de unidade operacional do Direito em cada área de sua atuação no mundo.
Assim, os princípios jurídicos podem ser definidos como diretrizes de conteúdo para o sistema jurídico, possibilitando o direcionamento da criação, interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral. O que caracteriza e consagra o princípio para o sistema jurídico é, então, o dimensionamento de sentido que ele propicia, na análise das demais normas. Ele é, sobretudo, a consagração dos valores superiores do sistema, cuja realização deve ser otimizada hermeneuticamente. Como afirma Robert Alexy (1993, p. 86), “os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes”.
Tal pressuposto valorativo, portanto, não atinge a normatividade dos princípios jurídicos, especialmente quando constitucionalizados: no seu primeiro plano (formal). Eles podem inclusive ser normas legisladas, tendo a imperatividade normativa como característica singular inicial. Como normas, entretanto, sua aplicabilidade não é, ordinariamente direta, mas sim relacionada a regras específicas (estas sim com aplicação direta aos fatos). Se as regras específicas estiverem conformadas aos princípios, sua aplicação estará legitimada; se não houver tal conformidade, sua aplicação deve ser refutada.
3. AS FONTES DO DIREITO: ANÁLISE GERAL
3.1 A palavra fonte
Semanticamente, fonte é a origem de algo. Nesse sentido, falar-se de fonte do Direito é falar-se primeiramente sobre em que âmbito genericamente é produzido o conteúdo jurídico aplicado no cotidiano de cada um de nós. E esse conteúdo tem origem basicamente no Estado.
Através da edição das normas constitucionais, das leis, dos atos administrativos e das sentenças, o Estado identifica o que está e o que não está contido no mundo jurídico enquanto conteúdo aplicável aos fatos da vida cotidiana, e o que significa e o que não significa cada um desses conteúdos. Sobretudo em termos legislativos (já que Direito é construído formalmente sobre o princípio da legalidade), o Estado se caracteriza como fonte normativa. Afinal, definições como o que é e o que não é um fato ilícito, quais são as regras a serem seguidas para elaboração de contratos, quais são os procedimentos a serem seguidos para se demandar em juízo uma pretensão jurídica, são tarefa primariamente legislativa (embora carentes de interpretação para serem aplicadas), e tarefa por excelência do Estado. Tal preceito é, aliás, expressamente consagrado na Constituição (por exemplo, no seu artigo 22, que versa sobre competências legislativas).
Não significa, porém, que apenas o Estado defina os conteúdos jurídicos de maneira determinante e final, mas sim que o Estado, por excelência, tem a função de produzir mandamentos jurídicos ou referendar os conteúdos produzidos por outras instâncias sociais (pelos doutrinadores, por exemplo).
Em um sentido estrito, no entanto, a expressão fonte indica a origem específica de um determinado conteúdo jurídico. Nesse sentido, interessa de onde se originam os conteúdos jurídicos aplicados e aplicáveis. Aqui já não se fala de fonte de produção (órgão público ou instância social pelos quais é produzido o conteúdo), mas sim da fonte original ou derivada dos conteúdos jurídicos que compõem o Direito.
Pode-se falar, então, em fontes imediatas (regras e princípios jurídicos) e em fontes mediatas (costumes, doutrina, jurisprudência e tratados internacionais), de acordo com a base de conteúdo que dão ao Direito. Estas se estruturariam da forma que se abordará nos itens seguintes (incluídas as múltiplas relações entre elas).
3.2 Fontes imediatas
As fontes imediatas dividem-se, analiticamente, em dois tipos: regras e princípios jurídicos. Importa frisar que tais tipos normativos ordinariamente mesclam suas características, pois assim como as regras também em boa parte os princípios estão legislados. A distinção se dá, por consequência, mais por sua operacionalidade no sistema jurídico do que necessariamente por sua forma.
3.2.1 Regras Jurídicas
As regras jurídicas são regras (de conduta, de direitos e obrigações ou de procedimentos formais) impostas coativamente pelo Estado, que possuem caráter genérico e abstrato. As regras ordenam, proíbem ou estimulam condutas, e, ainda, estabelecem direitos e procedimentos (requisitos de validade) para ações privadas e estatais.
Como já se afirmou nas páginas anteriores, a lei (em seus diversos tipos) é o principal ‘invólucro’ formal das regras jurídicas institucionalizadas, constituída de normas jurídicas que ganham características formais por terem sido objeto do processo legislativo constitucionalmente previsto. Assim, as regras legisladas são fontes imediatas do Direito (ou diretas, como preferem alguns).
3.2.2 Princípios jurídicos
Em linhas anteriores os princípios jurídicos foram definidos como diretrizes de conteúdo para criação, interpretação e aplicação do Direito - em especial das normas legisladas. Os próprios princípios são normas, podendo ser inclusive - como no mais das vezes o são - normas legisladas. Mas são, em qualquer forma - legislada ou não - normas de caráter especial, pois indicam que todas as demais normas devem ser compatibilizadas com alguns valores superiores do sistema jurídico, expressos nos próprios princípios.
3.3 Fontes mediatas
As fontes mediatas dividem-se diversamente segundo os autores que lidam com a teoria geral do Direito. Opta-se aqui por uma divisão que possibilite ao leitor uma visão panorâmica e crítica das fontes: costumes, doutrina, jurisprudência e tratados e convenções internacionais.
3.3.1 Costumes
Os costumes consistem em parâmetros jurídicos decorrentes do uso geral e constante de regras sociais de comportamento, que as pessoas observam em suas vidas pela convicção de corresponderem a uma necessidade. Eles podem se definidos como comportamentos sociais constantes e habituais, comuns a um vasto grupo de pessoas, que assim agem porque acreditam na necessidade de assim o agir.
Partindo-se disso, verifica-se que dos costumes derivam regras sociais e/ou morais de conduta, de uso geral e constante, as quais as pessoas observam em suas vidas pela convicção de corresponderem a uma necessidade. Importa destacar que dos costumes podem derivar regras específicas (‘as pessoas devem agir de tal modo’) ou regras genéricas (‘as pessoas devem decidir por si mesmas como devem agir em determinadas situações’).
São elementos que compõem os costumes: a observância constante - elemento objetivo - por parte de um grande número de pessoas; e o convencimento geral, por parte daqueles que os observam, da necessidade de sua observância - elemento subjetivo. Quanto à observância constante, deve-se alertar que não se trata de observância irrestrita por certos agrupamentos humanos, mas apenas de observância habitual e prolongada dos costumes. Ademais, a observância constante por um vasto grupo de pessoas indica que não se trata de modismo comportamental, mas sim de um modo de agir internalizado pelos indivíduos.
Quanto ao convencimento de sua necessidade, deve-se ressaltar que as motivações para tanto podem ser muitas e diversas, interessando juridicamente, no entanto, que, seja qual for a motivação, as pessoas acreditem que aqueles costumes sócioculturais deves ser observados. Portanto, o convencimento geral da necessidade de seguir ou respeitar as regras sociais derivadas dos costumes indica que os costumes têm algum tipo de força moral sobre os indivíduos, seja positiva (induzindo a ações) seja negativa (induzindo ao não fazer).
Importa frisar, ainda, que os costumes, embora não sendo escritos, podem ser concebidos como juízos normativos, mas de caráter complexo. Explique-se: não há necessariamente, a partir dos costumes, um mandamento proibitivo ou permissivo, mas apenas hábitos comportamentais considerados bons ou maus, adequados ou inadequados. É dos juízos valorativos sobre hábitos comportamentais que se pode depreender juízos normativos. Enfim, os costumes servem como base tanto de interpretações jurisprudenciais ampliativas quanto de interpretações restritivas.
A título de exemplo, o Código Penal brasileiro trazia até 2005 normas que se referiam à figura normativa da ‘mulher honesta’ em tipos penais incriminadores. Tal figura normativa baseava-se em hábitos sociais sobre comportamento e moral sexual, que indicavam que as mulheres não deveriam manter relações sexuais fora do casamento - a partir disso, formou-se um inicial conceito jurídico de mulher honesta e o questionamento era: “quais mulheres eram sexualmente honestas?”. Com o passar dos anos e a gradativa mudança nos hábitos sociais, emergiu a liberdade sexual da mulher como predicado de sua cidadania. Isso inverteu pouco a pouco o conceito jurídico, de forma que a honestidade sexual a ser vista como pressuposto: a princípio, todas as mulheres são sexualmente honestas. Com isso, a aplicabilidade dos tipos penais em questão modificou-se substancialmente. A mudança dos costumes sociais, portanto, pode modificar radicalmente a interpretação jurídica.
3.3.2 Doutrina
Preliminarmente, ao se incluir a doutrina (junto com os costumes e a jurisprudência) entre as fontes do Direito, explicita-se que os conteúdos jurídicos não estão necessariamente previstos plenamente em normas legisladas. Bons exemplos disso estão na boa fé contratual do Direito Civil e na diferença entre culpa consciente e dolo eventual do Direito Penal: são questões que povoam a vida jurídica cotidiana e cuja delimitação depende de forma direta da doutrina e da jurisprudência.
Trata-se do conhecimento teórico e/ou científico produzido sobre os conteúdos - normativos ou subnormativos - do mundo jurídico, definindo ou especificando conceitos operacionais para que o Direito seja aplicado a situações concretas do mundo da vida. Seu papel é singular, pois através das reflexões dos teóricos do Direito se apontam os rumos gerais que as interpretações jurídicas têm e podem ou devem vir a ter ao longo do tempo e diante das transformações culturais que ocorrem na sociedade. De maneira que serve a doutrina, inclusive, como instrumento de atualização dos conteúdos normativos do Direito.
Decorre da elaboração dos diversos estudos dos fatos enquanto fenômenos jurídico-normativos, das consequências jurídicas dos fatos enquanto imposições estatais e das definições, categorias e institutos jurídicos enquanto valorações sobre as normas e os fatos jurídicos.
3.3.3 Jurisprudência
Consiste no conjunto de decisões judiciais constantes e repetidas sobre temas semelhantes, emanadas principalmente dos tribunais - embora não sejam desprezadas as decisões de juízes singulares. Representa a direção efetiva que o Direito toma em sua aplicação concreta, em sua interpretação in casu.
Destacam-se como conteúdos jurisprudenciais as súmulas, por registrarem de modo específico o entendimento dos Tribunais sobre determinados temas. Elas consistem em enunciados específicos, de um determinado tribunal, sobre um assunto que reiteradamente é julgado por tal órgão jurisdicional num mesmo sentido. Assim, o tribunal define previamente que o seu entendimento sobre aquele assunto, a priori, será o que estiver expresso na súmula.
3.3.4 Tratados e Convenções Internacionais
Consistem em acordos entre Estados soberanos, sobre temas específicos, indicando normas (ordinariamente normas-princípio) que os Estados signatários se comprometem a tentar cumprir. Envolvem questões ligadas às relações econômicas entre os diversos países, as relações políticas, os problemas ambientais etc. Têm especial importância, entretanto, quanto à fixação de compromissos internacionais de respeito aos direitos humanos.
3.4 AS RELAÇÕES ENTRE AS FONTES
Na definição do conteúdo do Direito aplicável à solução de problemas concretos do mundo da vida, utilizam-se as diversas fontes de maneira relacionada, de forma reciprocamente complementar. Não há um recurso exclusivo às regras, aos princípios jurídicos, ou a qualquer das fontes mediatas.
Os processos definidores desses conteúdos aplicáveis são processos hermenêuticos, em que são utilizados diversos métodos para se chegar ao conteúdo específico aplicável ao caso. Procede-se, assim, a uma combinação de conteúdos e operações jurídicas interpretativas, para se definir como atuará o Direito diante de determinadas situações concretas. As relações entre as fontes do Direito podem ser assim representadas:
Fontes de conteúdo do Direito
Fontes imediatas:
Normas Legisladas
Tratados e convenções
Fontes mediatas:
Costumes
Doutrina
Jurisprudência
Princípios Jurídicos
É evidente, porém, por tudo que se afirmou antes, que o ponto partida e de referência para tal definição são as regras e os princípios jurídicos (estes em especial quando legislados) - ou seja, as fontes imediatas. Afinal, neles estão dispostos juízos de dever ser, com as peculiaridades de serem - cada norma à sua maneira: genéricos, abstratos, estatais, coercitivos e imperativos. Além disso, possuem forma escrita e específica como mandamentos de dever ser, possibilitando aos seus destinatários razoável transparência quanto aos elementos que compõem cada juízo valorativo neles contido. Não se deve confundir, saliente-se, transparência com clareza: a transparência resume-se à possibilidade de se identificar quais são os elementos das definições normativas; já a clareza diz respeito à fácil identificação do que significam tais elementos, o que, evidentemente, não é possível plenamente quanto a normas jurídicas, já que elas são, como se viu, construções político-culturais.
Na determinação dos conteúdos jurídicos aplicáveis a casos concretos, é central o papel desempenhado pelos órgãos aplicadores do Direito - destacando-se juízes e tribunais, e em especial pela jurisprudência como fonte de conteúdo. Os juízes e tribunais possuem, como em nenhuma outra posição jurídica ou nenhum outro órgão público ou privado, a possibilidade de identificar e determinar o Direito aplicável à solução de determinado problema. Ao fazê-lo, procedem ao inter-relacionamento dialético entre as fontes de conteúdo do Direito, combinando princípios jurídicos e regras, utilizando a doutrina para a definição de conceitos, considerando os costumes que porventura envolvam aquele problema específico, considerando os precedentes judiciais sobre casos semelhantes e considerando eventuais tratados e convenções que interfiram sobre aquele problema.
Até mesmo Hans Kelsen (1987, p. 354-355) já consagrava tal posição singular de juízes e tribunais, ao afirmar que
mesmo quando sejam determinados não só o órgão e o processo mas ainda o conteúdo da decisão a proferir - como sucede no caso de uma decisão judicial a proferir com base na lei - existe não somente aplicação do Direito como também produção jurídica. (...) o estabelecimento da norma individual pelo tribunal representa um estágio intermediário do processo que começa com a elaboração da Constituição e segue, através da legislação e do costume, até a decisão judicial e desta até a execução da sanção. Este processo, no qual o Direito como que se recria a cada momento, parte do geral (ou abstrato) para o individual (ou concreto).
Assim, a cada interpretação normativa num julgamento se produz Direito, se produz, em algum grau, conteúdo normativo - individual e específico, porque ordinariamente destinado apenas às partes de uma ação, mas normativo. A cada nova decisão judicial, portanto, está se (re)construindo (dialeticamente) o conteúdo do Direito.
3.5 A RELAÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS
Afirmou-se que os princípios jurídicos possuem força diretriz para a definição dos conteúdos que devem prevalecer no Direito. Afirmou-se, também, que os princípios jurídicos são normas (embora não necessariamente legisladas), e podem possuir, além da força diretriz, a força de imperatividade normativa formal.
Ora, se os princípios jurídicos possuem tal força diretriz e podem possuir tal imperatividade, o que se tem é que eles estão, na relação com as demais normas, em posição de sobredeterminação do conteúdo destas. Vale dizer: ao se criar novas normas (na forma de subprincípios ou de regras), deve-se ter o cuidado de evitar que elas entrem em conflito com o conteúdo diretivo dos princípios gerais do sistema jurídico (e dos próprios subprincípios da área jurídica para a qual é criada a regra). Além disso, ao se interpretar e aplicar normas já existentes, deve-se adequar a interpretação e a aplicação ao conteúdo diretivo dos princípios jurídicos (gerais e específicos). Isso é essencial no processo de concretização de princípios, os quais, para serem aplicados, como ensina Karl Larenz (1989, p. 577-586), carecem, sem exceção, de ser concretizados.
Ocorre, porém, que os princípios, por indicarem valores superiores do sistema jurídico, não estão dispostos numa hierarquia formal absoluta - estão, isto sim, numa relação valorativa dialética aberta, devido ao que deve se dar, na sua interpretação, uma ponderação dos valores e bens jurídicos neles considerados.
Tal não significa que entre os princípios não haja alguma relação de precedência. Ela existe, no sentido de que os princípios garantidores dos direitos humanos essenciais à condição humana de existência precedem, a priori, aos demais (COELHO, 2003, capítulo 3). Mesmo tal precedência, no entanto, deve ser encarada de maneira dialética, relacional, considerando-se as peculiaridades do caso concreto. Outro não é o sentido da abordagem de Robert Alexy (1993, capítulos 2 e 3), para quem a ponderação não se dá de modo aleatório, mas baseada numa relação condicionada de precedências.
Ou seja, tendo-se em consideração as circunstâncias concretas de cada caso, é estabelecida entre os princípios uma relação de precedência condicionada. Nas condições daquele caso concreto, um princípio prevalece sobre o outro. Em outras condições, é possível que a relação se inverta. Isso tudo, ressalte-se, sem que o princípio seja retirado do sistema jurídico, sem que seja atingida a sua operacionalidade como juízo e mandamento de dever ser.
Veja-se, nesta direção, o princípio constitucional da liberdade inviolável. Todos têm a liberdade de ir e vir, de comer ou não comer, de manter ou não relações sexuais, de expressar ou não suas opiniões. Ao mesmo tempo, há o princípio constitucional da garantia da dignidade humana, com diretrizes constitucionais para que sejam garantidas a todos condições dignas de existência no mundo, assim como a dignidade moral e intelectual de cada um. Imagine-se a situação de um indivíduo que transita nú dentro de sua casa e de outro que transita nú no quintal de sua casa. Diante de pretensões de vizinhos contra tais condutas, há de se considerar se a liberdade de tais indivíduos foi exercida em limites aceitáveis frente à dignidade moral de seus vizinhos ou não.
A solução de tais problemas requer uma ponderação casuística de princípios, em que tendencialmente no primeiro caso predominaria a liberdade do morador e no segundo caso a dignidade dos vizinhos. Em nenhuma solução a ser adotada, entretanto, o princípio predominante altera a situação jurídica de norma diretiva do outro princípio: sua vigência e sua validade são preservadas, já que a ponderação de princípios preconiza a otimização casuística da aplicação.
Importa, enfim, ressaltar, como decorrência lógica do exposto nas páginas anteriores, que se os princípios jurídicos e as regras são fontes imediatas do Direito. Eles, em conjunto, sobredeterminam os demais conteúdos do Direito. E, se os princípios indicam os valores superiores do sistema jurídico e os valores superiores de cada área específica do Direito, eles condicionam, como diretrizes, a definição e delimitação dos conteúdos das próprias regras.
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SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.
Notas
1 Embora numa abordagem um pouco diversa quanto aos seus pressupostos, este é o sentido da exposição de Engish, que destaca as normas como imperativos proibitivos ou prescritivos (comandos) ou como normas atributivas de direitos (ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico, p. 39-48); de forma semelhante, Bobbio, que divide as normas em dois grandes grupos: “normas de conduta” e “normas de estrutura ou de competência” (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 33).
2 Não se inserem como espécies legais as resoluções, pois tecnicamente estão mais próximas da caracterização como atos administrativos.
3 O §1º do art. 68 da Constituição prevê como limites para a elaboração de leis delegadas: “Não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei complementar, nem a legislação sobre: I – organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; II – nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; III – planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos.”.