O conceito de família alterou-se com o passar do tempo e atualmente a entidade familiar é vista como uma “construção cultural” de indivíduos que ocupam uma função dentro de uma estrutura, com uma relação baseada na afetividade, como aponta Maria Berenice Dias[1]. Diante da pluralidade de modelos familiares norteados pela solidariedade, igualdade, autonomia, democracia e humanismo, o afeto é o principal vínculo entre os membros da família.
Essa noção de afeto como norteador das relações e vínculos familiares está inserta no entendimento atual da jurisprudência e serve de base para decisões importantes da atualidade, pois apresenta-se como uma realidade no contexto familiar traduzindo uma nova demanda para o Judiciário.
Assim nos apresenta Antonio Carlos Mathias Coltro,
“Disso não se tem despreocupado a jurisprudência, reconhecendo a necessidade da consideração ao aspecto da socioafetividade, no concernente a questões relativas à paternidade”. (...) é imprescindível identificar a família não mais sob o conceito singular que antes lhe era determinado, impondo-se encará-la sob visão plural em que a limitação destinada pela legislação deve ser examinada sob ótica diversa do nela permitido e de acordo com a realidade necessária à concepção do justo e com atenção aos fins sociais a que a lei se dirige e às exigências do bem comum, nos expressos termos do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC).” [2]
Essa visão flexível e aberta de família se coaduna com os anseios constitucionais que preveem além do matrimônio, a legitimidade da união estável, assim como o entendimento atual da doutrina e jurisprudência acerca dos direitos civis do companheiro em união estável e também na união homoafetiva. Todos estes temas em direito de família devem ser cuidados de forma que a interpretação jurídica responda aos anseios presentes na sociedade que se apresenta.
Com uma noção de família altamente dinâmica, transformando-se com rapidez, assim como a própria natureza do homem, busca-se soluções para questões altamente complexas surgidas no contexto familiar, como aponta Vania Curi Yazbek sobre a volatilidade contemporânea dos relacionamentos familiares,
“(...) um conjunto de relacionamentos líquidos, que podem acabar a qualquer momento. (...) porque todos são alimentados pela ideia “eu mereço ser feliz”. [3]
Neste contexto mutável de relacionamentos familiares certamente há o surgimento do conflito, junto com o desafio de resolvê-los mediante a dificuldade de comunicação entre seus membros mas a consideração cuidadosa dos sentimentos envolvidos é uma das bases para o desenvolvimento da prática da mediação, como demonstra Antônio Rodrigues de Freitas Junior,
“Se alguma contribuição relevante a mediação e mesmo a conciliação (essa última entendida como uma ferramenta mais ampla que a composição judiciária) podem oferecer à teoria do conflito, é precisamente a de trazer o ponto de observação para fora do Judiciário, e levar intervenção para fora e para além dos limites do processo; atuando com eficácia exatamente onde e a partir de uma perspectiva que o Judiciário não está aparelhado a fazê-lo.”[4]
Paralelamente ao movimento natural do homem e dos avanços tecnológicos, crescem também os anseios, a dinâmica dos conflitos, pois há relação entre o que se passa dentro das famílias e o mundo externo. Cada integrante traz consigo papéis mentais, valores morais, que se exteriorizam dentro do contexto familiar causando mudanças e influências consideráveis na dinâmica com os outros integrantes do mesmo núcleo.
Os conflitos familiares são complexos pela mutabilidade da própria entidade familiar, mas também por possuírem aspectos morais intrínsecos, que podem estar divorciados na noção de legalidade, como ensina Antônio Rodrigues de Freitas Junior,
“ (...) por trás da pretensão e da ação, residem aspectos morais que estão a merecer tratamento. E por aspectos morais designam-se não apenas aqueles que sejam reconhecidos e validados pelo sistema jurídico, como também aqueles que porventura o transgridam. Moralidade, nesse sentido, não é sinônimo de juridicidade nem de legalidade.”[5]
Portanto, os conflitos familiares devem ser desmistificados como algo negativo, mas considerados intrínsecos às relações humanas, divergências subjetivas carregadas de materiais intrapsíquicos, visualizados como uma grande oportunidade de reflexão das partes e de aprimoramento familiar, individual e social.
Assim nos ensina Hannah Arendt,
“(...) as palavras perderam seu poder e o sentido da atitude humana se dá perante aquilo que pode ser discutido. O significado das coisas está naquilo em que se pode falar entre nós. [6]
Para Guilherme Assis de Almeida administrar o conflito relaciona-se ao próprio reconhecimento da pessoa, e nesse sentido a mediação seria muito mais do que a busca por uma decisão,
“A primeira característica positiva do conflito é oferecer a possibilidade do surgimento de um potencial criativo capaz de auxiliar famílias, organizações, grupos étnicos e Estados a definirem e redefinirem suas identidades por meio de mudanças, adaptações e inovações em face da situação causada pelo conflito”.[7]
Em busca de uma ordem jurídica justa que não está necessariamente no Poder Judiciário mas também fora dele, a mediação como meio de solução alternativa de conflitos apresenta-se como uma forma aprofundada e cuidadosa para receber essa demanda familiar complexa exigindo acuidade interdisciplinar, como demosntra Antônio Rodrigues Freitas Junior,
“Saberes como o da mediação, a exemplo de outros meios não adjudicatórios de gestão de conflitos, ainda não parecem exibir maturidade epistemológica que nos autorize a qualificá-la como uma disciplina autônoma do conhecimento. Por esse motivo, toda a elaboração desse saber opera-se mediante o recurso a outras disciplinas ou áreas do conhecimento, como a Psicologia, a Sociologia, a Ciência Política e o Direito.”[8]
Para Águida Arruda Barbosa, a ciência da mediação requer uma interdisciplinariedade a fim de contribuir na solução do conflito familiar para que as partes se sintam ouvidas, singulares, isentas de julgamento e detentoras do direito fundamental da dignidade da pessoa humana. [9]
Sob esta ótica psicojurídica esse movimento de atuação do próprio indivíduo em solucionar seus conflitos com base em sua realidade traz empoderamento, ou seja, o poder de decisão é do próprio indivíduo considerada sua singularidade, além de menos custos sociais e ganhos para a comunidade como a autogestão das demandas comunitárias e locais da sociedade.
A mediação seria um ato terapêutico, consideradas suas fases e peculiaridades, um processo de desenvolvimento de novos paradigmas e novas conquistas diante de uma oportunidade chamada conflito, conduzindo a uma harmonia social ou no mínimo a uma tentativa concreta para seu alcance.
Essa perspectiva de solução de conflitos à mão dos interessados traz benefícios ao Poder Judiciário e leva o direito de acesso à justiça mais próximo do cidadão que entende melhor seu contexto social, suas necessidades e sua cultura. A lide é solucionada conforme sua conveniência e o entendimento das próprias partes, contando sempre com o apoio do mediador.
Como assevera Kazuo Watanabe,
“A mediação, desde que bem organizada e praticada com qualidade, é um poderoso instrumento de estruturação melhor da sociedade civil. Por meio dela, vários segmentos sociais poderão participar da mencionada obra coletiva, de construção de uma sociedade mais harmoniosa, coesa e com acesso à ordem jurídica justa.”[10]
Além de ser visto como ato terapêutico deve estar desvinculada de outros interesses como o advogado na defesa de seu cliente. Sua finalidade deve ser a retomada da comunicação como ensina Fernanda Tartuce. [11].
Em direito de família a mediação tem também um papel preventivo, já que a problemática do ponto de vista emocional se apresenta maior do que do ponto de vista jurídico, envolvidos os fatores e papéis familiares como na separação de casais com filhos.
Mas conforme aponta Cezar-Ferreira, os juízes de família reconhecem a deficiência de conhecimento nesta área, sendo importante um avanço para atender a demanda dos envolvidos no conflito relacional que chegam ao Judiciário. [12]
O movimento da mediação como instrumento de solução de conflitos em direito de família representa um condutor de transformação de atitudes individuais e coletivas que se originam no primeiro núcleo social, desencadeando percepções novas e mais amplas, posicionamentos mais seguros e tolerantes nos outros setores em que o indivíduo está inserido como em seu trabalho e demais relações sociais que ele atua.
A mediação familiar é uma ferramenta para a compreensão do outro e tudo o mais que este traz consigo, nas situações de divórcio em uma família com filhos essa ferramenta torna-se essencial, pois as diferenças de opinião em relação à guarda, ao remanejamento dos papéis parentais, e aos modelos mentais planejados e esperados sobre a vida do casal que agora precisam se desconectar, todas estas faces de uma mesma estrutura devem ser consideradas de forma cuidadosa e responsável a fim de minimizar a dor causada pelas mudanças dentro da entidade familiar.
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Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Guilherme Assis de. Mediação e o reconhecimento da pessoa. In: Mediação e Conciliação - Revista do Advogado nº 123. Agosto de 2014. Ano XXXIV – S. Paulo : Associação dos Advogados de SP, 2014.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana: trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer- 10 ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar: uma vivência interdisciplinar. In : GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família e psicanálise – Rio de Janeiro : Imago, 2003.
CEZAR-FERREIRA, Veronica A. Da Motta. Família, separação e mediação : uma visão psicojurídica. 3a ed – Rio de Janeiro : Forense, S.Paulo : Metodo, 2011.
COLTRO, Antônio Carlos Mathias. A socioafetividade sob a ótica jurisprudencial. In: Família e Sucessões. Revista do Advogado nº 112. Julho de 2011. Ano XXXI – S. Paulo : Associação dos Advogados de SP, 2011.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias – 8ª ed.Rev.Atual.- S. Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
FREITAS JR. Antônio Rodrigues. Sobre a relevância de uma noção precisa de conflito. In: Mediação e Conciliação - Revista do Advogado nº 123. Agosto de 2014. Ano XXXIV – S. Paulo : Associação dos Advogados de SP, 2014.
WATANABE, Kazuo. Mediação como política pública social e judiciária. In: Mediação e Conciliação - Revista do Advogado nº 123. Agosto de 2014. Ano XXXIV – S. Paulo : Associação dos Advogados de SP, 2014.
YAZBEK, Vania Curi. Mediação de Conflitos Familiares. In: Mediação e Conciliação - Revista do Advogado nº 123. Agosto de 2014. Ano XXXIV – S. Paulo : Associação dos Advogados de SP, 2014.
SIX, Jean François. Dinâmica da mediação – tradução de Giselle Groeninga de Almeida, Aguida Arruda Barbosa e Eliana Riberti Nazareth – Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
[1] DIAS,Maria Berenice. Manual de direito das famílias – 8ª ed.Rev.Atual.- S.Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2011, p.27
[2] COLTRO, Antonio Carlos Mathias. A socioafetividade sob a ótica jurisprudencial. In: Família e Sucessões. Revista do Advogado nº 112. Julho de 2011. Ano XXXI – S. Paulo : Associação dos Advogados de SP, 2011, p. 21-23.
[3] YAZBEK, Vania Curi. Mediação de Conflitos Familiares. In: Mediação e Conciliação - Revista do Advogado nº 123. Agosto de 2014. Ano XXXIV – S. Paulo : Associação dos Advogados de SP, 2014, p. 136.
[4] FREITAS JR. Antônio Rodrigues. Sobre a relevância de uma noção precisa de conflito. In: Mediação e Conciliação - Revista do Advogado nº 123. Agosto de 2014. Ano XXXIV – S. Paulo : Associação dos Advogados de SP, 2014, p. 12
[5] FREITAS JR. Antônio Rodrigues. Sobre a relevância de uma noção precisa de conflito. In: Mediação e Conciliação - Revista do Advogado nº 123. Agosto de 2014. Ano XXXIV – S. Paulo : Associação dos Advogados de SP, 2014, p. 17.
[6] ARENDT, Hannah. A condição Humana: trad. Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer- 10 ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 11-12.
[7]ALMEIDA, Guilherme Assis de. Mediação e o reconhecimento da pessoa. In: Mediação e Conciliação - Revista do Advogado nº 123. Agosto de 2014. Ano XXXIV – S. Paulo : Associação dos Advogados de SP, 2014, p.20.
[8] FREITAS JR. Antônio Rodrigues. Sobre a relevância de uma noção precisa de conflito. In: Mediação e Conciliação - Revista do Advogado nº 123. Agosto de 2014. Ano XXXIV – S. Paulo : Associação dos Advogados de SP, 2014, p. 13
[9] BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar: uma vivência interdisciplinar. In : GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família e psicanálise – Rio de Janeiro : Imago, 2003, p. 339.
[10] WATANABE, Kazuo. Mediação como política pública social e judiciária. In : In: Mediação e Conciliação - Revista do Advogado nº 123. Agosto de 2014. Ano XXXIV – S. Paulo : Associação dos Advogados de SP, 2014, p. 38
[11] SIX, Jean François. Dinâmica da mediação – tradução de Giselle Groeninga de Almeida, Aguida Arruda Barbosa e Eliana Riberti Nazareth – Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.54
[12] CEZAR-FERREIRA, Veronica A. Da Motta. Família, separação e mediação : uma visão psicojuridica. 3a ed – Rio de Janeiro : Forense, S.Paulo : Metodo, 2011, p.205