As doutrinas da situação irregular e da proteção integral, associadas ao filme "A voz do coração ", de Christophe Barratier,

06/12/2015 às 22:44
Leia nesta página:

Trabalho desenvolvido com o objetivo de contextualizar as Doutrinas da Situação Irregular e da Proteção Integral da criança e do adolescente, com o filme “A voz do coração”, de Christophe Barratier,

 

 

 

 

 

 

A DOUTRINA DA SITUAÇÃO IRREGULAR

 

Em 1927, foi publicado o Decreto 17.943-A, que veio a ser a primeira legislação acerca dos menores do Brasil. Esse decreto trouxe diversas inovações como a figura do juiz de menores, centralizando todas as decisões referentes ao destino de menores infratores. Porém, mais uma vez, suprimia-se a figura da família como parte integrante e necessária do desenvolvimento do menor, dando-se mais importância ao recolhimento dos infratores como forma de proteger a sociedade do que se dedicando a resolver a questão, pois não havia uma política de proteção a todas as crianças, mas sim de proteção a própria sociedade. Sendo assim, os menores deveriam ser extirpados, retirados do seio familiar social. Era como se a sociedade ao ver seus filhos revoltosos e problemáticos, encontrando-se em estado puerperal, decidisse ser melhor matá-los do que mantê-las e corrigi-las[i].

Com o Decreto-Lei 6.026 e suas modificações feitas pela Lei 5.258/1967, toda a legislação atinente aos adolescentes foi substituída pelo chamado Código de Menores, cuja elaboração foi toda pautada na chamada Doutrina da Situação Irregular[ii].

Liberati (2006)[iii] ensina que a Doutrina da Situação Irregular não surgiu aleatoriamente. Pelo contrário, é fruto das ideologias incutidas pelos marcos legais da adolescência até então vigentes, notadamente pelo Código Mello Mattos. Tratava-se de um código sisudo que, ao invés de arrolar os direitos dos adolescentes, optou por regulamentar de forma rigorosa a tutela jurisdicional a ser aplicada aos mesmos.

A doutrina da situação irregular,  adotada antes da criação do  Estatuto da Criança e do Adolescente e amparada pelo antigo Código de Menores (Lei 6697/79), aprovava situações de não proteção à criança e ao adolescente, permitindo que  “menores infratores” fossem afastados da sociedade, sendo segregados, de forma generalizada, em instituições, onde viviam o  desrespeito a dignidade da pessoa humana, como forma de punição para seus comportamentos.

Naquela época, a doutrina da situação irregular precisa ser  utilizada para conter a grande quantidade de menores infratores que, diante dos elevados índices de desigualdade social, enfrentado no início do século XX, buscavam nos delitos de rua uma forma de externalizar sua rebeldia ou até mesmo praticavam pequenos delitos para ajudar a promover o sustento próprio e da família.

Diante das ideias da teoria irregular, o infrator necessitava de um certo tratamento, como se portador de uma moléstia. Seria ele portador de uma moléstia social, não sendo considerado como sujeito de seus atos, e sim como objeto de uma ação estatal, que sequer seria jurisdicional, mas administrativa, muito mais voltada para o plano da piedade e da caridade, do que da justiça e do direito. A questão infracional, por esta visão, teria uma consideração exclusivamente sob a ótica da sociologia, não importando o direito [iv].

 

DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL

 

A doutrina da proteção integral foi engendrada pela Organização das Nações Unidas, porém foi adotada no Brasil somente após a Constituição de 1988, ante a resistência oposta pela Doutrina da Situação Irregular que, de tão acoplada à mentalidade de nossa sociedade, impediu e tem impedido a efetividade plena do ECA até nos dias de hoje[v].

Diferentemente da doutrina da situação irregular, onde o adolescente era estigmatizado como um mero objeto de direitos, na doutrina da proteção integral, o adolescente ganha status de sujeito de direitos.

A partir de agora, crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento e sujeitos de direitos, independente de sua condição social e a lei deverá respeitar essa condição peculiar, característica singular desses sujeitos, que, até então, tinham direitos, mas que não podiam exercê-los, em face de sua pouca inserção social e pela submissão incondicional ao poder familiar. Nesta perspectiva, crianças e adolescentes são os protagonistas de seus próprios direitos.[vi]

 

A Doutrina da Proteção Integral se caracteriza pela amplitude de sua proteção. Ela não se limita a amparar os adolescentes que se encontram em situação irregular. Pelo contrário: por ela todos os adolescentes, independentemente de sua condição, tem direitos às normas protetivas cunhadas nas legislações pertinentes. Assim, a adoção da proteção integral representou um avanço cultural da sociedade, reconhecendo os menores como parte integrante da família e da sociedade.

 

DA SINTESE DO FILME E SUA RELAÇÃO COM AS DA SITUAÇÃO IRREGULAR E DA PROTEÇÃO INTEGRAL

 

Em 2004, ao dirigir o filme “A voz do coração”, Christophe Barratier, relata à França da década de 40, exatamente em 1949, três depois do término da 2ª Guerra Mundial. Nesse momento, a guerra desestabilizou as famílias, pois muitas mulheres tiveram seus maridos e filhos mortos nos combates. Em consequência disso, muitas crianças foram abandonadas/tiveram seus pais mortos, outras entregues ao internato. As mulheres tiveram que abrir mão da educação familiar de seus filhos e passaram a trabalhar.

Diante do contexto social relatado, o filme narra a história de crianças órfãs, delinquentes e sem visível futuro, que vivem em uma instituição de ensino, Fond de l'Etang (O Fundo do Pântano), um internato para "difíceis" meninos, no qual, não há uma preocupação com o ensinar, naquilo que envolve uma educação que capacite os alunos a refletirem os diversos assuntos de forma crítica, mudança de comportamento, assimilação de valores éticos e morais para se tornarem cidadãos de fato.

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Aqui, percebemos a doutrina da situação irregular, a partir do momento em que o mais importante era segregar essas “crianças difíceis”, a exemplo de Mondain, um garoto cruel e "pervertido" que chegou a escola e começa a causar problemas, o bullying e extorquindo dinheiro dos outros meninos, fumando na sala de aula, e geralmente se rebelando. A educação se baseia em métodos repressores, sem um olhar social, muito menos planejamento e estratégias na intenção de estabelecer de forma significativa o ensino e a aprendizagem das crianças.

O método de aprendizagem é baseado no lema  do diretor Rachin: “Ação e Reação” como método de correção, que é na verdade um adestramento dos alunos, com o objetivo de adquirir deles bom comportamento, resultado do medo da repressão e, tendo como resposta: crianças agressivas, com baixa estima por não encontrar naquele ambiente nenhuma afetividade ou algo que o incentive e estimule para o processo de socialização, configurando numa espécie de abandono de forma indireta por meio da instituição para com os alunos.

 Até aqui, percebemos com clareza a aplicação da doutrina da situação irregular. No entanto, com a chegada do professor de música, Clément Mathieu, o ensino adquire uma nova didática.

Clément Mathieu  muda a metodologia outrora aplicada, conduzindo os alunos a uma nova percepção da realidade, divergente do que a instituição impunha. Passa a avaliar as habilidades dos seus alunos, fazendo com que, dentro de um aspecto humanístico e de afeto ante aos alunos, promova a auto-estima em cada um, se sentindo úteis e, não, como sendo parte do mobiliário de uma sala de aula.

Após a contratação do professor Mathieu, percebemos que o método de ensino esta lastreado na doutrina da proteção integral, pois, a partir de sua chegada, as crianças tornam-se pessoas em desenvolvimento e sujeitos de direitos. Ele pregava o respeito a condição peculiar de cada uma das crianças, que, até então, não tinham direitos, em face do regime educacional imposto pelo diretor Rachin. Tal aspecto é percebido no momento em que o filme mostra que mesmo o aluno, não possuindo uma voz adequada para o canto, não foi posto de lado, mas aproveitado uma outra habilidade sua para que este não se sentisse abandonado, excluído das atividade. Esse aluno, que não possuía habilidade alguma para o canto, acaba ajudando o professor servindo de “estante”, digamos assim, para segurar a partitura. De uma forma ou de outra, ele também estava atuando junto à turma.

O ser professor, implica, além de transmitir o conteúdo da disciplina, estar atento aos seus alunos, as suas pontencialidades e dificuldades, orientando-os a construírem o conhecimento necessário para uma vida social mais digna.

O filme de Christophe Barratier, aborda a educação em seus vários aspectos, e, dentro deles, verificamos dois que se associam as doutrinas da situação irregular e proteção integral. A primeira, está associada as atitudes autoritárias por parte do diretor da instituição que se estabelece na incoerência dos tratos com os alunos, falta de respeito ante ao ser humano e imposição pessoal para prevalecer o que ele acha que é certo e o segunda associa-se as atitudes humanísticas cujos elementos principais deve inserir afetividade, respeito e dedicação, contribuindo de forma significativa para melhorar a auto estima do aluno e, com isso, estimular a confiança em ultrapassar suas dificuldades de aprendizagem e superação de obstáculos que cada idade exige.

Assim, por todo o exposto, ficou demostrada que “A Voz do Coração” é um excelente filme, no qual podemos perceber uma evolução no olhar da sociedade sobre a criança e o adolescente, sobretudo no que diz respeito àqueles que são tidos como “problemas sociais”.

 


[1] Trabalho desenvolvido com o objetivo de contextualizar as Doutrinas da Situação Irregular e da Proteção Integral da criança e do adolescente, com o filme “A voz do coração”.

[2] 

 


[i] MAIA, Cristiana Campos Mamede. No limite do progresso. Proteção e Direitos da criança e do adolescente. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-abr-08/doutrina-protecao-integral-direitos-crianca-adolescente>.

 

[ii] PAIVA, Leandro José.J. A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA ADOLESCÊNCIA E A SUA ABORDAGEM

JURÍDICA NO BRASIL.  Disponível em: <http://www.faceca.br/revista/index.php/revisdireito/article/viewFile/158/77> Acesso em 26/04/2015.

[iii] LIBERATI, Wilson Donizeti. Processo Penal Juvenil. São Paulo: Malheiros, 2006.

 

[iv] SARAIVA, João Batista Costa. Desconstruindo o Mito da Impunidade. Um Ensaio de Direito (Penal) Juvenil -  Brasília: 2002. Disponível em: < www.revistavox.fadileste.edu.br/download/artigo7.pdf> Acesso em 26/04/2015.

 

[v] ARANTES, Geraldo Claret. Estatuto da Criança e do Adolescente – manual do Operador Jurídico. Belo Horizonte: Anamages, 2008.

 

[vi] LIBERATI, Wilson Donizeti. Processo Penal Juvenil. São Paulo: Malheiros, 2006. 

 

Sobre a autora
Tatiana Lago

Graduanda em Direito, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- BA e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Prisões, Violência e Direitos Humanos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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