Análise da obra A verdade e as formas jurídicas de Michel Foucault

06/12/2015 às 23:08
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Análise da obra "A verdade e as formas jurídicas". Michel Foucault, (tradução: Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais). Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. 160p.

Em sua primeira conferência, Michel Foucault, expõe as propostas de analise e discussão que serão desenvolvidas nas demais conferências, apresentando um resumo do tema que será explanado nas cinco conferências, bem como uma leitura de alguns textos de Nietzche para a distinção entre conhecimento e verdade.  Aqui, logo ao iniciar, o autor traça seu objetivo, que é mostrar como se formaram domínios de saber a partir de práticas sociais, em suas palavras a página 08, “será mostrar como as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazer aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazer nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento”.

 Para persecução de seu objetivo, são propostos três eixos de pesquisa: 1) A história dos domínios em relação com as práticas sociais, em que o saber do homem nasceu das práticas sociais do controle e da vigilância; 2) A análise metodológica dos discursos como jogos estratégicos de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta; 3) A reelaboração da teoria do sujeito, onde deve ser feita a constituição histórica de um sujeito do conhecimento através de um discurso tomado como um conjunto de estratégias que fazem parte das práticas sociais.

Foucault analisa alguns textos de Nietzsche, com a finalidade de provar a tese que o conhecimento foi inventado pelos homens, que existem relações de poder até na história da verdade. De acordo com o autor,  origem distingue de invenção e tudo que foi inventado pelo homem tem por objetivo alguma forma de poder: a dominação de uns sobre os outros. Dessa forma, a religião, a história, a poesia, o ideal e o próprio conhecimento não teriam origens metafísicas anteriores aos homens, mas teriam sido inventados por eles. Assim, o conhecimento não é instintivo, é contra- instintivo, bem como ele não é natural, é contra- natural, ou seja, o conhecimento não faz parte da natureza humana, não é algo que diz respeito à essência do homem.

Spinoza dizia que se quisermos compreender as coisas em sua essência (em sua verdade) é necessário de rir delas, deplorá-las ou de detestá-las e somente quando estas paixões apaziguam podemos enfim compreender. Contrariamente, Nietzsche afirma que é exatamente o contrário que acontece, pois estes três impulsos (rir, deplorar e detestar) são formas de distanciar o objeto de si e por conta disso a relação do conhecimento com o objeto é de distância e dominação.

Segundo Foucault, se almejarmos realmente “conhecer o conhecimento” devemos nos aproximar não dos filósofos, mas dos políticos, querendo com isso dizer que deve-se compreender quais são as relações de luta e de poder, porque o conhecimento é sempre uma relação estratégica em que o homem se encontra situado.

Na segunda conferência, Foucault discute a antiga peça grega de Sófocles- Édipo Rei. Inicia a conferência falando da obra de O Anti-Édipo de Deleuze e Guatarri e descontruindo o Complexo de Édipo de Freud, aqui, o objetivo é demostrar as formas jurídicas presentes na sociedade grega na época.

Para Foucoault, a primeira forma jurídica grega aparece em Ilíada, na parte em que Homero descreve a disputa numa corrida de carruagens entre Menelau e Antíloco. A competição possui uma espécie de “juiz”, uma “testemunha”, uma pessoa que está  à observar e depois dar seu veredicto. Nessa competição, Menelau acusa Antíloco de ter trapaceado, sendo que assim Menelau põe seu adversário à prova: Pede para que Antíloco, caso não tenha trapaceado, jure sua honestidade diante de Zeus, e que esse o castigue se fizer um falso juramento. Diante da situação, Antíloco admite que trapaceou. Menelau consegue, assim, sua “prova cabal”.

A prova é característica da sociedade grega arcaica, no entanto também é encontrada em períodos posteriores. Dessa forma, já é possível observar formas jurídicas que existem até hoje nos modernos tribunais: a testemunha e a prova.

            Para Foucault, Édipo- Rei mostra melhor as formas jurídicas porque sua trama é completamente baseada em vários testemunhos, que juntos formam a verdade sobre o trágico destino de Édipo. Em Édipo Rei, a verdade é estabelecida por meias-verdades, sejam elas, as evidências. Dessa maneira, a história de uma pesquisa da verdade, que segue exatamente às práticas judiciárias gregas da época, é considerada como uma espécie de resumo da história do direito grego.

O tragédia de Édipo  é dividida em três partes de duas metades, onde fica claro que o conhecimento seria interpretado de forma diferente no tempo: move-se o conhecimento de algo que futuro para algo passado, em outras palavras, da profecia para o testemunho, dos deuses para o povo.

            Dentro desse contexto, Foucault, ao contrário de Freud a interpretação que ensejou a elaboração do complexo de édipo, não visualiza Édipo como homem do esquecimento, homem do não-saber, homem do inconsciente, mas sim como homem do poder. Édipo tem o poder e não se espanta com a ideia de ter matado o pai ou o rei, o que realmente o assusta é perder o próprio poder. Assim, são reconhecidas nele várias características de um tirano. Mas não é só isso.  Foucault observa que o tirano grego não era apenas aquele que apreendia o poder, mas que detinha também certo tipo de saber, além disso, caracteriza Édipo como o homem dos excessos, homem que tem tudo demais, em seu poder, em seu saber, em sua família, em sua sexualidade.

Na terceira conferência, Foucault comenta sobre uma relação que se estabeleceu na idade média, do conflito, da oposição entre o regime de prova e o sistema de inquérito. Assim, começa a conferência lembrando que uma das conquistas da democracia ateniense foi a história do processo, através do qual o povo conquistou o direito de julgar, do direito de dizer a verdade, de opor a verdade aos seus próprios senhores, de julgar aqueles que governam. Faz uma análise sobre a constituição do direito, trazendo um resgate de formas jurídicas que emergiram ao longo da história, realizando uma reconstituição de como o direito foi passando da ideia de justiça privada para a de justiça pública.

Segue seu discurso no sentido de que o direito é essencialmente o espaço do conflito, que se desenrola de forma institucionalizada e mediante alguns procedimentos comuns as partes em litigio, nas palavras do autor “entrar no domínio do direito significa matar o assassino, mas mata-lo segundo certas regras, certas formas”. Assim, vê-se o direito como uma manifestação institucionalizada da guerra, mas não de uma guerra que produz prejuízos físicos, mas de uma guerra de procedimentos, de argumentos, de fatos, de direitos, na qual  o vencedor não é nitidamente percebido por sobreviver à luta, pois da discussão entre duas partes não é possível extrair  o vencedor, mas é preciso chamar um terceiro não interessado para mediar o conflito e este é quem proferirá um parecer sobre qual direito prevalece.

Foucault mostra ainda que o direito feudal é essencialmente de tipo germânico, o litígio entre dois indivíduos era regulamentado pelo sistema de prova. Primeiramente haviam as provas sociais, onde apresentavam-se doze testemunhas para jurar a favor do caráter do acusado ao invés de prestar depoimento sobre sua conduta. Em segundo lugar haviam provas de verbais. Nelas o acusado deveria proferir fórmulas gramaticais (estilo trava língua) e dependendo de suas habilidades oratórias, era absolvido ou não. Neste tipo de prova, os menores, as mulheres e os padres podiam ser substituídos por uma outra pessoa com mais habilidade na oratória. O representante oral é hoje o representa a figura do advogado. Em terceiro lugar haviam as provas mágico- religiosas do juramento e, finalmente, haviam as provas corporais, físicas, chamadas de ordálios, que versava em submeter uma pessoa a uma espécie de jogo com seu próprio corpo, para constatar se venceria ou fracassaria, por exemplo, amarrar a pessoa dentro de um saco e jogar dentro de um rio e esperar, se  emergisse, significava que por não ser culpado os deuses teriam livrando-a.

Esses sistema de práticas jurídicas foi desaparecendo no final do séc. XII e no começo do séc. XIII, em razão dos  meios mais importantes para assegurar a circulação de bens ter se tornado  a guerra, a rapina e a ocupação. Assim, os detentores do poder quiseram comandar as decisões judiciárias também ao seu favor.

Para Foucault, agora a justiça vai se  impor do alto, pois os indivíduos não terão mais o direito de resolver seus litígios, ao contrário, deverão submeter-se a um poder exterior a eles que se impõe como poder judiciário e poder político. Aparece também a figura do procurador, representante do soberano, do poder externo lesado pelo dano, e que substituirá a vítima como parte ofendida. A noção de crime e dano será substituída pela de infração e o soberano é não somente a parte lesada, mas a que exige reparação.

Dessa forma, as monarquias ocidentais foram fundadas sobre a apropriação da justiça, que lhes permitia a aplicação desses mecanismos de confiscação. Percebemos uma transição da justiça privada (a qual não pressupunha um poder exterior) para uma justiça pública (que é realizada pelo terceiro alheio ao litígio e que detém a legitimidade para tal).

Foi toda essa transformação política que tornou não só possível, mas necessária a utilização do inquérito no domínio judiciário. Portanto, não foi racionalizando os procedimentos judiciários que se chegou ao procedimento do inquérito. Na Europa Medieval tal procedimento é sobretudo um processo de governo, uma técnica de administração, de gestão, ou seja, o inquérito é uma determinada maneira do poder se exercer.

Foucault termina essa terceira parte argumentando que o inquérito também não é absolutamente um conteúdo, mas a forma de saber situada na junção de um tipo de poder com certo número de conhecimentos, que o inquérito é uma forma de saber- poder.

Na quarta conferência, Foucault vai tratar das formas de práticas penais que caracterizam a sociedade disciplinar e as relações de poder oriundas a essas práticas penais. Inicia comentando que no final do século XVIII e início do século XIX houve uma reorganização do sistema judiciário e penal em diversos países da Europa e do mundo. Ocorreram grandes mudanças na Inglaterra, no que se refere ao conteúdo das leis e no conjunto de condutas penalmente repreensíveis sem que as formas e instituições judiciárias tenha se alterado de forma profunda. Enquanto isso, na França ocorreu o contrário, as instituições foram modificadas sem haver alteração na lei penal.

Essas alterações se deram, entre outros fatores, por razão da reelaboração da lei penal por Beccaria, Bentham, Brissot e outros, que começaram a consideram que a infração não deve ser mais nenhuma relação com a falta moral ou religiosa. Os mecanismos penais já não se importam mais com a fato criminoso, mas em controlar a conduta antes e após o delito.

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Os novos sistemas de controle social estabelecidos pelo poder, pela classe industrial, pela classe dos proprietários foram tomados dos controles populares com uma versão autoritária e estatal. Surgiram por conta de uma nova distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola que tornaram necessários novos controles sociais no fim do século XVIII.

Para finalizar, Foucaul inicia a última conferência abordando o nascimento das ciências de exame que estão em relação com a formação e estabilização da sociedade capitalista, dando continuidade à algumas noções desenvolvidas anteriormente, acerca do que ele chamou  sociedade disciplinar e panoptismo.

A teoria de Beccaria, legalista, social, se opõe inteiramente ao panoptismo. “No panoptismo a vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível não do que se faz, mas do que se é; não do que se faz, mas do que se pode fazer”. Foucaul tenta demostrar que o surgimento do panoptismo está ligando a um paradoxo, já que ele teria surgido juntamente com o desenvolvimento de uma teoria penal legalista, tendo Beccaria como seu principal representante e que estabelece a necessidade de haver uma lei explícita para haver punição. No panoptismo, ao contrário, a vigilância baseada no que se faz é substituída por aquela assentada naquilo que se é e naquilo que se poderia fazer: “Nele a vigilância tende, cada vez mais, a individualizar o autor do ato, deixando de considerar a natureza jurídica, a qualificação penal do próprio ato”.

Durante o século XIX, outras formas de controle passaram a vigorar, além da força de trabalho através de baixos salários frente à cargas horárias elevadas: o controle de como gastar o tempo livre e as economias do operário.

Foucault aborda três funções das instituições de sequestro: 1) controle do tempo dos indivíduos- há a extração do tempo dos sequestrados que é, então, oferecido ao aparelho de produção, porque para que a sociedade industrial seja formada é necessário, segundo o autor, por um lado, que o tempo dos indivíduos seja oferecido ao mercado e comprado por um salário, por outro lado, que o tempo desses indivíduos seja transformado em tempo de trabalho.

Foucault comenta que nos países desenvolvidos, seria possível demonstrar esse controle do tempo através do consumo e da publicidade; 2) O controle dos corpos: Não é apenas a extração do tempo, mas a valoração, o controle e a formação dos corpos dos indivíduos. Como esclarece na página 119, o corpo, no século XIX, adquire um novo significado, ele não é mais o que deve ser supliciado, mas o que vede ser formado, reformado, corrigido, o que vede adquirir aptidões, receber um certo número de qualidades, qualificar-se como um corpo capaz de trabalhar”; 3) O tempo e a força dos trabalhadores são incorporados no sistema de produção por meio de um jogo de saber e poder: o poder que se exerce nessas instituições de controle é, além de econômico, também político, o micro poder exercido no interior de tais instituições é ainda um poder judiciário e por fim, é poder epistemológico, já que se extrai um saber dos indivíduos vigiados e se extrai um saber sobre estes seres humanos submetidos ao controle dos diferentes poderes mencionados.

Por fim, Foucault afirma que a prisão apresenta dois discursos, sendo uma afirmação de um consenso social, a prisão não faz nada mais do que fazem as outras instituições, sendo afirmação de seu caráter singular, é uma instituição destinada apenas à quem descumpre a lei. Ainda, fugindo da prisão e voltando para o trabalho, discordar da tese que coloca o trabalho como a essência do homem. Diz que “a ligação do homem com o trabalho é sintética, política, é uma ligação operada pelo poder, que na verdade, é um subpoder”.

Sobre a autora
Tatiana Lago

Graduanda em Direito, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- BA e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Prisões, Violência e Direitos Humanos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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