1. OS FATOS
No dia 11 de dezembro de 1965, ocorreu um dos maiores crimes de latrocínio na história do Brasil. Foi o que se chamou de chacina do supermercado Peg Pag, no bairro da Gávea, na cidade do Rio de Janeiro.
Somente em julho de 1966, a Polícia desvendou o crime e todos os seus envolvidos, num caso que foi considerado um dos maiores fracassos de investigação no Brasil onde, inclusive, a tortura, um verdadeiro crime, foi utilizada para que suspeitos pudessem confessar, utilizando-se o censurável e condenável mecanismo do que se intitulou “pau- de- arara”.
A policia, após meses de investigação, apresentou como autores daquele crime o proprietário de caminhão Carlos Wesley de Castro Aníbal e o ex-para-quedistas Valdenio Vasconcelos Martins e o fornecedor de arma Mauro Seixas Schade.
Eles teriam confessado a autoria do crime, dizendo que tudo fora planejado por Lail Noronha Soares, guarda de segurança(uma das vítimas), que também fora eliminado para que não denunciasse o crime. Aliás, fora Lail que mostrou aos demais todas as dependências do empório e as pessoas que na noite do crime deveriam ser encontradas.
A história do crime foi objeto da crônica policial de vários jornais da época, e que aqui se traz.
Noticiou a imprensa, que, num sábado, na noite do crime, os criminosos chegaram ao local do crime, no supermercado Peg Pag, por volta das 20 horas e entraram na porta de fundos. Notados pelo vigia, disseram que pretendiam telefonar, mas o homem, a fim de pô-los para fora, respondeu que o telefone não funcionava. Carlos, nervoso e irritado, tirou a metralhadora – uma Ina – de uma caixa de papelão que levava sob o braço e imobilizou o vigia, o mesmo fazendo com outro vigia que surgiu de forma casual. Enquanto os dois eram levados por Valdenio para o frigorífico do supermercado, Carlos já na companhia de Lail, que fingira oferecer resistência, foi para o escritório, onde encontrou mais dois homens, ordenando-lhes que abrissem o cofre. Os homens não conheciam a combinação e nada puderam fazer. Carlos, já novamente com auxílio de Valdenio colocou numa sacola plástica cerca de Cr$2.900.000,00 que estavam sobre a mesa. Depois, foram todos para o frigorífico, onde Carlos ordenou que todos ficassem deitados no solo, pois seriam fuzilados. Valdenio intercedeu, mas Carlos disse-lhe que não poderia deixar testemunhas e não hesitou em apertar o gatilho da arma, matando, inclusive, Lail. Aliás, foram fuzilados quatro empregados da casa: o vigia Manuel Pinto de Oliveira, o chefe da caixa Emiliano Souza Lima, o fiscal da caixa Walmir Alves Pinheiro e o guarda de segurança, Lail Noronha Soares, que foi vítima de seu próprio plano.
Naquele dia, Carlos se encontrou com Valdenio á porta do prédio onde morava. Eram 16:30 horas ou 17: horas. Estava com metralhadora dentro de uma caixa de papelão e tomaram um ônibus Madureira - Candelária, saltando na rua Camerino. De lá, em outro ônibus, foram para Copacabana e soltaram na Rua Barata Ribeiro, a fim de telefonar para Lail. A resposta deste foi breve: “Pode vir que o negócio será realizado”. Em seguida, Carlos e Valdenio foram para o Peg-Pag, de táxi, e desceram defronte ao supermercado. Em seguida, dois ou três minutos depois, pedindo que esperassem um dez minutos porque ia ver como estavam as coisas. Uma chuva fina caía e, pouco depois, Lail retornou e disse que havia muita gente no supermercado. Eles foram dar uma volta no quarteirão para fazer hora até que o supermercado fechasse ao público naquele dia. O certo é que Carlos e Valdenio entraram no supermercado, mas encontraram mais gente do que esperavam e decidiram esperar mais um pouco, junto ao portão de fundos. Pouco depois, Carlos e Valdenio partiram para a execução do crime.
Tem-se que, no corredor externo do supermercado, os criminosos depararam com Emiliano Souza Lima, que ia saindo. Emiliano foi forçado a voltar sob a mira da metralhadora. Junto à porta dos fundos, encontraram o vigia Manuel Pinto de Oliveira, sentado à mesa, prestar a iniciar o trabalho. Foi ameaçado também e, com Emiliano, empurrado para o frigorifico de verduras, à esquerda, ambos foram trancados. Valdênio já havia tirado o relógio de Emiliano e ficara montando guarda à porta do frigorifico. Lail e o fiscal de caixa Walmir Alves Pimenta estavam no escritório, perto da geladeira, quando Carlos os surpreendeu. Valmir acabara de contar a féria e já a havia colocado num dos cofres quando foi forçado a abri-lo e entregar o dinheiro, cerca de 1 milhão e 700 mil cruzeiros. Disse ainda, Carlos que Lail fez um sinal com a cabeça indicando um outro cofre, onde deveriam estar os 45 milhões de cruzeiros. Valmir foi novamente ameaçado, mas alegou saber o segredo de outro cofre. Carlos disse que sentiu que o empregado falava a verdade. A esta altura, Valdenio largou o vigia e Emiliano no frigorifico, trancados, e veio ajudar Carlos no escritório, apanhando o dinheiro, que foi colocado em cinco ou seis sacolas que ali encontrou, além dos cheques. Depois, Carlos intimou Valmir e seu comparsa a irem também para o frigorífico. Tudo se passava sem qualquer reação das vítimas. Já com os quatro dentro do frigorifico, Carlos mandou que Valdenio fechasse a porta. Depois ordenou a Manuel, Valmir, Emiliano e ao comparsa Lail: “Todo mundo de joelhos”. Carlos afirma que não se lembra quando Manuel apertou entre os dedos uma medalha de São Jorge. Lembra-se, apenas, de que ficou parado, por meio minuto, olhando os quatro ajoelhados, e de ter pensado: “Se eu tivesse encontrado só mais um, além do Lail, o depoimento deste anularia o daquele, mas agora são quatro a testemunhar e se o Lail for poupado o fato vai despertar suspeita”. Acionou a metralhadora e começou a chacina de forma impiedosa. Lail foi o único que ainda o olhou, como quem pergunta: “Eu também?” Esgotada a munição da arma, Lail Noronha ainda estrebuchava em meio à poça de sangue que se formou. Carlos disse que teve pena de vê-lo agonizar: “Tirei o revólver do vigia, que já estava comigo e dei o tiro de misericórdia na cabeça dele”.
Os assaltantes fugiram de táxi e trataram de se desfazer de tudo que poderia comprometê-los, inclusive uma capa plástica, que Carlos usava e ficara salpicada de sangue. Algumas peças foram jogadas ao mar, outras no mato e o restante em rios do subúrbio. Antes fizeram a partilha do dinheiro, ficando cada um com Cr$1.450.000,00.
Carlos Wesley de Castro Aníbal e Valdenio Vasconcelos Martins, coautores do crime, que detinham o domínio do fato da conduta criminosa narrada, estiveram, no dia seguinte ao crime, no Instituto Médico-Legal, velando o corpo do guarda de segurança, Lail Noronha Soares. Valdenio, por instruções de Carlos, permaneceu no IML até o fim do velório, tendo mesmo alugado um automóvel para que ficasse à disposição da família de Lail para o enterro. Carlos teria metralhado Lail e disse: “não tolera bandido que erre duas vezes”. Lail teria errado porque afirmou que Valmir Alves Pimenta conhecia o segredo do cofre onde estavam os Cr$45 milhões.
No corpo de Lail, o planejador do ilícito, foram encontrados nove projeteis de calibre 45 produzidos pela metralhadora INA e mais um na cabeça produzido pelo revólver calibre 38; em Walmir, em Emiliano e Manoel foram detectados, respectivamente, 11, 9 14 projéteis da metralhadora. Do cadáver de Emiliano foi retirado o seu relógio. O jurista Nilo Batista afirmou que Wesley não participou do furto do relógio e somente veio a saber do fato um ano após a chacina. Quem tirou o pertence da vítima teria sido Valdenio, que assumiu o caráter individual da iniciativa. Por sinal, a apreensão do relógio ocorreu num terreno baldio, próximo à casa de Valdenio. Sendo assim, para a defesa, Wesley praticou apenas um latrocínio – quando matou os quatro homens para roubar os valores do supermercado, e, seria, coautor de um crime qualificado que resultou na subtração do relógio de Emiliano.
Depois do crime, vendo o dinheiro fácil, Carlos viu a possiblidade de se tornar contrabandista.
Chegou-se a pensar no envolvimento de militares no crime pelo uso da arma que foi utilizada.
Para a prisão dos acusados, a Polícia da Delegacia de São João de Meriti, no Rio de Janeiro, tomou conhecimento de que Mauro Seixas Schade possuía uma metralhadora e passando-se por bandidos foram procura-lo, mostrando interesse na arma. Ficaram sabendo que a arma fora cedida a Carlos e Valdenio, aos quais passaram a procurar. Enquanto Mauro ficara detido, Carlos era preso na porta da residência e disse onde morava Valdenio que foi detido nas proximidades do Conjunto Residencial dos Bancários, no bairro de Jacarepaguá. Mauro furtara a arma de um companheiro no Batalhão Santos Dumont. A arma aliás foi comprada por 300 mil cruzeiros em Mauro Seixas.
2. OS ERROS NA INVESTIGAÇÃO E A TORTURA
O que se deve frisar é que, naquela época, dezenas de suspeitos foram presos, cuja inocência acabava sendo provada. A população e a imprensa exigiam a elucidação do crime ao governo do Estado, na época governando por Negrão de Lima, recém-empossado. A polícia precisava encontrar um culpado.
De inicio, circulou a notícia de que havia uma pista a partir de uma noticia dada por uma mulher sob o efeito de tóxicos.
Os irmãos Cláudio e Paulo Alves da Silva(soldados da PM), Luiz Nascimento Sampaio e Ivan Mondaini foram presos. Integrantes de uma perigosa quadrilha envolvida em roubo de automóveis, a culpabilidade deles não foi comprovada pela Polícia, mas, mesmo assim, eles foram apontados como autores daquele ilícito.
Se não fosse a descoberta dos verdadeiros autores do crime seriam julgados por crime que não cometeram.
Houve o condenável uso do “pau-de-arara” para obtenção de confissão. No dia 26 de janeiro de 1966, Luiz Nascimento, levado ao gabinete do superintendente de Policia Judiciária, alil fez uma nova confissão inocentando Ivan Mondaini e incriminando outros elementos. Essa confissão, segundo o jornal Correio da Manhã, foi obtida por tortura física, inclusive no “pau-de-arara”.
3. O CRIME DE LATROCÍNIO
De acordo com o artigo 157, § 3º, do código penal, com a redação dada pelo artigo 6º, da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, que o taxa como crime hediondo, nos termos do artigo 1º da Lei 9.426, de 24 de dezembro de 1996, se da violência resulta morte, a pena cominada é de vinte a trinta anos de reclusão, além de multa.
Não estamos diante de um crime doloso contra a vida, razão pela qual a hipótese não é de júri popular. Há crime contra o patrimônio(Súmula 603).
O homicídio é cometido com o fim de lucro.
O lucro é o fim e a morte o meio. Diverso é o entendimento de Carrara que via no latrocínio um crime contra a vida pela prevalência do meio. Mas há de se provar uma relação de causalidade entre o atuar do agente e a morte da vítima.
Ocorre latrocínio ainda que a violência atinja pessoa diversa daquela que sofre o desapossamento. Haveria um só crime com dois sujeitos passivos(RT 474/289). A esse respeito, cito importante decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, na Revisão Criminal 57.024 – 3, Seção Criminal, Relator Marino Falcão, 01 de março de 1988, na linha da Revisão Criminal 139.808 – SP, Relator Prestes Barra, RT 544/337, onde se disse que não se exige que a morte seja da própria vítima da lesão patrimonial. Isso porque este crime qualificado pelo resultado é gravemente apenado, porque para obtenção do proveito material, não se tergiversa no emprego da violência física, que vem a produzir a eliminação da vida humana, ainda que seja do próprio partícipe do crime, mortalmente atingido pelo próprio companheiro.
Séria a discussão com relação as hipóteses de crime consumado no latrocínio ou crime tentado.
Examinemos as hipóteses possíveis:
a) latrocínio consumado, uma vez que há efetiva subtração e a morte da vítima;
b) Se o roubo for tentado e o homicídio doloso tentado: tentativa de latrocínio se houve início de execução do homicídio;
c) Se há homicídio consumado e subtração tentada: latrocínio consumado(RT 451/388; 467/323; 470/327, dentre outros. Devemos rejeitar as hipóteses de tentativa de furto em concurso formal com homicídio qualificado; tentativa de roubo em concurso material com o homicídio qualificado; homicídio qualificado. Data vênia, não concordo com a hipótese levantada por Heleno Cláudio Fragoso1 para quem no homicídio doloso consumado e subtração tentada não realiza o agente a subtração por motivos alheios à sua vontade, aplicar-se-ia o artigo 121, § 2º, V, homicídio qualificado. Ora, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de há muito, considera que o latrocínio está consumado sendo irrelevante que a subtração fique apenas tentada. A esse respeito, Súmula 610;
d) roubo tentado e homicídio preterintencional: aplica-se o artigo 157, § 3º, do código penal, em forma de tentativa de roubo seguida de morte(RT 647/275);
e) havendo mais de uma morte, devem responder os agentes por homicídio em concurso com roubo. Contra: RT 417/378; 582/378. Aliás, vale aqui a observação crítica de Heleno Claudio Fragoso2, na sua visão de penalista, quando considera que a solução contrária é um desconchavo. Não é possível considerar a morte por dois celerados a uma família inteira, inclusive duas crianças pequenas, como um roubo seguido de morte, censurando, com razão própria, decisão do Tribunal de Justiça do antigo Estado da Guanabara. Em tais casos a solução é considerar um concurso entre os homicídios, levando o caso para a competência do Tribunal do Júri, a teor do artigo 74, parágrafo primeiro do CPP, não sendo a hipótese prevista como de procedimento comum ordinário, na forma da reforma processual penal de 2008.
Este último ponto controvertido nos chama a atenção.
Na lição de Júlio Fabbrini Mirabete3, não se ajusta à letra da lei a afirmação de Heleno Cláudio Fragoso de que, em havendo mais de uma morte, responderão os agentes por homicídio, em concurso com o roubo. Os agentes somente devem responder por um único crime de latrocínio(RT 417/378, 582/378, 651/266, 685/312, STF: HC 73.433 – 2; DJU de 10 de maio de 1996, pág. 15.134; RSTJ 32/403 – 4; JSTJ 34/314; RJTJESP 112/474.
Para Guilherme de Souza Nucci4, tendo o legislador optado por inserir o latrocínio ou o roubo com lesões corporais graves, como delito qualificado pelo resultado, no contexto dos crimes contra o patrimônio, é necessário considerar que a morte de mais de uma pessoa, porém, voltando-se o agente contra um só patrimônio(matar marido e mulher para subtrair um veículo do casal) , constitui crime único. O juiz, à vista da pluralidade de mortes, deveria fazer dosimetria, à luz do artigo 59 do código penal, para fixar a pena de forma correta.
Mas, para Marcelo Fontes Barbosa 5dois latrocínios ocorreram mediante uma só ação, ainda que se proponha a unidade de desígnios.
4. A CONDENAÇÃO DOS RÉUS
Na primeira Instância, Valdenio e Wesley foram condenados por quatro latrocínios: um para cada vítima. Entretanto, a Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça reformou a decisão. Entendeu que, em relação a Emiliano houve um latrocínio, e, em relação às outras mortes, outro latrocínio. Isto porque, ocorreram duas subtrações: o relógio e, ainda, o dinheiro e os cheques do supermercado. As mortes serviriam para agravar a pena. Com essa decisão a pena aplicada passou a ser de 40 anos de reclusão.
5. O PEDIDO DE REVISÃO CRIMINAL
No ano de 1979, um dos coautores do crime, Carlos Wesley ajuizou, em 1979, ação de revisão criminal.
Estava em vigor, à época, a redação da parte geral do código penal, de forma a adotar o regime do duplo binário.
o sistema penal pátrio previa a hipótese de cumulação de pena privativa de liberdade e medida de segurança, quando a culpabilidade do agente assim apontasse para a necessidade de aplicação a referida medida. Era o sistema punitivo batizado pela doutrina como o `duplo binário'. Ocorre que, com a reforma da parte geral do Código Penal , operada pela Lei 7.209 /84, abandonou-se o sistema do duplo binário, adotando-se o `sistema vicariante', que inviabiliza a aplicação cumulada de pena e medida de segurança.
O pedido de revisão criminal foi feito com base no laudo de sanidade mental realizado pelo médico Wilson de Lyra Chebaldi. Nele Nilo Batista pediu que fosse declarado Carlos Wesley semi-imputável e, portanto, à época, com direito à redução de um a dois terços da pena. Na ação, outrossim, foi pedido que um dos crimes de latrocínio fosse desclassificado para furto qualificado. O objetivo era declarar que ele não era portador de periculosidade.
A forma cruel com que o delito foi praticado, os erros na época da investigação, as discussões com relação a correta dosimetria da pena, colocam o caso como um dos mais emblemáticos do direito penal brasileiro.
Notas
1 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal, parte especial, 7ª edição, , pág. 299. e 300.
2 FRAGOSO, Heleno Cláudio . Obra citada, pág. 300.
3 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal, parte especial, volume II, 25º edição, pág. 230.
4 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 2008, pág. 735.
5BARBOSA, Marcelo Fontes. Latrocínio, pág. 58-60, apud Guilherme de Souza Nucci, obra citada, pág. 734.