Considerações acerca da prisão do Senador da República Delcídio Amaral, à luz do ordenamento jurídico vigente e dos princípios republicanos

16/12/2015 às 14:10
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Analise da prisão do senador de Republica Delcío Amaral, em peleno exercício do mandato, à luz do ordenamento jurídico vigente e dos Princípios Republicanos

Sumário: 1. A prisão do senador; 2. Discussão jurídica; 3. Regra rígida de admissibilidade de “Prisão Preventiva”; 4. Pressupostos da “prisão preventiva”; 5. Motivos que gera afastamento da regra rígida do inciso I do art. 313 do CPP; 6. Trechos do Pedido de Prisão Preventiva do PGR; 7. Trechos da decisão do ministro Teori Zavascki; 8. Analise da Lei 9.099/95 – Juizados Especiais Cíveis e Criminais – no contexto da prisão do Senador Delcídio Amaral; 9. Possibilidade de prisão em flagrante de detentor de imunidade por qualquer do povo; 10. Conclusão.

1. A prisão do senador

A recente e inédita prisão de um senador da República (Senador Delcídio Amaral) no exercício do mandato ocorrida na manhã do dia 25 (quarta-feira) de novembro (mês passado) do ano corrente (2015), decretada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em decisão monocrática do Ministro Teori Zavascki a pedido do Procurador Geral República, Rodrigo Janot, causou discussão acerca da legalidade da decretação da referida prisão face às prescrições do § 2º do art. 53 da Constrição Federal (freedom from arrest), in verbis:

Art. 53 (...)

 § 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.” (grifei)

Tal imunidade formal (freedom from arrest) alcança os Deputados Estaduais e do Distrito Federal, por força do § 1º do art. 27 da Constituição Federal, nestes temos:

“Art. 27 (...)

§ 1º Será de quatro anos o mandato dos Deputados Estaduais, aplicando- sê-lhes as regras desta Constituição sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas.”

Impende consignar que o legislador constituinte optou por não estender a imunidade formal aos vereadores, estando eles sujeitos a prisão como qualquer cidadão; garantindo-lhes apenas imunidade material, também conhecida como inviolabilidade (por suas opiniões palavras e votos), porém, apenas nos limites territoriais do Município, vejamos:

“Constituição Federal

 Art. 29 (...)

 VIII - inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município;”

 

2. Discussão jurídica

Luiz Flavio Gomes sustenta no artigo intitulado “Delcídio foi preso em flagrante por crime “inafiançável”?” tratar-se de “prisão em flagrante” pela prática de crime “inafiançável”, por entender que crimes “afiançáveis” são passives de mutação para crime “inafiançável”, valendo-se para essa conclusão, data máxima vênia, errônea, da disposição do inciso IV do art. 324 do Código de Processo Penal, in verbis:

http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/260712345/delcidio-foi-preso-em-flagrante-por-crime-inafiancavel

Art. 324.  Não será, igualmente, concedida fiança: 

 IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312).”

Nos exatos termos do § 2º do art. 53 da Constituição Federal, a polícia ou qualquer do povo não necessita de autorização do Excelso Pretório para prender em flagrante delito parlamentares congressistas pela prática de crime “inafiançável”:

“§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. (...)”

Atentem-se que o texto magno transcrito supra, não traz a exigência de necessidade de autorização da Alta Corte para que a polícia ou mesmo qualquer do povo possa prender parlamentares congressistas em flagrante delito, sendo o crime praticado, “inafiançável”.

Não existe no ordenamento jurídico brasileiro a figura alienígena de “decretação de prisão em flagrante”, nem da figura não menos alienígena de “mandado de prisão em prisão em flagrante”

 

3. Regra rígida de admissibilidade de “Prisão Preventiva”

Código de Processo Penal

Art. 313.  Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: 

I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;

II - (...);                                         

III - (...);

Parágrafo único. (...). 

 

4. Pressupostos da “prisão preventiva”

Código de Processo Penal

Art. 312.  A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, (...). (grifei)

Em que pese a péssima técnica legislativa do legislador brasileiro, que foi capaz de editar na ordem invertida as regras alusivas à prisão preventiva: editou a regra rígida de admissibilidade de Prisão Preventiva (art. 313) depois dos pressupostos ensejadores de sua decretação (art. 312); notem, que se não estiverem presentes o requisitos rígidos permissivos capitulados no art. 313 do CPP transcrito acima, o magistrado não poderá decretar “prisão preventiva” ainda que presentes os pressupostos ensejadores da cautela processual (art. 312 CPP)

Dessarte, se alguém ameaçar uma testemunha para que ela não delate o ameaçador por ele haver praticado uma infração penal dolosa ainda desconhecida das autoridades; ou para que a testemunha não dê depoimentos que o incrimine quando já existir persecutio criminis – investigação policial ou Ação Penal –, e a infração penal praticada pelo ameaçador não comportar pena máxima superior a 04 (quatro) anos, como previsto no inciso I do art. 313 CPP, e não estando presentes as demais circunstancias dos incisos II e III e do parágrafo único do mesmo art. 313 CPP, não será inadmissível decretação de “prisão preventiva”.

 

5. Motivos que gera afastamento da regra rígida do inciso I do art. 313 do CPP

Código de Processo Penal

Art. 324.  Não será, igualmente, concedida fiança: 

I - aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 deste Código; 

II - em caso de prisão civil ou militar; 

III – (revogado);

IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312). (grifei)

Art. 313.  Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: 

I – (...);

II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal;

 

III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;

Parágrafo único.  Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.

Ora, a ameaça a uma testemunha põe em perigo a instrução criminal e a futura aplicação da lei penal, porém, pelo fato da infração praticada inicialmente não satisfazer a condição rígida permissiva de “prisão preventiva” prevista no inciso I do art. 313 CPP, e não estando presentes as demais circunstancias dos incisos II e III e do parágrafo único do mesmo art. 313 CPP, o magistrado não pode decretar “prisão preventiva” contra o ameaçador.

O legislador por uma questão de lógica, para evitar que o art. 312 do CPP se tornasse letra morta quando a infração penal praticada não satisfazer a condição rígida permissiva de “prisão preventiva” prevista no inciso I do art. 313 CPP, e não estando presentes as demais circunstancias dos incisos II e III e do parágrafo único do mesmo art. 313 CPP, editou o inciso IV do art. 324 do CPP [Não será, igualmente, concedida fiança: IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312).]. 

Desse modo, afastou que o magistrado fique impedido, por força do inciso LXVI do art. 5º da CF (ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;), de decretar a “prisão preventiva” de quem não está “preso em flagrante” ou de converter a “prisão em flagrante” em “prisão preventiva”,  quando não estiverem presentes as regras rígidas permissivas de “prisão preventiva” constantes dos incisos I, II, III e parágrafo único do art. 313 do CPP, ainda que a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal, ou a aplicação da lei penal estejam seriamente comprometidas, como previsto no art. 312 do CPP.

Nesse diapasão a má técnica redacional do legislador impõe ao Hermeneuta grande capacidade cognitiva, vejamos:

O legislador editou fora de ordem os “motivos que gera afastamento da regra rígida do inciso I do art. 313 do CPP”, inserindo uma parte de tais motivos nos incisos II, III e parágrafo único do próprio art. 313 CPP e outra parte nos incisos I, II e IV do art. 324 CPP; no caso sub examine ganha relevo os motivos encartados no inciso IV [quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312)]. Outra constatação logica é que o legislador empregou termos inadequados no caput. do art. 324 CPP: “Não será, igualmente, concedida fiança:”; sendo que o mais adequado seria ter utilizado a seguinte redação: “será admitida a decretação de prisão preventiva ainda que o ilícito penal praticado não satisfaça o previsto no inciso I do art. 313 do CPP:”. O legislador poderia, do mesmo modo, de forma que esse tema ficaria mais claro e conciso, ter inserido as prescrições do art. 324 CPP no art. 313 CPP.

Nessa esteira a conclusão lógica é que o legislador editou as disposições do art. 324 do Código de Processo Penal endereçadas exclusivamente aos magistrados, e não endereçadas tanto aos magistrados como aos delegados, muito menos endereçadas a qualquer do povo e ao servidor policial integrante de órgão de polícia ostensivo-preventiva e de repressão imediata, na ocasião da realização duma prisão-captura. Delegados, servidores policiais integrantes de órgãos de polícia ostensivo-preventiva e de repressão imediata ou qualquer do povo não dispõe de meios hábeis para aferi, v.g., a condição de inafiançabilidade do inciso I do art. 324 CPP (Não será, igualmente, concedida fiança: I - aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 deste Código;) 

Então a prisão do Senador Delcídio Amaral foi ilegal, por não se tratar de “prisão em flagrante” pela prática de crime “inafiançável” como Luiz Flavio Gomes afirma?

Veja bem, a prisão do senador não foi ilegal, mas a legalidade não reside numa ideia alienígena de que crimes “afiançáveis” são passíveis de tornarem-se “inafiançáveis” acostada absurdamente no inciso IV do art. 324 do CPP. Crimes são “afiançáveis” ou “inafiançáveis”, não existe a possibilidade de um crime mutar-se de “afiançável” para “inafiançável” vez que o rol é taxativo, vejamos:

Constituição Federal

Art. 5º (...)

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

Código de Processo Penal

Art. 323.  Não será concedida fiança: 

I - nos crimes de racismo; 

II - nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos; 

 III - nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;” 

 

6. Trechos do Pedido de Prisão Preventiva do PGR

Corrobora nosso raciocínio o desenvolvimento do pedido de “prisão preventiva” do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, que sustentou no requerimento a necessidade da “prisão preventiva” e invocou ser imperioso uma interpretação republicana, teleológica e sistemática da primeira parte do § 2º do art. 53 da Constituição da República Federativa do Brasil, senão vejamos:

“[...]

 (iii) Prisão preventiva do Senador Delcícido Amaral (grifei) 

O art. 53, § 2º, da Constituição da República proíbe a prisão em flagrante, salvo em caso de flagrante de crime inafiançável. A regra prevista no dispositivo é, aparentemente, absoluta, e a exceção, limitadíssima. Com efeito, a prisão cautelar não é cabível, na literalidade do dispositivo, em nenhuma de suas modalidades, nem mesmo com a elevada garantia do foro especial por prerrogativas de função. Por sua vez, a prisão em flagrante, além de fortuita, por depender da presença da autoridade no local e no momento do crime, ou logo após, somente é cabível em se tratando de crime inafiançável - a atual redação [lei 12.403/11] do Código de Processo Penal tornou afiançáveis, in genere, todos os crimes, permanecendo apenas a inafiançabilidade dos crimes hediondos e equiparados, porque de extração constitucional. (grifei) 

O tom absolutista do preceito proibitivo de prisão cautelar do art. 53, § 2º, da Constituição da República não se coaduna com o modo de ser do próprio sistema constitucional: se não são absolutos sequer os direitos fundamentais, não faz sentido que seja absoluta a prerrogativa parlamentar de imunidade à prisão cautelar. Essa prorrogativa, embora institucional, é de fruição estritamente individual e, lida em sua literalidade, assume, na normalidade democrática do constitucionalismo brasileiro, colaboração perigosamente próximo de privilégio odioso. (grifei)

 [...]

 A esse respeito, se a presunção do constituinte era a de que a conduta dos congressistas seria marcada por honradez e honestidade muito acima da média nacional, a experiência mostra, de forma abundante, que eles são humanos, demasiado humanos, e, por isso, sujeitos a cometer crimes e levar perigo a bens jurídicos caros à sociedade e à ordem jurídica. (grifei)

[...]

 Fazia sentido, com efeito, na alvorada da Nova República, conferir proteção constitucional extraordinariamente densa aos congressistas, pois o risco de retorno do regime autoritário era ainda presente. Mas, com a consolidação da normalidade democrática, o risco de abrir hiato de impunidade e criar casta hiperprivilegiada sobrepujou largamente o risco de retorno ao regime autoritário. Por isso, a EC 35/2001 modificou, em boa hora, a regra da imunidade dos congressistas ao processo penal; mas, ao fazê-lo, criou subsistema intrinsecamente incoerente - há lógica jurídica em isentar de prisão cautelar a quem está isento do próprio processo penal, mas constitui teratologia jurídica admitir que alguém esteja sujeito a processo penal sem estar sujeito sequer abstratamente a um dos mais relevantes instrumentos da jurisdição criminal, que é a prisão cautelar.  (grifei)

[...] Outros exemplos menos extremos e mais mundanos mostram-se igualmente absurdos, como aquele em que congressista submetido a processo penal age ostensivamente para intimidar testemunhas e suprimir provas em seu desfavor enquanto o Poder Judiciário assiste a tudo de mão atadas. (grifei)

[...]

Com efeito, o constituinte, ao autorizar a prisão em flagrante de congressista, admitia que eles fossem levados ao cárcere antes da condenação passada em julgado, desde que houvesse certeza visual ou quase visual do crime. Por sua vez, ao exigir que o crime fosse inafiançável, o constituinte condicionava o cabimento da prisão em flagrante a um mínimo de gravidade da conduta delituosa em que incorresse o congressista. Não havia nem passou a haver, portanto, vedação peremptória à prisão cautelar de congressista, cumprindo ter presente a natureza jurídica de prisão cautelar da prisão em flagrante: havia e há apenas a cautela do constituinte em reservar a prisão cautelar de congressista a hipóteses de maior gravidade e maior clareza provatória.

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Nessa ordem de ideias, deve ter-se por cabível prisão preventiva de congressista desde que (i) haja elevada clareza probatória da prática de crime e dos pressupostos da custódia cautelar, em patamar que se aproxima aos critérios legais da prisão em flagrante (os quais incem, vale lembrar, as hipóteses legais de quase-flagrante e flagrante presumido, em que o ato delituoso não é visto por quem prende), é (ii) estejam preenchidos os pressupostos legais que autorizam genericamente a prisão preventiva nos dias hoje (art. 313 do Código de Processo Penal) e os que impunham inafiançabilidade em 2001. (grifei)

Subtrair do Poder Judiciário, de forma absoluta, medidas cautelares que, por sua natureza, são ínsitas e imprescindíveis ao pleno exercício da jurisdição, não coaduna com a existência de um Judiciário livre, autônomo e independente. (grifei)

Ora, se a Constituição Federal, em seu art. 53, § 1º, prevê que ‘os Deputados e Senadores serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal’ é intuitivo que o Supremo deverá exercer essa competência de forma integral e plena. O poder geral de cautela (acessório). Este não convive sem aquele.

[...]

Destaque-se, por relevante, que a imunidade parlamentar é garantia de mandato (não da pessoa que o exerce de forma transitória) e do livre exercício da relevante função parlamentar. A hipótese em tela revela inconteste desvio de finalidade do exercício do mandato por parte de Delcídio Amaral, visto que o parlamentar, integrante de organização criminosa, vem utilizando as prerrogativas e os poderes ínsitos à função com o desiderato de influenciar e embaraçar investigação que se desenvolve perante a mais alta Corte do país. (grifei)

A Carta Magna não pode ser interpretada de modo a colocar o Supremo Tribunal Federal, intérprete e guardião máximo da Constituição Federal, em posição de impotência frente à organização criminosa que se embrenhou dentro do Estado. A interpretação literal do § 2º do art. 53, descontextualizada de todo sistema, transformaria a relevante garantia da imunidade parlamentar em abrigo de criminosos, os quais vêm sabotando relevante investigação criminal e instrução processual em curso.  (grifei)

Haveria de chegar, como efetivamente chegou, o momento de submeter a questão ao Supremo Tribunal Federal. No caso concreto, o cabimento da prisão preventiva do Senador Delcídio Amaral é cristalino. Ele está agindo com desenvoltura, em arco temporal relevante, para evitar que sejam produzidas, na Operação Lava Jato, provas contra si e um banqueiro investigado, inclusive com participação em planejamento de fuga de pessoa denunciada que pode vir a estar sob vigilância eletrônica, Ele está, ademais, maculando a reputação do Supremo Tribunal Federal e a honradez de ministros nominalmente identificados. (grifei)

Trata-se de conduta de conteúdo profundamente perturbador não só no plano probatório, mas também no próprio plano da preservação das instituições. Há, na espécie, a síntese de todos os temores que inspiram o legislador a prever abstratamente a prisão preventiva como mecanismo de reação da ordem jurídica. (grifei)

Observa-se, a esse respeito, que o Senador Delcídio Amaral está praticando crime de embaraço de investigação de organização criminosa, previsto no art. 2º, § 1º, na forma do § 4º, II, da Lei 12.850/2013, comina-se a elevada pena de 3 a 8 anos, majorada de 1/6 a 2/3, e multa. Trata-se, portanto, de crime gravíssimo.”

 

7. Trechos da decisão do Ministro Teori Zavascki

Não foi discrepante o desenvolvimento da decisão que decretou a prisão do senador, da lavra do Min. Teori Zavascki, Relator da Ação Cautelar 4039; em tal decisão Teori Zavascki colacionou precedentes da Corte Suprema em que os Ministros da Corte valeram-se de interpretação republicana, teleológica e sistemática da primeira parte do § 2º do art. 53 da Constituição, que reforçam as fundações do nosso entendimento, vejamos:

AÇÃO CAUTELAR 4039

RELATOR: MIN. TEORI ZAVASCKI

REQTE(S) MINISTERIO PÚBLICO FEDERA

PROC. (A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

“DECISÇÃO: 1. Trata-se de requerimento formulado pelo Procurador-Geral da República, vinculando a acordo de colaboração premiada submetida à homologação nesta Corte, de medidas restritivas de liberdade em face do Senador Delcídio do Amaral Gomez, André Santos Esteves, Edson Siqueira Ribeiro Filho e Diogo Ferreira Rodrigues, que estariam “empreendendo esforços para dissuadir Nestor Cerveró de firmar acordo de colaboração premiada como o Ministério Público Federal ou, quando menos, para evitar que ele o delatasse e a André Esteves, controlador do Banco BTG Pactual” (fl. 3)

[...]

3. Requer, ao final: (a) a decretação da prisão preventiva de Delcídio Amaral e Edison de Siqueira Rodrigues; (b) subsidiariamente, caso se entenda descabida a prisão preventiva de congressista, requer a imposição cumulativa das seguintes medidas cautelares a Delcídio Amaral: [...] (grifei)

[...]

5. Como destacado em recentes julgados desta Corte (HC 127186, Relator(a) Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, DJe 3-8-2015 e HC 128278, Relator(a) Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 18-8-2015, algumas premissas são fundamentais para um juízo seguro a respeito da prisão preventiva. A primeira delas é a de que se trata de medida cautelar mais grave no processo penal, que desafia o direito fundamental da presunção de inocência, razão pela qual somente “deve ser decretada quando absolutamente necessária. Ela é uma exceção à regra da liberdade” (HC 80282, Relator(a): Min. Nelson Jobim, Segunda Turma, DJ de 02-02-2001). Ou seja, a medida somente se legitima em situação em que ela for o único meio eficiente pra preservar os valores jurídicos que a lei penal visa proteger, segundo o art. 312 do Código de Processo Penal. Fora dessas hipóteses excepcionais, a prisão preventiva representa simplesmente uma antecipação da pena, o que tem merecido censura pela jurisprudência desta Suprema Corte, sobretudo porque antecipa a pena para acusado que sequer exerceu o seu direito constitucional de se defender (HC 122072, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJe de 26/09/2014; HC 105556 Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJe de 29/08/2013. (grifei)

A segunda premissa importante é a de que, a teor do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva pressupõe, sim, prova da existência do crime (materialidade) e indícios suficientes de autoria; todavia, por mais grave que seja o ilícito apurado e por mais robusta que seja a prova de autoria, esses pressupostos, por si sós, não são suficientes para justificar o encarceramento preventivo. A eles deverá vir agregado, necessariamente, pelo menos mais um dos seguintes fundamentos, indicativos da razão determinante da medida cautelar: (a) a garantia da ordem pública, (b) a garantia da ordem econômica, (c) a conveniência da instrução criminal ou (d) a segurança da aplicação da lei penal. O devido processo penal, convém realçar, obedece a fórmulas que propiciam tempos próprios para cada decisão. O da prisão preventiva não é o momento de formular juízos condenatórios. Decretar ou não decretar a prisão preventiva não deve antecipar juízo de culpa ou de inocência, nem, portanto, pode ser visto como antecipação da reprimenda ou como gesto de impunidade. Juízo a tal respeito será formulado em outro momento, na apreciação de procedência ou não de eventual denúncia oferecida, após oportunizar aos acusados o direito ao contraditório e à ampla defesa. É a sentença final, portanto, e não a decisão da preventiva, o memento adequado para, se for o caso, sopesar a gravidade do delito e aplicar as penas correspondentes. (grifei)

Mas há ainda uma terceira premissa: em qualquer dessas situações, além da demonstração concreta e objetiva das circunstâncias de fato indicativas de estar em risco a preservação dos valores jurídicos protegidos pelo art. 312 do Código de Processo Penal, é indispensável ficar evidenciado que o encarceramento do acusado é o único modo eficaz para afastar esse risco. Dito de outro modo: cumpre demonstrar que nenhuma das medidas alternativas indicadas no art. 319 da lei processual penal tem aptidão para, no caso concreto, atender eficazmente aos mesmos fins. É o que estabelece, de modo expresso, o art. 282, § 6º, do Código de Processo Penal: “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medica cautelar (art. 319)”. (grifei)

[...]

6. À luz de tais premissas é que se examina o presente requerimento. Consta dos autos que Nestor Cuñat Ceveró subscreveu acordo de colaboração premiada como o Ministério Público. Em vários de seus depoimentos narrou com precisão a participação do Senador Delcídio do Amaral em supostos crimes ocorridos no âmbito da Petrobras (termos de colaboração 1, 2, e 5). [...]

 Elementos indiciários colhidos previamente indicam a possível participação dos envolvidos “para dissuadir Nestor Cerveró de firmar acordo de colaboração com o Ministério Público Federal ou, quando menos, para evitar que ele o delatasse e a André Esteves, controlador do Banco BTG Pactual” (fl. 3)

Destaca-se que, em um dos termos de depoimento, o colaborador declarou que o Senador Delcídio do Amaral e o advogado Edson Ribeiro teriam oferecido pagamento para que ele não firmasse acorde de colaboração premiada ou, alternativamente, que não revelasse nem os fatos que inculpassem o Senador nem aqueles que implicassem o Banco BTG Pactual: [...]

7. [...]

Nesse contexto, quanto à existência do ilícito (materialidade) e dos indícios suficientes de autoria, o requerimento de prisão preventiva demonstra de maneira robusta, com base no material indiciário colhido até o momento e indicando, margem suficiente, a possível existência de graves crimes contra a Administração da Justiça, contra a Administração Pública, organização criminosa e mesmo lavagem de dinheiro, para a consecução dos quais teria havido supostamente importante participação dos requeridos. (grifei)

[...]

9. Quantos aos fundamentos específicos, uma das razões invocadas pelo Ministério Público é o risco à aplicação da lei penal não só no pretendido em relação a terceiro, possível colaborador, mas no elaborado planejamento que revelará, por certo, sempre propensão própria em primeiro lugar. Diferentemente de outros casos julgados recentemente no Supremo Tribunal Federal (HC 125555 e HC 127186), o pedido não está baseado em presunção de fuga rechaçado categoricamente pela jurisprudência desta Suprema Corte (HC 122572, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe 04-08-2014; HC 114661, Relator(a) Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, DJe de 01-08-2014; HC 103.536, Relator(a) Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJe de 22-03-2011; HC 92842, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 25-04-2008; HC 105.494, Relator(a): Min. AYRES BRITO, Segunda Turma, DJe de 27-10-2011). Ao contrário, há indicação de atos concretos e específicos atribuídos aos requeridos que demostram a efetiva intenção de empreender meios para furtar investigados à aplicação da lei penal caso em liberdade estejam. (grifei)

Como destacado no requerimento do Ministério Público, em reunião realizada pelo grupo criminoso, o Senador Delcídio Amaral, o advogado Edson Ribeiro e Diogo Ferreira “discutem, abertamente, meios e rotas de fuga de Nestor Cerveró do Brasil na hipótese de o STF lhe conceder ordem de habeas corpus. Eles contemplam, ostensivamente, a finalidade de evitar nova custodia cautelar e a violação de dispositivo pessoal de monitoramento eletrônico (tornozeleira) - o Senador Delcídio Amaral chega a sugerir que o Paraguai seria rota de fuga mais indicada, em vez da Venezuela, e que, para Nestor Cerveró chegar à Espanha por transporte aéreo privado, a aeronave indicada seria um Falcon 50, que ‘não para no meio’, isto é, não precisa fazer escala técnica” (fl. 15).

Da conversa gravada por Bernardo Cerveró, é possível verificar que o grupo discute rotas de fuga, utilização de aeronaves de contatos, formas de sair do país e de inutilização de monitoramento eletrônico, [...]

[...]

10. Entretanto, o fundamento Principal é, como não poderia deixar de ser, a garantia da instrução criminal, tendo em vista a apontada tentativa de cooptação de réu colaborador, a fim de evitar que fatos e pessoas fossem delatados mediante pagamento de vantagens. Visam os nominados, portanto, a impedir a jurisdição criminal. Se não bastasse, o grupo está em posse de documentos sigilosos por força de lei (art. 7º da Lei 12.850/2013), com fortes indícios de obtenção ilícita. [...] (grifei)

Nas gravações realizadas por Bernardo Cerveró, ficam evidenciadas as tratativas para dissuadir Nestor Cerveró de firmar acordo de colaboração premiada e de não mencionar o Senador Delcídio Amaral, André Esteves e o Banco BTG Pactual: [...]

Em outro trecho, Delcídio Amaral revela que teve acesso à colaboração premiada de Fernando Falcão Soares, que por força de lei ainda está sob sigilo, demonstrando sua frequente atuação em interferir no andamento de investigações e processos penais que o envolvam: [...]

Nesta ceara, está nitidamente demonstrada necessidade de garantir a instrução criminal, as investigações e a hididez de eventuais ações penais vindouras, tendo em vista a concreta ocorrência e a possibilidade de interferência no depoimento de testemunhas e na produção de provas, circunstâncias que realmente autorizam a decretação da custódia cautelar, nos termos da Jurisprudência desta Corte (HC126025, Relator(a): Min. GIMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 26-03-2015; HC 120865 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe de 11-09-2014; RHC 121223, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, DJe 29-05-2014; RHC 116995 Relator(a): Min.  CÁRMEM LÚCIA, Segunda Turma, DJe de 27-08-2013). (grifei)

A fase embrionária de investigação, somada à clareza dos indícios, mais ressalta a necessidade de pronta e firme atuação judicial. (grifei)

11. Há, ainda, como bem demonstrado pelo Procurador-Geral da República, a necessidade de resguardar a ordem pública, ante a gravidade dos crimes imputados e para obstar a reiteração delitiva por parte dos requeridos, uma vez que as práticas delituosas de esquema criminoso estariam em plena atividade e para acobertar supostos crimes que vêm ocorrendo no período sob suspeita. No particular, causa espécie que ainda no presente momento – novembro de 2015 – se siga tratando com desenvoltura, como indica a gravação realizada, de indicação de cargos específicos na Petrobras com fins evidentemente indevidos (fls. 116-117). (grifei)

Fundamentos dessa natureza, uma vez comprovados, têm sido admitidos como legitimadores da prisão cautelar, como se constata dos seguintes julgados desta Corte em casos análogos: HC 109577, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, DJe de 13-02-2014; HC 123701 AgR, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, DJe de 19-02-2015; RHC 121399, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, DJe de 01-08-2014; RHC 116995, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, DJe de 27-08-2013; HC 116151, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe de 10-06-2013. [...] (grifei)

Nos autos, há a declarada pretensão de atuação direta, especialmente da parte de Delcídio Amaral e Edson Ribeiro, com vistas a obter decisões judiciais favoráveis a Nestor Cerveró no Supremo Tribunal Federal, mediante atuação indevida junto a Ministros da Corte, o que hipoteticamente representa, além de risco à instrução criminal, grave ameaça à ordem pública, mediante esforços desmedidos para garantia da própria impunidade. (grifei)

[...]                         

Assim, presente a necessidade de resguardar a ordem pública, seja pelos constantes atos praticados pelo grupo (cooptação de colaborador, tentativa de obtenção de decisões judiciais favoráveis, obtenção de documentos judicias sigilosos) pela fundada suspeita de reiteração delitiva, pela atualidade dos delitos (reuniões ocorridas durante este mês de novembro, uma delas, inclusive, no último dia 19), ou ainda pela gravidade em concreto dos crimes, que atentam diretamente contra os poderes constitucionalmente estabelecidos da República, não há outra medida cautelar suficiente para inibir a continuidade das práticas criminosas, que não a prisão preventiva. [...] (grifei)

12. Há, porém, questão importante: trata-se aqui de prisão de parlamentar federal, Senador da República, como tal protegido por imunidade prevista no art. 53, § 2º, da Constituição: (grifei)

“Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Neste caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.”

13. Como exposto, há elementos que apontam, embora de modo ainda suposto, para a participação do Senador Delcídio Amaral na prática, em tese, dos delitos apontados pelo Procurador-Geral da República, entre eles o de organização criminosa, com indicação de convergência de vontades em associação estruturada e ordenada, mediante divisão de tarefas. (grifei)

O tipo do art. 2º da Lei 12.850/2013 (“Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa”) remete ao conceito estatuído no art. 1º:

“Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, como o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.”

Esse delito, tipificado anteriormente pela Lei 12.694/2013, é pacificamente reconhecido como crime permanente (HC 112454, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, Julgado em 19/03/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-066 DIVULG 10-042013 PUBLIC 11-04-2013) e, como tal, contempla não só a possibilidade de prisão em flagrante a qualquer tempo (HC 101095, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, Julgado em 31-08-2010, DJe-179 DIVULG 23-09-2010 PUBLIC 24-09-2010 EMENT VOL-02416-03 PP-00480) como até mesmo a chamada “ação controlada”, ou seja, “retardar a intervenção policial ou administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações” (art. 8º, caput, da Lei 12.850/2013).

Aqui se cuida, em tese e pelas razões já examinadas, de estrito flagrante. Mas não é só, No mesmo art. 2º, porém em seu § 2º, lê-se:

“Nas mesmas penas incorrem quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.”

Em qualquer caso, a hipótese é de inafiançabilidade decorrente do disposto no art. 324, V, do Código de Processo Penal.

14. Cumpriria considerar, é certo, que o já aludido art. 53, § 2º, da Constituição preserva incólume, no que diz respeito à disciplina das imunidades especificamente reconhecidas aos parlamentares federais, a regra geral segundo a qual, no âmbito das prisões cautelares, somente se admitiria a modalidade de prisão em flagrante decorrente de crime inafiançável. Assim me manifestei em questão de ordem na AP 396. (grifei)

Retira-se de acórdão de Plenário do STF no Inquérito 510/DF, relator o Min. Celso de Mello, Julgado em 1º.2.1991, época em que ainda se exigia a licença da casa legislativa para instaurar ação penal contra parlamentar (antes, portanto, da EC 35/2001):

“[...] O exercício do mandato parlamentar recebeu expressiva tutela jurídica da ordem normativa formalmente consubstanciada na Constituição Federal de 1988. Dentre as prerrogativas de caráter político-institucional que inerem ao Poder Legislativo e aos que integram, emerge, com inquestionável relevo jurídico, o instituto da imunidade parlamentar, que se projeta em duas dimensões: a primeira de ordem material, a consagra a inviolabilidade dos membros do Congresso Nacional, por suas opiniões palavras e votos (imunidade parlamentar material), e a segunda, de caráter formal (imunidade parlamentar formal), a geral, de um lado a improcessabilidade dos parlamentares, que só poderão ser submetidos a procedimentos penais acusatórios mediante prévia licença de suas Casas, e, de outro, o estado de relativa incoercibilidade pessoal dos congressistas (freedom from arrest), que só poderão sofrer prisão ou cautelar numa única e singular hipótese: situação de flagrância em crime inafiançável” (INQ 510/DF, Pleno, Inquérito Arquivado, j. 1º.02,1991, DJ 19.04.1991) (grifei)

A mencionada incoercibilidade pessoal dos congressistas configura-se, por conseguinte, como garantia de natureza relativa, uma vez que o Texto Constitucional excepciona a prisão em flagrante de crimes inafiançável, como exceção à regra da vedação de custódias cautelares em detrimento de parlamentares. (grifei)

A própria realidade, porém, vem demonstrando que também o sentido dessa norma constitucional não pode decorrer de interpretação isolada, do que confere exemplo eloquente o seguinte precedente desta Corte: (grifei)

“[...] Os elementos contidos nos autos impõem interpretação que considere mais que a regra proibitiva de prisão de parlamentar, isoladamente, como previsto no art. 53, § 2º da Constituição da República. Há que se buscar interpretação que conduza à aplicação efetiva e eficaz do sistema constitucional como um todo. A norma constitucional que cuida da imunidade parlamentar e da proibição de prisão do membro de órgão legislativo não pode ser tomada em sua literalidade, menos ainda como regra isolada do sistema constitucional. Os princípios determinam a interpretação e aplicação correta da norma sempre se considerando os fins a que ela se destina [interpretação teleológica]. A Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia, composta por vinte e quatro deputados, dos quais, vinte e três estão indiciados em diversos inquéritos, afirma situação excepcional e, por isso, não se há de aplicar a regra constitucional do art. 53, § 2º, Constituição da República, de forma isolada e insujeita aos princípios fundamentais do sistema jurídico vigente.” (HC 89417, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, jugado em 22/08/2006, DJ 15-12-2006 PP-00096 EMENT VOL-02260-05 PP-00879). (grifei)

15. O presente caso apresenta, ainda além, linhas de muito maior gravidade. É que o parlamentar cuja prisão cautelar o Ministério Público almeja não estará praticando crime qualquer, nem crime sujeito a qualquer jurisdição: estará atentando, em tese, com suas supostas condutas criminosas, diretamente contra a própria jurisdição do Supremo Tribunal Federal, único juízo competente constitucionalmente para a persecução penal em questão. Competência, aliás, que se extrai do mesmo art. 53 da Constituição da República, porém do parágrafo antecedente: (grifei)

“§ 1º Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.”

Valeriam aqui, portanto, com muito maior razão, as ponderações que se extraem do antes referido voto da Min. Cármen Lúcia:

“[...] Aplicar, portanto, isoladamente a regra do art. 53 §§ 2º e 3º da Constituição da República, sem se considerar o contexto institucional e o sistema constitucional em sua inteireza seria elevar-se acima da realidade à qual ela se dá a incidir e para a qual ela se dá a efetivar. O resultado de tal comportamento do intérprete e aplicador do direito constitucional conduziria ao oposto do que se tem nos princípios e nos fins do ordenamento jurídico [interpretação teleológica-sistemática]. (grifei)

A aplicação pura e simples de uma norma em situação que conduz ao resultado oposto àquele buscado pelo sistema jurídico fundamental – que se inspirou na necessidade inegável e salutar de proteger os parlamentares contra investidas indébitas de anti-democracias – é negar a Constituição em seus esteios mais firmes, em seus fundamentos mais profícuos, em suas garantias mais caras. É ignorar a cidadania (art. 1º, inc. II) para enaltecer o representante que pode estar infringindo todas as normas que o deixam nessa legítima condição; é negar a submissão de todos, governantes e governados, ao direito, cuja possível afronta gera o devido processo legal, ao qual não há como fugir de maneira absoluta sob qualquer título ou argumento. (grifei)

Tal é o que me parece ocorrer no caso ora apreciado. O que se põe, constitucionalmente, na norma do art. 53, §§ 2º e 3º. c/c o art. 27, § 1º, da Constituição da República há de atender aos princípios constitucionais, fundamentais, a) ao da República, que garante a igualdade de todos e a moralidade das instituições estatais; b) ao da democracia, que garante que as liberdades públicas, individuais e políticas (aí incluída a do cidadão que escolhe o seu representante) não podem jamais deixar de ser respeitadas, especialmente pelos que criam o direito e o aplicam, sob pena de se esfacelarem as instituições e a confiança da sociedade no direito e a descrença na justiça que por ele se pretende realizar. [...] (grifei)

Deve ser acentuado, entretanto, que:

a) o princípio da imunidade parlamentar permanece integro e de aplicação obrigatória no sistema constitucional para garantir a autonomia das instituições e garantia dos cidadãos que provêem os seus cargos pela eleição dos seus representantes. Cuida-se de princípio essencial para assegurar a normalidade do Estado de Direito; (grifei)

b) a sua não incidência, na espécie, pelo menos na forma pretendida pelo integrante, deve-se a condição especial e excepcional em que a sua aplicação gera a afronta a todos os princípios e regras constitucionais que se interligam para garantir a integridade e a unidade do sistema constitucional, quer porque acolher a regra, em sua singeleza, significa tornar um brasileiro insujeito a qualquer procedimento judicial, faça o que fizer, quer porque dar aplicação direta isolada à norma antes mencionada ao caso significa negar aplicação aos princípios fundantes do ordenamento; (grifei)

c) o caso apresentado nos autos é situação anormal, excepcional e não cogitada, ao que parece, em qualquer circunstância pelo constituinte [interpretação teleológica do art. 53 da CF]. Não se imagina que um órgão legislativo, atuando numa situação de absoluta normalidade institucional do País e num período de democracia praticada, possa ter 23 dos 24 de seus membros sujeitos a inquéritos e processos, levados adiante pelos órgãos policiais e pelo Ministério Público; (grifei)

d) à excepcionalidade do quadro há de corresponder a excepcionalidade da forma de interpretar [interpretação republicana] e aplicar os princípios e regras do sistema constitucional, não permitindo que para prestigiar uma regra – mais ainda, de exceção e de proibição e aplicada a pessoas para que atuem em benefício da sociedade – se transmute pelo seu isolamento de todas as regras do sistema [interpretação sistemática] e, assim, produza efeitos opostos aos quais se dá e para o que foi criada e compreendida no ordenamento. (grifei)

Tal é o que aconteceria se se pudesse aceitar que a proibição constitucional de um representante eleito a ter de submeter-se os processamento judicial e à prisão sem o respeito às suas prerrogativas seria um álibi permanente e intocável dado pelo sistema àquele que pode sequer não estar sendo mais titular daquela condição, a não ser formalmente. [...] Tal como a quimioterapia impõe que se agridam as células boas para atingir e exterminar células más, a fim de salvar o corpo do doente, assim também, repito o quanto antes afirmei: haverá de haver remédio Jurídico, sempre, a garantir que o corpo normativo fundamental não se deixe abater pela ação de uma doença que contraria a saúde ética e jurídica das instituições e que pode pôr a perder todo sistema constitucional.” (grifei)                                                                                             

16. Ante o exposto, presentes a situação de flagrância e os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, decreto a prisão cautelar do Senador Delcídio Amaral, observadas as especificações apontadas e ad referendum da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal. (grifei)

 

Expeça-se mandado de prisão, a ser cumprido na presença de representante da Procuradoria-Geral da República.

[...]

Oficie-se o Ministério Público.

Brasília, 24 de novembro de 2015

Ministro TEORI ZAVASCKI

  Relator

 

8. Analise da Lei 9.099/95 – Juizados Especiais Cíveis e Criminais – no contexto da prisão do Senador Delcídio Amaral

 

 Lei 9.099/95

Art. 61.  Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.

 

 Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.

 

Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. (...).

Neste contexto, é mister analisarmos as prescrições da lei 9.099/95 transcritos acima. A aludida lei manda que quando a infração penal praticada culminar pena inferior a 02 (dois) anos deverá ser lavrado Termo Circunstanciado (TC) e não Auto de Prisão em Flagrante (APF), se o infrator for apresentado ao Juiz ou assumir o compromisso de a ele comparecer, independentemente de estarem presentes ou não as condições de inafiançabilidade do inciso IV do art. 324 do CPP. Se admitirmos como acertada a construção jurídica de Luiz Flavio Gomes estaremos aceitando que o delegado está autorizado a desconsiderar a lei 9.099/95 e lavrar APF e não TC, mesmo quando a infração penal praticada for apenada com pena inferior a 02 (dois) anos, se ele (o delegado) entender estarem presentes as condições de inafiançabilidade do inciso IV, do art. 324 do CPP.

 

9. Possibilidade de prisão em flagrante de detentor de imunidade por qualquer do povo

 

Código de Processo Penal

 

Art. 301.  Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. (grifei)

 

Se fosse correta a interpretação de Luiz Flavio Gomes, teríamos que peremptoriamente admitir que qualquer do povo (art. 301 CPP) está autorizado a avaliar presença de condições de inafiançabilidade e, eventualmente, a prender em flagrante detentor de imunidade quando o qualquer do povo julgar presentes as condições de inafiançabilidade do inciso IV do art. 324 do CPP, ainda que a infração penal não esteja incluída no rol taxativo de infrações penais inafiançáveis (CF: art. 5º, incisos XLII, XLIII e XLIV, e; CPP: art. 323, incisos I, II e III).

 

10. conclusão

 

O legislador constituinte editou o § 2º do art 53 CF para servir de refúgio para evitar que o parlamentar sofra perseguições e prisões por motivos políticos, essa é interpretação teleológica republicana que deve ser realizada do § 2º do art. 53 da Constituição da República. Portanto, no caso sub examine, em virtude dos princípios republicanos que prevalecem sobre a regra abstrata, as disposições do § 2º do art. 53 CF não alcançam, nesse casso concreto, o Senador Delcídio Amaral, ficando ele sujeito à decretação de “prisão preventiva” como qualquer cidadão.

Infrações penais são “afiançáveis” ou “inafiançáveis”, não existe a possibilidade de um crime mutar-se de “afiançável” para “inafiançável”, vez que o rol é taxativo.

Embora o senador estivesse em estado de flagrância delitiva pela prática do crime capitulado no art. 2º da lei 12.850/13 (organização criminosa), crime este, já reconhecido pela jurisprudência do STF como crime permanente (HC 112454 e HC101095), a “prisão em flagrante”, pelo menos ao que se sabe, não foi realizada.

Tal crime é “afiançável” visto que não consta no rol taxativo de crimes “inafiançáveis”.

O PGR pediu a decretação de “prisão preventiva”, e não “prisão em flagrante”.

O Ministro do Teori Zavascki não decretou “prisão em flagrante”, e sim “prisão cautelar”, mesmo porque não existe no ordenamento jurídico brasileiro a figura alienígena de “decretação de prisão em flagrante”, nem da figura não menos alienígena de “mandado de prisão em prisão em flagrante”.

A prisão do senador foi legal, mas a legalidade não encontrou fundamento numa visão alienígena de que ilícitos penais “afiançáveis” estão sujeitos a tronarem-se “inafiançáveis” amparada absurdamente no inciso IV do art. 324 do CPP.

A prisão do senador encontra alicerce na salvaguarda do rule of law  (Estado de Direito) como bem lembrou a ministra Cármen Lúcia (a necessidade das prisões se impõe para resguardo do Estado de Direito) em seu voto quando da apreciação da “prisão cautelar” decretada monocraticamente pelo ministro Teori Zavascki; na salvaguarda das intuições constituídas;  no “princípio da razoabilidade”, visto que não é concebível imaginar que atos criminosos imorais continuem a ser praticados publicamente sem que o Estado, nem mesmo por meio de sua mais Alta Corte de Justiça, possa decretar a “prisão cautelar”  do criminoso para fazer cessar as práticas criminosas e salvaguardar a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal e a futura aplicação da lei penal, só porque o criminoso é um parlamentar; no princípio da “supremacia do interesse público”; nos “princípios republicanos”; numa ideia de “moralidade”, pois o legislador constituinte editou o § 2º do art 53 CF não para albergar parlamentares contra prisões ainda que eles estejam comprovada e publicamente praticando atos criminosos imorais como bem alertou o decano do STF Ministro Celso de Mello  por ocasião do mesmo referendum acerca da prisão do Senador Delcídio Amaral (“Imunidade parlamentar não constitui manto protetor de supostos comportamentos criminosos”).

 

 

Sobre o autor
Paulo Souza

Pesquisador.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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