O discurso redimensionado da justiça de Otfried Höffe

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Otfried Höffe nos apresenta em sua obra "Justiça Política" um projeto sobre política, ou como define o pensador, uma filosofia fundamental política endereçada à modernidade e dividida em partes muito bem fundamentadas e distintas.

INTRODUÇÃO

1. Introdução ao tema “redimensionamento do discurso da justiça”

Inicialmente, buscaremos elucidar o que compreende o pensador alemão por redimensionamento do discurso da justiça, tarefa que se presta a situar o leitor na discussão que proporá Höffe.

Segundo o filósofo, ainda na Grécia surgiu uma discussão conceitual-argumentativa acerca de determinadas circunstâncias políticas e é naquele locus que ocorre a crítica filosófica a partir de um critério de justiça política. Desta forma, as leis e as instituições políticas são submetidas a uma crítica ética (HÖFFE, 2006, p. 1).  

Assim, como afirma o próprio Otfried Höffe, já que na modernidade a política se transforma na figura de uma ordem jurídica e do Estado, propõe-se uma crítica, que aqui deve ser entendida como a análise de legitimidade e limitação, do direito e do Estado. Pensa-se em como uma autorização de monopólio da violência e limitação da liberdade pode produzir justiça.

A respeito dos critérios de dominação justa, é preciso que se considere seus limites com base em argumentos éticos, e assim sendo, é uma das tarefas da filosofia lançar uma luz sobre os ideais de justiça , posto que a reflexão da filosofia acerca da justiça, do Estado e do direito sempre existiu desde a antiguidade clássica, embora tenha sido interrompida no século XIX (HÖFFE, 2006, p. 2).

Com a separação do estudo da filosofia das ciências do direito e do Estado, ambos se distanciam igualmente da ética. Por outro lado, o discurso do direito e do Estado torna-se mais concreto do ponto de vista histórico e jurídico, libertando-se do risco de um moralismo precipitado. Perde, entretanto, também a perspectiva da justiça e com ela a crítica discursiva da argumentação" (HÖFFE, 2006, p. 3). O que pretende então Höffe, é reconciliar a filosofia com a teoria do direito e do Estado em um discurso da justiça consciente, o que, para ele, significa o enfrentamento de dúvidas iniciais e, em uma discussão com estas dúvidas, a busca por um redimensionamento do discurso do direito e do Estado.

2. A teoria de John Rawls por Höffe, uma crítica

Partindo do ponto inicial da teoria de Rawls sobre a justiça, é sabido que ele desenvolve um contramodelo ao utilitarismo, fixando bens primários básicos como forma de se alcançar a felicidade (bens intermediários), o que Höffe classifica como utilitarismo indireto.

O redimensionamento recua atrás da controvérsia e discute primeiro aquelas premissas que são pressupostas como óbvias por ambos os lados [Rawls e utilitaristas] e, entretanto, tornaram-se problemáticas na discussão político-filosófica do século XIX e do início do século XX (HÖFFE, 2006, p. 6).      

As objeções à estas ideias, utilitaristas e utilitaristas indiretas segundo Höffe, são duas. A primeira contrária à perspectiva ética na ideia de justiça política e a segunda contra as condições de aplicação, as relações do direito e do Estado.

O julgamento normativo e crítico das regras sociais e instituições interessa tanto a  Rawls como aos  utilitaristas, porém, não interessa ao positivismo do direito e do Estado. De outro lado, como se verá a seguir, surgem doutrinas anarquistas que negam uma crítica filosófica em nome da justiça.

Pela primeira vez no texto surge a ideia, que se estenderá por todo o livro, de uma dominação justa baseada no contratualismo e é trocada por uma liberdade da dominação (no sentido de libertar-se da dominação). Neste sentido, ética filosófica do direito e do Estado dá lugar a uma crítica da própria sociedade. Sabe-se que esta ideia do contratualismo é a base de toda a evolução social, seja de forma negativa ou positiva.

Höffe pondera que, levando em consideração que ambas as correntes de pensamento (positivismo e anarquismo) ponham "em dúvida o sentido e a possibilidade de um discurso sobre a justiça" (HÖFFE, 2006, p. 6), 

uma filosofia do direito e do Estado mais radical" precisa "confrontar-se com as suas provocações divergentes e empreender o redimensionamento do discurso do direito e do poder, a partir desta dupla discussão. Contra o positivismo jurídico é preciso fundamentar a perspectiva ética e com seu auxílio fundamentar uma limitação das relações de direito e de Estado, contra o anarquismo; porém, é preciso fundamentar a justificação de tais circunstâncias (HÖFFE, 2006, p. 8).

Deve-se combater o rigor do positivismo, porém, ao mesmo tempo, segundo Höffe, não se pode renunciar ao direito e ao Estado; ao mesmo tempo, há que se criticar o anarquismo sem deixar de defender a liberdade que previne contra o estado absolutista. 

Já que com a legitimação da liberdade é rejeitada a dominação como princípio social, e já que com a limitação, porém, é recusado um tendencial absolutismo do Estado, deve-se abandonar a imagem de Hobbes para a sociedade política. No lugar do Leviatã, que somente carrega as insígnias da dominação, entra a justitia, cujo símbolo de dominação, a espada, está desde o princípio a serviço da justiça (HÖFFE, 2006, p. 9).  

3. O projeto político da modernidade

O projeto político da modernidade "se alimenta de duas experiências fundamentais: na crise radical da sociedade, no estremecimento da ordem do direito e do Estado e na crítica radical das relações políticas e na experiência da exploração e da opressão."

A opressão culmina com a negação de direitos elementares ao ser humano. A ameaça do Estado alcança seu auge com as guerras civis. A guerra civil conduz ao regime positivista e a opressão estatal conduz à valorização da liberdade (ideia de liberdade).

A separação e o entendimento de três conceitos é fundamental para se pensar na evolução social. "A absolutização de uma experiência básica em detrimento da outra e o consequente isolamento dos conceitos-guia "direito e Estado" e "justiça" que isso resulta significam tanto um erro científico-filosófico com consequências práticas, como um preconceito político com consequências teóricas. Uma filosofia política, que faça justiça a ambas as experiências políticas fundamentais, [...] deve por isso levar em consideração todos os três conceitos: direito, justiça e Estado (HÖFFE, 2006, p. 13). 

Höffe elabora o que chama de uma hipótese tripartite, que é a seguinte: (1) o Estado está obrigado à justiça; (2) a justiça política forma a medida normativo-crítica do direito; e (3) o direito justo é a forma legítima de convivência humana.

O nível filosófico fundamental, a que se refere Höffe, é alcançado pela reflexão acerca de problemas fundamentais na teoria do direito e do Estado de modo a promover um redimensionamento.

Aquilo que, considerado o ponto de vista da história da teoria e da história social, pode ser chamado o projeto político da modernidade, significa sistematicamente uma filosofia primeira do político. Através da discussão com o positivismo jurídico e o anarquismo é empreendido o redimensionamento do discurso do direito e do Estado, numa radicalidade que lhe confere um nível filosófico fundamental (HÖFFE, 2006, p. 16).

No intuito de reconciliar teoria e prática, Höffe propõe a retomada da perspectiva aristotélica, não no sentido da ética e do método. "Em oposição a uma tal "teoria teorética", a teoria como fim dela mesma, uma "teoria prática" busca seu sentido e finalidade fora do saber, na própria práxis" (HÖFFE, 2006, p. 18).

Höffe aponta que a tarefa da filosofia é o pensamento conceitual-argumentativo, que não necessariamente "fornece receitas concretas", mas sim, "busca conhecimento e visão" "de uma forma qualitativamente suprema".

No âmbito dos fenômenos do conflito, da crítica e da crise política que convocam a filosofia para a atualidade, devem ser distinguidos diversos níveis. A filosofia fundamental do político não se refere a todos, mas somente aos degraus mais altos e considera o primeiro nível como nível preliminar (HÖFFE, 2006, p. 13).

Nesse ponto, não interessa obviamente à filosofia os aspectos práticos de discussões importantes como o aborto e o meio ambiente, pois existe um limiar da crítica do direito e do Estado, e no caso de temas desta magnitude, a discussão vai apenas até o limite de até onde deve-se proteger a vida humana, discutindo sobre o momento em que se inicia a vida humana e, no caso das leis de proteção ao meio ambiente, se devem ser impedidas apenas as destruições e ameaças brutais, ou também prejuízos ao meio ambiente de menor extensão.

Criticam-se, pois, neste nível, controvérsias acerca do rigor ou brandura das leis. Na filosofia fundamental, no primeiro nível, avança-se nos questionamentos discutindo se fazem parte das tarefas do direito e do Estado a regulação da vida intra-uterina e a proteção do meio ambiente, não se discutindo o conteúdo das leis, mas sim, a competência regulamentar da ordem do direito e do Estado.

No segundo nível a crítica se dirige à legitimidade de direito e Estado para intervir na liberdade do indivíduo e no jogo de forças sociais.  

4. Sobre a crítica do positivismo do direito e do Estado  

Iniciando as críticas ao positivismo e dando as primeiras ideias sobre a justiça política, Höffe inicia sua ideia de ideal, partindo da premissa grega até os dias atuais com a ideia de equidade e o princípio da imparcialidade.

Tendo em vista a diversidade de concepções de justo e injusto, mesmo na teoria da justiça onde encontram-se diversos princípios de justiça rigorosamente elaborados, deve-se optar por uma concepção. Um primeiro modelo de positivismo nega a adesão a qualquer princípio de justiça (relativismo ético-jurídico), isto porque a categoria da validade objetiva não possui significado não existindo sentido a busca por um critério de justiça (HÖFFE, 2006, p. 28).

O conflito de representações de justiça é conhecido, na filosofia, desde a Antiguidade.[...] Uma primeira possibilidade de superar o positivismo jurídico-ético permanece ainda, num procedimento empírico num sentido mais amplo. Mas ela ainda questiona a base empírica a que o positivismo recorre e procura, primeiro ao lado, depois atrás dos princípios de justiça conflitantes, elementos comuns que o relativismo omite (HÖFFE, 2006, p. 28).

Não negando a existência de diferenças inconciliáveis entre as diversas concepções de justiça, Höffe alerta para pontos comuns entre elas. Há segundo ele princípios de ação cuja justiça ninguém põe em dúvida. Ex: justiça de troca - dar e receber.

Existem princípios de justiça não questionados em situações de procedimentos, por exemplo, quando em uma situação de conflito diz-se que deve-se ouvir o outro lado; a proibição de ser juiz em causa própria. Höffe afirma que tais princípios são justos pois servem a um "princípio superior de justiça", a imparcialidade (equidade) (HÖFFE, 2006, p. 29).   

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Daí a representação artística da justiça com a balança nas mãos e os olhos vendados. Para Höffe a imparcialidade se expressa na recusa de arbítrio, ou seja, na exigência de que se decida sem levar em consideração as pessoas.

O esforço de Höffe em definir princípios incontroversos o permite negar o relativismo ético-jurídico em certa medida. O relativismo que resta, no entanto, questiona de se é relevante, visto que questões de troca e de procedimento poderiam ser resolvidos através dos dois princípios incontroversos por ele determinados: princípio da equivalência do dar e do receber e princípio da imparcialidade (equidade).

Com isto, se poderia considerar a imparcialidade como princípio abrangente. Mas com isto o relativismo ético-jurídico não estaria inteiramente superado. Enquanto a espécie de problemas que se apresenta na justiça política não está ainda determinada, deve-se contar com questões de distribuição e então com um relativismo dos princípios de justiça distributiva (HÖFFE, 2006, p. 30).

Esse relativismo restante não merece capitulação, afirma Höffe (2006, p. 30). Isto porque a imparcialidade poderá ser aplicada a resolução das controvérsias, inclusive a da justiça distributiva. Afirma, ainda, que que possui dois níveis a solução destas controvérsias. O primeiro consiste em aplicar um princípio incontroverso à questão que é a exigência de tratar cada um conforme o mesmo ponto de vista. "Após esta imparcialidade de primeiro grau, a imparcialidade na aplicação da regra importaria uma imparcialidade de segundo grau, a do estabelecimento da regra, determinar também, sem consideração da pessoa, o ponto de vista condutor da distribuição de bens e encargos" (HÖFFE, 2006, p. 31).

Não se pode esperar, segundo Höffe, a aplicação de uma única regra para todas as esferas da vida, afinal, "em diferentes áreas de competência, são justos também distintos princípios de distribuição" (HÖFFE, 2006, p. 31).

Se no caso de procedimentos já se caracteriza como justa a imparcialidade (equidade) na aplicação da regra, trata-se aí de uma justiça subsidiária, não originária. Pois a aplicação imparcial da regra também pode estar a serviço de um bando organizado de Estado obviamente injusto, e ainda conter privilégios e discriminação evidentes e brutais. A justiça originária só existe lá onde também as regras (no todo) são justas (HÖFFE, 2006, p. 31). 

5 Da ética empírica à ética normativa (crítica a teoria de Rawls)

Podemos superar o resto do relativismo com a aplicação em dós níveis do princípio da imparcialidade? Para Höffe, esta questão pode ser adiada porque "as correspondentes questões de distribuição talvez nem surjam no discurso político fundamental"(HÖFFE, 2006, p. 31).

O utilitarismo também não reconhece a justiça como conceito normativo-fundamental, lhe concedendo um significado derivado. Por isto, segundo Höffe, quem se propõe a criar um contra modelo ao utilitarismo deve fundamentar uma perspectiva de justiça, e não pressupô-la. 

Rawls, como principal crítico do utilitarismo atual, propõe o que Höffe considera ser uma teoria empírica da justiça. Diferente de uma teoria da ciência natural, a teoria de Rawls, como ciência prática, corrige seu objeto.

Assim como um cientista da linguagem pretende levar a uma conexão coerente o comportamento linguístico gramaticalmente certo, de falantes competentes, e descrevê-lo com um mínimo de princípios possível, assim Rawls procura articular os bens refletidos juízos da justiça de um competente julgador moral, num sistema bem integrado e livre de contradição, num assim chamado equilíbrio refletido (vide "esquema", atualmente "equidade") (HÖFFE, 2006, p. 32).

Apesar de afirmar que a teoria de Rawls tem um significado normativo crítico, Höffe nega que ela possa "assumir a tarefa fundamentalmente normativa: a justificação das perspectivas normativas contidas nos juízos da justiça" (HÖFFE, 2006, p. 33).     

Percebe-se que a visão de Höffe privilegia uma leitura teórica de conceitos de justiça e equidade e critica um conceito de justiça que leve em conta aspectos pragmáticos, posto que jamais seriam suficientes para basear com solidez uma ideia de justiça política.

 

6 Críticas ao Anarquismo

Da mesma forma que remete à Grécia antiga para estabelecer os fundamentos de sua critica ao positivismo, Höffe lança mão da mesma base para fazer suas críticas ao anarquismo, posto que a concepção de estado passa invariavelmente pelos gregos, bem como sua eventual ausência.

O conceito de Pólis de Aristóteles serviu para que o autor fundamentasse a ideia primitiva de justiça política. Diz o autor que, na forma de viver do homem grego, Aristóteles defende o conceito de pólis como um paradigma de vida, ele a legitima. A natureza é um conceito complexo e através da pólis é possível extrair conceitos descritivos e normativos. Segundo Höffe a pólis tem uma função, ela “deveria existir para que os homens possam perseguir seu interesse natural”. O bem perseguido não pode ser um bem concreto (específico), posto que os homens possuem carências e interesses variados. O fim do homem é a auto conservação, não quer viver com fadiga e necessidades, mas sim de forma rebuscada e moderna, agradável, bem-sucedida, feliz. Em suma: “o homem é um ser social por natureza porque quer viver, e um ser político porque quer viver bem.” Para Aristóteles o homem somente pode viver com ele mesmo (coexistir) numa comunidade da importância e do nível de uma pólis, onde o ser-homem do homem, a sua humanidade atinge a plena realidade.

Aristóteles (em “a política”) considera necessárias à vida 3 relações: A relação homem mulher que significa em suma a conservação da espécie, a relação do pai com os filhos, que significasobrevivência e educação, e relação entre senhor e servo, que da mesma forma significa sobrevivência, mas com uma conotação política e social.

 Destas relações forma-se a casa; das casas a formam-se os povoados, e dos povoados forma-se finalmente a pólis.

A relação homem mulher e entre o pai e filhos é primária, e remete ao reino animal. A relação que remete à postura do homem no cosmos, é o logos. Segundo Aristóteles, o logos instaura a comunicação e é a força fundadora da pólis, uma força constituinte de dominação.  

Sobre as 3 relações, pode-se dizer que a relação homem mulher e entre pai e filhos se forma a partir de uma carência, da sexualidade, do cuidado,  e esta apenas funciona quando promove o prazer, ou quando sua não realização promove o desprazer. Em segundo lugar, para o surgimento do povoado, os filhos crescem,casam-se e tem suas famílias, e isto está ligado à aspiração por uma vida agradável e segura. A última etapa, na realização da pólis, implica a auto-realização com “racionalidade ética” representando o comum e o justo.

Aristóteles considera naturais as relações sociais, e até justas, mas não confia na espontaneidade sem coerção (anarquia), pois as consequências seriam desastrosas, pelo desejo de guerra (polemon epithymetes), e a ausência de coerção levaria o homem a ser o pior de todos os seres vivos (cheiriston panton).

Esta ideia ganhou mais tarde o reforço hobbesiano na ideia de que o homem ao viver sem uma força coercitiva sobre si, estaria fadado a uma vida de miséria, de dominação e de guerras. Platão, por sua vez, desenvolveu a ideia da dominação a partir da cobiça.

7 Mandatos de Coerção

Aristóteles e Platão defendem a ideia de mandatos para exercício de coerção, da necessidade de conflito, pois onde não há lei existe perigo de luta, pela natureza de conflito do homem. Como já dito acima, Platão liga este fato à cobiça humana. Aristóteles fala do conceito de casa e da relação do servo com o senhor e diferencia da relação do governo e cidadão na polis, pois existe nessa última a justiça normadora da polis. A relação do servo e senhor é uma relação “despótica” e Aristóteles visualizou no conceito de pólis de Platão uma comunidade de “livres”, um “governo sobre livres”.

A respeito do tema escravidão, para Hoffe, Aristóteles não a via como uma violação de justiça exatamente, uma vez que ao escravo falta a capacidade de sobrevivência autônoma, por impedimento intelectual, e não meramente uma discriminação. Seria então, embora não se expresse dessa maneira, até mesmo uma proteção à uma figura que carece de meios de sobreviver por si.

Sobre o anarquismo radical, Höffe entende que quando se pensa na ausência completa de uma força coatora, isso se baseia no pensamento de que “dos conflitos existentes e dos pensáveis nenhum justifica uma solução com mandato para exercício da coerção”. Outra leitura é de que, podem existir tais conflitos, mas eles não são necessários, devendo-se evitá-los desde o começo. O autor, discordando em parte do pensamento anarquista, entende que não existe um convívio livre de conflito, e que este pode significar algo importante para o homem.

 Aqui encontra-se margem para que seja introduzido o pensamento de Chantal Mouffe quando trata de democracia moderna e diz que:

“A  democracia liberal moderna aceita o pluralismo, que é entendido como a ideia substantiva da vida boa. O reconhecimento do pluralismo implica uma profunda transformação na organização simbólica ordenação das relações sociais. Diz que existe uma diversidade de concepção de bem na sociedade liberal, mas que a diferença importante não é a empírica mas está no nível simbólico. O que está em jogo é a legitimação do conflito e divisão, o surgimento da liberdade individual e da afirmação da igual liberdade para todos” (MOUFFE, 2000, p. 191tradução livre)

Ainda, Mouffe prossegue em sua critíca à teoria de justiça de Rawls dizendo que o conflito pode ser a base da democracia, pois:

“ A ilusão da resolução de conflitos carrega implicitamente o desejo de uma sociedade reconciliada, onde o pluralismo teria sido substituído. Quando é concebida de tal forma, a democracia pluralista torna-se uma "ideal auto-refutável ", porque o momento da sua realização coincidiria com a sua desintegração.”

Höffe da mesma forma critica a teoria de Rawls dizendo que para ele, Rawls é a figura central do reaparecimento da teoria do contrato social em que o estado de natureza é a posição original, e o componente moral é o véu da ignorância, nas palavras do autor. Ele crítica a falta de pressupostos da posição original, e analisa a teoria de rawls como de cooperação e conflito, conflitos que surgem da cooperação, cooperação pela escassez de recursos, quando estes se encontram em abundância, e critica a tese alegando que a cooperação que apregoa Rawls está sempre ligada a uma escassez moderada. Na verdade o autor critica a teoria de Rawls dizendo que ela possui sim muitos pressupostos iniciais quando diz respeito aos bens chamados primários (liberdades), mas que apresenta poucos requisitos, ou menos do que o necessário, quando se imagina uma sociedade de conflito ante a escassez de bens (materiais, recursos).

8 Anarquia e Ceticismo

A doutrina Anarquista tem um certo ceticismo como princípio social, ceticismo questionador dos mandatos políticos como legitimados para a coerção estatal, pois esta dominação   seria ilegítima não  empiricamente mas normativamente.

O autor utiliza  a palavra Herrschaft[1]  no sentido de superioridade social e prestígio (HÖFFE, 2005, p.168). Então a dominação referida diz respeito a um tratamento social, e não político ou econômico. O autor remonta a problemática jurídico-política desde o mundo antigo até a modernidade, e desemboca no conceito da liberdade das instituições, estas conceituadas como uma organização social criada por um poder que dura porque ela contém, uma ideia fundamental aceita pela maioria dos membros do grupo.. A legitimação, segundo Hoffe, decorre da institucionalização à serviço da justiça.

A respeito da mediação, ressalta este autor que quando exercida entre os detentores de discursos  deve ser também legítima, sob pena de tornar falaciosa a discussão. 

“quando as instituições pluralistas são substituídas por ideias que aparentam uma pseudo-compleição cidadã, mas nada mais seriam que os oportunismos em detrimento dos interesses fundamentais da sociedade, fomentando um processo de segregação de direito e do Estado, às vistas de interesses particularizados ou de concepções políticas predominantes”

Sobre a cooperação e o conflito, Hoffe afirma que

“Mas esta é a crise pluralista em que se vive atualmente, é preciso, pois, considerar a afirmação dos novos paradigmas que se têm em sociedade e aí não faltam correntes que introduzem algumas reflexões entre a conservação do pensamento tradicional e a reconstrução a partir de teorias e interpretações paradigmáticas.”

Por isso vai afirmar Höffe (2000, p.335): “Sempre pressupondo uma vantagem distributiva, os argumentos de cooperação falariam por uma sociedade relativamente muito diferenciada, enquanto os argumentos de conflito falariam pela institucionalização, nesta sociedade”.

9 Fases da Dominação

O autor fala de um período de dominação pré política (despotismo pre-político) em que ainda que não exista um poder estabelecido e mandatos legitimadores de coerção, existiria sim, uma dominação sem dominadores, sem império de mandatos e coerção, uma regulação impessoal, , costumes, tabus e leis que devem ser cumpridos com exatidão. Max Weber chama de “anarquia regulada” e dá o exemplo de algumas tribos sem cacique (acéfalas).

Falando a respeito da virtude ética, o autor traz os conceitos de aristóteles, que diz que ética é não se deixar dominar pelas paixões, pois não existe um Estado sem cobiça e inocente, sendo preciso ordenar as paixões. Para ele virtudes éticas são posturas sociais e políticas. A amizade, como a liberdade, generosidade e justiça são fundadoras de entendimento entre os homens, por fim cuida da unidade entre os estados, sendo mais importante para o legislador mesmo do que a justiça (ética a nicomaco). Porem, para aristoteles, endo impossível se constituir um estado apenas de homens perfeitos, assim  a pólis também não é uma comunidade de “asilo moral”. Para o autor, Aristóteles exagera quando entende que a felicidade do indivíduo e do Estado seriam a mesma coisa, pois a pólis não é senão aquela que coloca à disposição os pressupostos econômicos, sociais e jurídicos enquanto a auto-realização ou humanidade deve ser efetivada pelo cidadão.

10 Justiça política como princípio de uma sociedade de liberdade

Falando ainda sobre a legitimação política, sobre o ponto de vista ético de justiça, o autor traz as 3 condições para aplicação da justiça política: cooperação ou conflito, felicidade ou liberdade e sua mediação final. Detalhando esta ideia, temos que a tarefa da legitimação política consiste na determinação de dois elementos e sua mediação final. Os dois elementos são 1) o ponto de vista ético da justiça como um elemento normativo de terceiro grau e como vantagem distributiva contra o ceticismo do positivismo jurídico; 2) esclarecer as condições descritivas  da aplicação da justiça política (cooperação ou conflito, felicidade ou liberdade); 3) Mediação. A mediação se dá no que o autor chama de 3 tarefas parciais: ao comparar e demonstrar que a coexistencia de liberdade dirigida por regras é superior a uma auto-regulação espontânea; o estado de natureza secundário é superior ao estado de natureza primário, e por último que a institucionalização das regras  (superação do estado secundário) é mais vantajosa para todos os afetados.

11 Etapas da Justiça

O autor considera a justiça sob três etapas: a justiça natural (que é na sua visão pré-institucional), a justiça institucional e, por último, de uma justiça política. A justiça natural se enlaça no discurso da legitimação dos direitos humanos, proteção à vida, liberdades fundamentais.

A justiça institucional significa que a justiça deve deixar de ser uma troca de liberdades (este dilema diacrônico da reciprocidade) superando ao passar de gerações.

A justiça política se dá pela articulação dos princípios positivados da justiça com a racionalidade científica, com o consenso moral e as relações de cooperação entre ciência e política, de tal sorte que a coletividade recebe uma chance de encontrar e reconhecer, sob as condições atuais das sociedades complexas, as formas concretas de justiça política, em resumo, de realizá-la historicamente (HÖFFE, 2000, p.437).

12 Discurso da Justiça Redimensionado

Na 3ª parte da obra o autor procura “redimensionar” o discurso de justiça e projetá-lo na contemporaneidade.

Quando o autor fala de justiça política como princípio de uma sociedade de liberdade, ele faz uma construção tripartite:

1) uma justiça natural ou pré-institucional em que há uma justiça definidora da liberdade fundamental e uma normadora pelo direito positivo (uma justiça que define o direito e uma que normatize);

2) uma justiça institucional em que se firmam as normas por mandatários legitimados para tal mister (a realização) e;

3) uma justiça política que buscaria o consenso entre a moral e a cooperação entre ciência e política, os princípios de justiça aliados à razão crítica e o reconhecimento da coletividade por uma concretização histórica das instituições.

Levando o assunto para a antropologia política, a discussão é da adoção de um desses dois modelos, a cooperação ou o conflito. Então o autor traz os argumentos em favor da cooperação. Supostamente, a “liberdade da dominação” é a ideia do anarquismo, que crê que a colaboração é possível sem coerção, enquanto o modelo de conflito parece ser contrário a uma ideia de coerção social, ter um preconceito contra a coerção.

Conclusão

Conclui-se que atravessadas as etapas de uma justiça natural que define as liberdades fundamentais e as garante normativamente pelo direito positivo, além de uma justiça institucional que legitima e resguarda tais liberdades com certa permanência às gerações, chega-se à justiça política, cujo interesse é o da realização histórica das instituições reconhecidas e de competência da coletividade, por meio da racionalidade crítica aliada aos princípios da justiça, do consenso da moral e das relações entre ciência e política.


[1] Herr: senhor, mais velho, mais digno

Referências Bibliográficas

GARGARELLA, Roberto. Teorias da justiça depois de Rawls, um breve Manual de filosofia política, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2008.

MOUFFE, Chantal. The Democratic Paradox, London-New York, Verso, 2000

HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do Direito e do Estado. 3a. ed. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Justiça e Direito)

VIEIRA, Lara Fernandes; SOUZA, Rogério da Silva e. A justiça política de Otfried HöffeJus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3761, 18 out. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25531>. Acesso em: 14 set. 2014.

RAWLS, John, Uma Teoria da Justiça, Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves – São Paulo: Martins Fontes, 1997.

Sobre os autores
Rafael Gomiero Pitta

Advogado .Professor universitário em UniBalsas - Faculdade de Balsas. Especialização em Direito Civil e Processo Civil.

André Leite

Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Bolsista CAPES. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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