Investigação criminal preliminar, defesa técnica e impactos trazidos pela nova lei de abuso de autoridade

25/11/2022 às 17:15
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RESUMO: O texto ora apresentado pretende analisar a importância da efetivação dos direitos fundamentais durante toda persecução penal, inclusive na fase investigatória. Como principal meio de investigação criminal, o inquérito policial, presidido pelo Delegado de Polícia, deve ser abordado à luz dos valores constitucionais como o devido processo legal (administrativo) e, dentro do possível à sua eficácia, os consequentes desdobramentos do contraditório e da ampla defesa. Assim, verifica-se a importância da análise da Lei n. 13.245/16 que alterou o Estatuto da OAB garantindo maior participação do advogado no inquérito policial. Não obstante a timidez do legislador no desenvolvimento do tema, tem-se a atenção para uma investigação criminal que, sem perder o caráter inquisitivo e sigiloso, esteja em consonância com a aplicação de direitos ligados à dignidade da pessoa humana, desde que não atropele a legítima eficácia da investigação.

Palavras-chave: Inquérito Policial. Direitos Fundamentais. Defesa. Democracia. Sistema Inquisitivo.

PRELIMINARY CRIMINAL INVESTIGATION, TECHNICAL DEFENSE AND IMPACTS TRACKED BY THE NEW ABUSE OF AUTHORITY LAW

ABSTRACT: The text presented here intends to analyze the importance of enforcement of fundamental rights throughout criminal prosecution, including the investigation stage. As the primary means of criminal investigation, the police inquiry, chaired by the Chief of Police, should be addressed in the light of constitutional values such as due process (administrative) and, as far as possible to its effectiveness, the resulting consequences of the contradictory and wide defense. Thus, there is the importance of analysis of Law no. 13.245/16 which amended the Statute of OAB ensuring greater participation of the lawyer in the police investigation. Despite the legislator's timidity in the theme of development, there is attention to a criminal investigation, without losing the inquisitive and secrecy, is in line with the application of rights linked to human dignity, since it does not run over the legitimate effectiveness of research.

Keywords: Police Inquiry. Fundamental Rights. Defense. Democracy. Inquisitive System.

SUMÁRIO:

1. Aspectos Gerais

2. Nova redação do art. 7º, XIV, do Estatuto da OAB

3. Inserção do inciso XXI ao art. 7º do Estatuto da OAB

4. Observações acerca do caráter inquisitivo do inquérito policial

Considerações finais

Referências bibliográficas

1. Aspectos Gerais

O inquérito policial desempenha duas importantes funções. Possui função preservadora na medida em que sua prévia existência resguarda a liberdade do inocente e evita custos desnecessários ao Estado, pois inibe a instauração de um processo penal temerário e infundado. Ademais, por ofertar elementos de informação para que o titular da ação penal ingresse em juízo e para acautelar meios de prova que poderiam desaparecer com o decurso do tempo, pode-se dizer que o inquérito policial também possui função preparatória (LIMA, 2016).

Em um Estado Democrático de Direito a investigação policial deve ser realizada dentro dos limites legais. A CRFB de 1988 trouxe uma série de direitos e garantias objetivando preservar o núcleo básico da dignidade da pessoa humana. A eficiência da persecução penal, inclusive na fase investigatória, não está condicionada a violação de direitos fundamentais, os quais também devem ser efetivados no âmbito da Polícia Judiciária. A Autoridade Policial não pode se furtar em viabilizar garantias mínimas e direitos fundamentais do indivíduo, a decisão do Delegado de Polícia deve ser fruto da argumentação e da fundamentação jurídica, conformando-se com os valores constitucionais.

A Lei n. 12.830/2013, em seu art. 2º, §1º, confirma que a autoridade policial mencionada pela legislação processual penal é o Delegado de Polícia, o qual exerce cargo privativo de bacharel em direito e exerce atribuições diretamente relacionadas à aplicação concreta de normas jurídicas aos fatos que lhe são apresentados. Deste modo, a função de polícia judiciária e a apuração das infrações penais exercidas pelo Delegado são de natureza jurídica (LIMA, 2016). Outrossim, o art. 144 da CRFB, ao disciplinar a segurança pública, atribuiu ao Estado o dever de preservar a incolumidade das pessoas e do patrimônio. Ao Delegado foi dada a missão constitucional de comandar a Polícia Judiciária, um dos órgãos de segurança. Portanto, considerando que os direitos fundamentais se revelam mais por princípios do que por regras, impõe-se ao Delegado uma maior atuação no campo da interpretação e aplicação das normas jurídicas.

O direito fundamental do indivíduo de ser investigado criminalmente de forma preliminar corrobora a devida investigação criminal constitucional. Assim, antes de iniciado o processo penal, como justa causa para realização de uma pretensão acusatória, urge a demonstração de prova da materialidade do crime e indícios suficientes de autoria, proporcionando ao Estado, por meio do Poder Judiciário que examinará os elementos investigativos e os expostos na respectiva ação penal, exercer o seu poder-dever de punir (SANNINI NETO, 2021). Portanto, tem-se a distinção entre o inquérito policial e a instrução processual. Enquanto o primeiro visa a obtenção de elementos aptos a justificar a propositura da ação penal, o segundo tem o objetivo de colher provas para demonstrar a legitimidade da pretensão punitiva ou do direito de defesa. Ademais, o inquérito policial, além de auxiliar na formação da opinio delicti do órgão da acusação, pode subsidiar a decretação de medidas cautelares pelo magistrado ou fundamentar uma decisão de absolvição sumária (LIMA, 2020).

A filtragem constitucional do Direito se dá através de uma releitura de toda ordem jurídica em consonância com os valores constitucionais. Essa filtragem, somada à elevação de temas infraconstitucionais em normas constitucionais, como é o caso do processo penal, traduz o fenômeno da constitucionalização do Direito que, com a irradiação das normas e valores constitucionais para todos os ramos do ordenamento, inclusive na esfera criminal - onde se insere a atribuição constitucional da Polícia Civil na apuração de infrações penais (art. 144, §4º, CRFB) -, fenômeno especialmente ligado aos direitos fundamentais, consiste em uma das mudanças decorrentes do neoconstitucionalismo que se desenvolveu sob a égide da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Assim, a dignidade humana passou a fazer parte da cultura jurídica brasileira. Trata-se, basicamente, de um direito do homem surgido em função da necessidade do reconhecimento de outros direitos da pessoa além dos direitos individuais. Paralelo ao surgimento de idéias jurídicas como a de espécie humana, houve a positivação dessas novas categorias de direitos fundamentais (BARRETO, 2010).

O atual modelo constitucional deve inspirar uma releitura de todo o processo penal. Isto posto, verifica-se que a exclusão da participação do indiciado na fase investigativa se coaduna com o autoritarismo estatal. Com tal característica, GAVIORNO (2021, p. 151) infere que “o advento do Estado Democrático de Direito, fundado no valor da dignidade humana, impõe que ao investigado deve ser reconhecida a condição de sujeito de direitos, não mais se sustentando a condição de mero objeto de investigações”.

De tal forma, vislumbra-se a importância do debate acerca da Lei n. 13.245/2016 que alterou o art. 7º, XIV, da Lei n. 8.906/94 (Estatuto da OAB) e acrescentou o inciso XXI e os parágrafos 10, 11 e 12 ao mesmo dispositivo legal. Primeiramente, como já ventilado tanto no art. 5o, LV, da CRFB quanto na Súmula Vinculante n. 14 do STF, houve o desenvolvimento da disciplina legal sobre o acesso do advogado aos autos da investigação (policial ou não) e a respectiva responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade daquele que impedir o acesso visando prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer o acesso judicialmente. Em seguida, a citada lei inseriu o inciso XXI ao art. 7o do Estatuto da OAB de modo que o advogado passou a ter o direito de assistir atos investigatórios, sob pena de nulidade absoluta.

É preciso pontuar que o direito de acesso é dirigido ao advogado do investigado, trata-se de uma prerrogativa a ser utilizada na defesa do investigado. Nessa linha de intelecção, o AG. REG. na Reclamação n. 9.789, julgado pelo Tribunal Pleno do STF em 18/08/2010, por unanimidade negou vista aos autos do inquérito policial em razão do sujeito não figurar como parte investigada. Em momento algum a Lei n. 13.245/2016 determinou que a presença do advogado é indispensável às oitivas de testemunhas e vítimas, situação que conflitaria com a natureza, objeto e finalidade do inquérito policial (LOPES JR., 2021).

Em relação à Defensoria Pública, apesar de não estar sob a disciplina do Estatuto da OAB, não se pode negar os pontos de convergência dessas instituições no processo penal. Ademais, o art. 44, III, da LC n. 80/94, traz regra semelhante à prerrogativa ora estudada (“São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública da União (…) VIII – examinar, em qualquer repartição pública, autos de flagrantes, inquéritos e processos, assegurada a obtenção de cópias e podendo tomar apontamentos”).

De outro lado, a enriquecer a discussão, importante pontuar que na edição 21 de seu Curso de Processo Penal, TOURINHO FILHO (1999) acentuou que, por não haver acusação, não se pode falar na existência de defesa no curso do inquérito policial. Em relação ao conteúdo extraído do art. 5º, LV, da CRFB, o autor explica que, por não existir acusado no inquérito policial, a interpretação que entende pela existência da defesa durante a fase investigativa resta equivocada. “Por isso mesmo os Advogados dos indiciados, quando se fizer necessário o sigilo, não podem acompanhar os atos do inquérito policial” (TOURINHO, P. 182).

Entretanto, as lições TUCCI (2021) esclarecem que o citado comando constitucional também é dirigido aos investigados em procedimento administrativo como é o caso do inquérito policial. Nesta linha, apesar do próprio legislador nacional não ter critérios claros de distinção entre as noções de processo e de procedimento, tem-se que o inquérito policial é um "procedimento administrativo-persecutório de instrução provisória, destinado a preparar a ação penal" (TUCCI, 2021, p. 476).

2. Nova redação do art. 7º, XIV, do Estatuto da OAB

A antiga redação do art. 7º, XIV, do Estatuto da OAB (Lei n. 8.906/94) dizia serem direitos dos advogados (...) “examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos”.

Com a mudança provocada pela Lei n. 13.245/16 o citado dispositivo legal passou a vigorar com a seguinte redação: “examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital” (grifei).

Sobre as alterações pontua-se que, apesar de discutível, principalmente pela ausência de previsão constitucional expressa, têm-se, no panorama atual, outros órgãos, além da Polícia Judiciária, investigando infrações penais (STF, RE 593.727). Portanto, verifica-se que o texto original do Estatuto da OAB, compatível com a conjuntura de 1994, versava apenas sobre “repartição policial” e “inquérito policial”. Desta maneira, a nova redação expressa que o advogado tem o direito de analisar os autos de qualquer procedimento investigatório (inclusive de natureza não criminal), não apenas o policial (alargando a interpretação da citada súmula vinculante), podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital como, por exemplo, através de fotografias.

Em regra, o acesso do advogado aos autos da investigação não está condicionado à apresentação de procuração. Contudo, conforme norma do art. 7º, §10, do Estatuto da OAB, a procuração será exigida quando se tratar de investigação sigilosa. Neste caso, conforme exigência do próprio art. 5º do Estatuto da OAB, é necessário que o advogado esteja munido de procuração. Porém, nos termos do art. 266 do CPP, “a constituição de defensor independerá de instrumento de mandato, se o acusado o indicar por ocasião do interrogatório”. Caso o investigado não esteja presente, tem-se a regra do art. 5º, §1º, do citado diploma legal segundo o qual, “o advogado, afirmando urgência, pode atuar sem procuração, obrigando-se a apresentá-la no prazo de quinze dias, prorrogável por igual período”.

Em relação à exigência de procuração, entende-se pela derrogação do art. 13, parágrafo único, II, da Resolução 13/2006 , do CNMP (que regulamenta o art. 8º da LC 75/93 e o art. 26 da Lei 8.625/93, disciplinando, no âmbito do Ministério Público, a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal), segundo o qual “a publicidade consistirá: (...) no deferimento de pedidos de vista ou de extração de cópias, desde que realizados de forma fundamentada pelas pessoas referidas no inciso I ou a seus advogados ou procuradores com poderes específicos, ressalvadas as hipóteses de sigilo”.

No inquérito policial o sigilo deve ser decretado de forma fundamentada, não podendo se limitar à alegação de interesse social ou conveniência da investigação sem demonstrar os fatos concretos que originam tais fundamentos (GAVIORNO, 2021). De acordo com o art. 23 da Lei n. 12.850/13, quando a investigação tiver como objeto organizações criminosas, decretado o sigilo pela autoridade judicial competente, o acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa deverá ser precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento.

O próprio texto constitucional (art. 5o, LXIII, CRFB) assegurou assistência de advogado ao preso. Como forma de garantir o preceito constitucional, essa assistência deve ser aplicada ao inquérito policial, salvo quando se tratar do sigilo interno inerente à eficácia das investigações ainda não realizadas ou não concluídas (LIMA, 2020) . Não se pode olvidar que, no curso das investigações, podem existir diligências, cujo sigilo é indispensável à sua finalidade. É o caso, por exemplo, da interceptação telefônica, do levantamento de dados cadastrais do investigado ou até mesmo da busca e apreensão. Em relação às diligências em andamento e ainda não documentadas nos autos, o Delegado de Polícia poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências (art. 7º, §11, do Estatuto da OAB). A partir da documentação formal da diligência que tramitava em sigilo, tem-se a possibilidade de vistas ao defensor. Quanto ao sigilo externo, entende-se por aquele determinado para impedir a divulgação, ao público em geral, por meio da mídia, de informações essenciais às investigações (TÁVORA; ALENCAR, 2020).

Em relação a não implementação da prerrogativa, inserida no novo art. 7º, XIV, do Estatuto da OAB, por parte da autoridade com atribuição para investigar; a Lei 13.245/2016 adicionou a regra do §12 ao citado artigo, prevendo responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade daquele que, visando prejudicar o exercício da defesa, negar acesso ao advogado ou fornecer os autos de forma incompleta ou faltando peças que já foram incluídas. Além da responsabilização, o direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente também foi positivado. Neste caso, tem-se a possibilidade de o advogado peticionar ao juiz requerendo o acesso completo aos autos. Ademais, a autoridade responsável pela investigação também estará sujeita, nos limites do art. 32 da Lei 13.869/2019 , à responsabilização criminal por abuso de autoridade.

Caso o procedimento investigativo esteja concluso para exame da autoridade que o preside, os autos igualmente devem ser disponibilizados ao defensor, sob pena de responsabilidade, desde que, com base na noção de razoabilidade, não atrapalhe os prazos legais que tem de ser respeitados pela autoridade responsável. Nesta hipótese, por haver justa causa, não cabe falar em má-fé do Delegado de Polícia nem em violação de prerrogativa do advogado (SANNINI NETO, 2021).

3. Inserção do inciso XXI ao art. 7º do Estatuto da OAB

A Lei n. 13.245/16 também incluiu o inciso XXI ao art. 7º do Estatuto da OAB (Lei n. 8.906/94) conferindo ao advogado o direito de assistir o investigado durante o interrogatório, depoimento e demais elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados podendo, inclusive, apresentar razões e quesitos, expondo-se às consequências da nulidade absoluta. Vale dizer que independe de demonstração de prejuízo, não se convalida pela preclusão e pode ser conhecida de ofício a qualquer instante.

São direitos do advogado (...) assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar razões e quesitos (Art. 7º, XXI, a, da Lei n. 8.906/94).

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Sobre a importância de uma defesa técnica eficaz no curso do procedimento investigatório, como consequência de materialização de direitos fundamentais, GAVIORNO (2021, p. 132) explica que:

A garantia de assistência jurídica, pública ou privada, só pode ser compreendida como uma garantia técnica efetiva, não podendo exigir-se do advogado ou defensor público que assista passivamente aos atos praticados no inquérito, sem que possa se manifestar. Se dessa maneira fosse, não se poderia falar em garantia, mas numa mera formalidade inócua. Daí se afirmar que o caráter garantístico da Constituição de 1988 reclama uma reflexão calcada numa acepção assecuratória dos direitos fundamentais.

Não vigora mais o entendimento ainda remanescente no sentido de que os vícios ocorridos na fase investigativa consistiam em meras irregularidades, não promovendo nulidades processuais. O embaraço da assessoria do advogado ao seu cliente no depoimento ou interrogatório acarreta nulidade absoluta do ato. A consagração legal dessa mudança de paradigma, que já encontrava eco na doutrina e na jurisprudência, se coaduna com a concretização do Estado Democrático de Direito uma vez que “a investigação policial tem força suficiente para embasar restrições à liberdade e ao patrimônio do cidadão” (CASTRO; COSTA, 2021).

Assim, LOPES JR. (2021), rechaçando qualquer hipótese de relativização da matéria, entende que o interrogatório policial realizado sem a presença do advogado (impedido de participar ou ausente por motivo diverso) é nulo e não permite a valoração probatória. Contudo, constata que, prevalecendo este entendimento, questões como a impossibilidade da defensoria pública em assistir toda demanda gerariam obstáculo à atuação policial. GAVIORNO (2021, p. 144), de forma mais abrangente, entende ser direito do indiciado a assistência por meio de defesa técnica que, na ausência de advogado constituído, deve se dar por meio de defensor público. “Se o indiciado possuir advogado constituído, tem o direito de exigir que seu interrogatório se dê na presença deste. Se não possui advogado constituído por insuficiência de recursos e requerer a justiça gratuita, tem direito ao defensor público”. De todo modo, mantendo o posicionamento acerca da impossibilidade de interrogatório policial na ausência de defensor, LOPES JR. (2021) sugere que o Delegado de Polícia registre que deixou de realizar o interrogatório diante da ausência de advogado.

Na mesma direção segue BARBOSA (2021) asseverando que a nulidade absoluta se refere ao conteúdo e não à forma. Desta maneira, a mera certificação formal de que o investigado foi informado do direito de permanecer calado, não é admitida como aplicação do nemo tenetur se detegere (princípio da autodefesa, ninguém é obrigado a produzir prova contra si). Portanto, a presença do advogado passou a ser indispensável à efetivação da não auto culpabilidade, sendo presumido o prejuízo oriundo de sua ausência, salvo quando se tratar de uma confissão qualificada onde o investigado consegue demonstrar elemento em seu benefício. Nesta linha, para ratificar uma prisão em flagrante diante da ausência de advogado ou defensor, “o delegado deverá garantir seu direito ao silêncio, não admitindo ou atribuindo ineficaz sua confissão. A manutenção da sua detenção, após a captura, terá como fundamento qualquer outra prova, menos a confissão” (BARBOSA, 2021).

De outro ponto de vista, CASTRO e COSTA (2021) entendem que a nulidade emana da prerrogativa do causídico e não da falta de defesa técnica a todo e qualquer investigado. Igualmente, SANNINI NETO (2021) assegura que no caso em debate a nulidade decorre do cerceamento de uma prerrogativa do defensor e não em decorrência da ausência de defesa. Assim, como primeiro garantidor de direitos fundamentais, cabe ao Delegado de Polícia informar ao depoente ou interrogado a respeito de seus direitos constitucionais, em especial o de ser acompanhado por um advogado. Neste contexto, o interrogatório ou até mesmo o indiciamento poderá ocorrer sem a assessoria do advogado.

Indo um pouco além e em consonância com o espírito da lei, recomendamos que os delegados de polícia constem de forma expressa em suas notificações para oitivas a possibilidade da pessoa ser assessorada por um advogado durante a formalização do ato. Aliás, em caso de indiciamento nos autos do inquérito policial, o ideal seria que a notificação do investigado deixasse claro o motivo pelo qual ele está sendo chamado na delegacia, viabilizando, destarte, o exercício da sua ampla defesa (SANNINI NETO, 2021).

Ainda é prematuro afirmar qual dos posicionamentos prevalecerá nos tribunais. Contudo, é necessário esclarecer que no caso em tela a intenção do novel diploma legal foi disciplinar direitos conferidos ao advogado no âmbito do art. 7º do Estatuto da OAB. De tal modo, a exigência em comento se refere a uma prerrogativa do defensor e não do investigado de forma que, no âmbito da Lei 13.245/16 que expressa a discutida causa de invalidade, o papel do Delegado de Polícia é permitir o exercício de tal direito, sob pena de nulidade absoluta do ato. No entanto, é preciso destacar que, a assistência do advogado já era garantida no art. 5º, LXIII, da CRFB, como um direito fundamental do “preso” desde 1988. Apesar disso, até o momento, os tribunais não tem se manifestado pela nulidade absoluta do ato investigativo realizado sem a presença do advogado ou defensor. O HC n. 139.412/SC, julgado em 09/02/2010 pela 6ª Turma do STJ, tem o condão de ilustrar o entendimento jurisprudencial, anterior à publicação da Lei n. 13.245/2016, no sentido da dispensabilidade do advogado ou defensor na fase investigativa.

A nova redação do art. 7º, XXI, do Estatuto da OAB, não trouxe a obrigatoriedade da presença do advogado ou do defensor na fase pré-processual. Trata-se de um respaldo legal em favor do advogado e não do investigado, uma faculdade no sentido de que, desejando, poderá acompanhar os citados atos investigativos. O exercício da ampla defesa, que deverá ser plenamente desempenhado na fase processual, surge de forma mitigada na fase pré-processual. “Afinal, o art. 6º, V do CPP admite o emprego das regras do interrogatório judicial à fase policial apenas no que for aplicável, em respeito justamente à natureza inquisitiva do inquérito policial” (CASTRO; COSTA, 2021).

Todavia urge destacar que, o exercício de conformação entre o sigilo da investigação e os direitos fundamentais positivados nos incisos LXIII (o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado) e LXIV (o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial), do art. 5o, da CRFB, permite afirmar que o acesso aos autos da investigação criminal é uma garantia do imputado (investigado indiciado ou não). Então, a novidade trazida pela lei que alterou o Estatuto da OAB diz respeito tão somente à garantia de um direito do advogado (BARBOSA, 2021). De tal forma, SANNINI NETO (2021) propõe que regra semelhante, com tutela mais abrangente que a prerrogativa do advogado, seja acrescida ao Código de Processo Penal como um direito do investigado, principalmente no interrogatório atualmente visto também como instrumento de defesa.

Portanto, verifica-se que, em consonância com o texto constitucional transcrito acima, a oitiva do suspeito no âmbito do inquérito policial possui natureza de interrogatório. Trata-se de ato formal de natureza mista: meio de prova e meio de defesa (fortalecido com o advento da Lei n. 13.245/16), devendo-se aplicar as regras do “interrogatório do acusado” previstas no CPP. Assim, como autodefesa, o investigado tem direito de participar do ato e conservar-se silente (sem lhe acarretar prejuízo), apontar provas ou confessar, “adotando-se o art. 187 do CPP, que prevê um procedimento para o interrogatório e que se divide em interrogatório de individualização (§1º) e em interrogatório de mérito (§2º), por força do art. 6º, V, do CPP” (BARBOSA, 2021).

Na inquirição do indiciado devem ser observadas as regras próprias para o interrogatório feito em Juízo, inclusive atentando-se para todas as garantias previstas na Constituição e nos tratados internacionais celebrados pelo Brasil, como, por exemplo, o direito ao silêncio e o de não autoincriminação; não há, porém, como já se disse, o contraditório, dado o já referido caráter inquisitorial do inquérito (MOREIRA, 2016, p. 97).

A nulidade absoluta decorrente da violação do art. 7º, XXI, do Estatuto da OAB, diz respeito não apenas ao interrogatório ou depoimento, mas também aos demais elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente. Assim, as provas decorrentes do ato nulo também serão nulas como, por exemplo, o depoimento de uma testemunha indicada pelo investigado ouvido sem que a Autoridade Policial permitisse a presença do respectivo advogado. Igualmente, são nulas as diligências realizadas a partir de elementos investigatórios colhidos com o citado vício. O legislador inovou adotando a teoria da prova ilícita por derivação (frutos da árvore envenenada) na fase investigativa.

Assim, quando uma prova for produzida por mecanismos ilícitos, tal como a escuta ilegalmente realizada, não se pode aceitar as provas que daí advenham. Exemplo: graças à escuta ilegal efetivada, a polícia consegue obter dados para a localização da coisa furtada. A partir disso, obtém um mandado judicial, invade o lugar e apreende o material. Note-se que a apreensão está eivada do veneno gerado pela prova primária, isto é, a escuta indevidamente operada. Se for aceita como lícita a segunda prova, somente porque houve a expedição de mandado de busca por juiz de direito, em última análise, estar-se-ia compactuando com o ilícito, pois se termina por validar a conduta ilegal da autoridade policial (NUCCI, 2015, p. 71).

Buscando equilibrar direitos individuais com interesses da sociedade, parte da doutrina trabalha com a teoria da proporcionalidade permitindo, em situações excepcionais, o acolhimento de provas produzidas ilicitamente. São hipóteses em que a finalidade almejada, como a libertação de uma vítima sequestrada, justificaria a aceitação da prova ilícita. Entretanto, o sistema processual penal brasileiro, ainda imaturo na concretização de direitos e garantias individuais, necessita do não-relativismo em torno das questões legais que envolvem a proibição da prova ilícita. Ressalvados os conflitos constitucionais que, por envolverem direitos fundamentais de igual relevância, requerem um mandado de otimização, essa vedação se faz cogente (NUCCI, 2015).

Notoriamente seguiu-se o sistema da prova ilícita por derivação (art. 157, § 1º, do CPP), admitindo-se o critério da prova separada (art. 157, §§ 1º e 2º, do CPP). Por conseguinte, a prova ilícita não pode gerar prova lícita, ao contrário, todas decorrentes da ilícita são igualmente inaceitáveis, ressalvada unicamente a prova de fonte independente (NUCCI, 2015).

Verifica-se então que, conforme regra já prevista no art. 573, §1o, do CPP, o legislador determinou o emprego da teoria da nulidade derivada (ou princípio da contaminação) na esfera do inquérito policial. Porém, em consonância com o art. 157, §§ 1º e 2º, do CPP, não serão consideradas ilícitas por derivação aquelas provas que não guardam nexo de causalidade com as outras ou que poderiam ser obtidas de forma independente. A teoria dos frutos da árvore envenenada não é absoluta, podendo ter sua aplicação limitada por outras teorias, a exemplo a da “fonte independente”, a da “descoberta inevitável” e a limitação da “contaminação expurgada”. Sobre as limitações da prova ilícita por derivação, LIMA (2020) destaca algumas teorias aplicadas ao ordenamento jurídico brasileiro. Assim, o citado autor expõe que:

De acordo com a teoria ou exceção da fonte independente, se o órgão da persecução penal demonstrar que obteve, legitimamente, novos elementos de informação a partir de uma fonte autônoma de prova, que não guarde qualquer relação de dependência, nem decorra da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo vínculo causal, tais dados probatórios são admissíveis, porque não contaminados pela mácula da ilicitude originária (...).

De acordo com a teoria da descoberta inevitável, também conhecida como exceção da fonte hipotética independente, caso se demonstre que a prova derivada da ilícita seria produzida de qualquer modo, independentemente da prova ilícita originária, tal prova deve ser considerada válida (LIMA, 2020, p. 692/693).

Do art. 157, §2°, do CPP, também é possível extrair a teoria da mancha purgada ou da limitação dos vícios sanados, ou do nexo causal atenuado ou da tinta diluída, segundo a qual a teoria da prova ilícita por derivação não é aplicada se o nexo causal entre a prova primária e a secundária for atenuado em razão “do decurso do tempo, de circunstâncias supervenientes na cadeia probatória, da menor relevância da ilegalidade ou da vontade de um dos envolvidos em colaborar com a persecução criminal” (LIMA, 2020, p. 695).

Em relação à alínea “a”, do novo inciso XXI, do art. 7º, do Estatuto da OAB, deve-se destacar a oportunidade que é dada ao advogado em apresentar razões e quesitos que podem ser formulados durante o interrogatório, depoimento ou declaração, bem como no decorrer das investigações. Além de assistir o cliente, tal prerrogativa garante ao advogado justificar fatos e elaborar perguntas que colaborem com as investigações, desde que admitidas pela Autoridade Policial. O ato deve ser dirigido pelo Delegado de Polícia a quem incumbe formular as perguntas que entender pertinente e relevante (CASTRO; COSTA, 2021).

Ao contrário da fase processual, onde as perguntas são inquiridas diretamente pelas partes, na fase do inquérito policial as perguntas devem ser realizadas por meio da Autoridade Policial. O Delegado de Polícia pode indeferir, de forma fundamentada, as perguntas (quesitos) formuladas pelo advogado, devendo registrar no termo de interrogatório ou de depoimento. Cita-se como exemplos as hipóteses em que a pergunta puder induzir a resposta, não tiver relação com a causa ou se referir a outra já respondida. Insta lembrar que o art. 14 do CPP permite que o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado requeiram diligências (por escrito, nos termos do art. 9o do mesmo diploma legal), que será realizada, ou não, a juízo da autoridade que decidirá fundamentadamente. Nessa linha, SLAIBI FILHO, citado por TUCCI (2021), expõe que:

Ainda no inquérito policial ou no auto de prisão em flagrante delito, tem o advogado poder de reperguntar, requerer diligências e providências que achar convenientes ao ato, sem prejuízo, é claro, da autoridade processante deferir, ou indeferir, sempre com fundamentação, o que lhe foi requerido.

Cumpre anotar que, a Lei n. 13.245/2016 também tentou inserir a alínea “b” ao art. 7o, XXI, do Estatuto da Advocacia, permitindo ao advogado requisitar diligências no curso das investigações. Tal dispositivo foi acertadamente vetado tendo como razão a possibilidade de uma interpretação equivocada no sentido de que tal requisição teria caráter mandatório. Ademais, tem-se que semelhante interpretação já fora afastada pelo STF no bojo da ADI 1127/DF. Portanto, como visto, permanece a possibilidade de indeferimento fundamentado das perguntas ou diligências por parte da autoridade investigativa.

Neste ponto, tem-se as lições de CASTRO e COSTA (2021):

Do mesmo modo, o MP não pode requisitar diligências enquanto a investigação ainda está transcorrendo, sob a presidência exclusiva do Delegado de Polícia. Afinal, deve requisitar, após a remessa do IP relatado pela Autoridade Policial, apenas as diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia (art. 16 do CPP).

A apresentação de quesitos prevista na lei diz respeito, essencialmente, aos quesitos periciais. Nessa esteira é preciso observar que o contraditório continua de caráter diferido quando se tratar de prova não repetível, ou seja, o exame não pode ser realizado em outro momento (o art. 159, §5º, II, do CPP, se refere à indicação de assistente técnico no processo judicial). Entretanto, por se tratar de um contraditório diferido, as provas irrepetíveis revelam uma verdade mitigada, motivo pelo qual, desde que seja possível, o contraditório prévio se mostra como garantidor de uma verdade eticamente construída (BARBOSA, 2021). Igualmente, segue o entendimento de Antônio Scarence Fernandes:

(...) maior dificuldade poderá surgir quanta às perícias realizadas na fase policial, sem prévia manifestação da defesa e que, muitas vezes, representam a comprovação da própria materialidade do crime. Excluídos os casos em que há urgência, seja porque há risco de desaparecerem os sinais do crime, seja porque e impossível ou difícil conservar a coisa a ser examinada, ou ainda as hipóteses em que inexiste suspeita contra pessoa determinada, a autoridade policial deveria dar oportunidade ao indiciado de apresentar quesitos para maior garantia de defesa (FERNANDES, 2002, p. 69).

Outro não é o magistério de Leonardo Greco, segundo o qual:

(...) há provas que somente podem ser produzidas na investigação preliminar, como certas perícias (exame de local, exame de corpo de delito de lesão corporal). O essencial para a plenitude de defesa do réu é que, mesmo na fase policial, este tenha sido previamente informado da realização dessas provas, e que nessa produção tenha sido assegurada a sua participação eficaz, pessoalmente, através do seu defensor e de eventual assistente técnico (....) contraditório eficaz é sempre prévio, anterior a qualquer decisão, devendo a sua postergação ser excepcional e fundamentada na convicção firme da existência do direito do requerente e na cuidadosa ponderação dos interesses em jogo e dos riscos da antecipação ou da postergação da decisão (GRECO, 2016).

Deste modo, o advogado poderá apresentar ao Delegado de Polícia razões fundamentando eventual desindiciamento (CASTRO; COSTA, 2021). Destarte, após análise técnico-jurídica do fato como garantido pelo art. 2o, §6º, da Lei 12.830/13, a Autoridade Policial concluirá pelo indiciamento (ou não) apontando a autoria, materialidade e circunstâncias do fato. Observa-se o dever de fundamentação como mecanismo de controle da atividade decisional do delegado de polícia. Nas palavras de BRENE (2019, p. 141):

Em nosso sentir, todos os atos jurídicos que impõem restrição à liberdade individual por parte da autoridade policial devem ser devidamente justificados/fundamentados, pois, no contexto da Crítica Hermenêutica do Direito, que busca na principiologia constitucional o marco fundante da interpretação, é justamente esse dever que permite o controle da decisão do delegado de polícia.

MOREIRA (2016, p. 96) infere que, assim como os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público têm o dever de fundamentarem suas decisões, as decisões e pronunciamentos proferidos pelo Delegado de Polícia devem ser devidamente fundamentadas, “sob pena do da peça informativa retornar à Delegacia de Polícia para que se cumpra a lei”.

Quanto à possibilidade da defesa apresentar razões e quesitos, LOPES JR. (2021) expõe que:

Não se trata propriamente de uma grande inovação, na medida em que o art. 14 do CPP já dava espaço para isso, mas sem dúvida vai reforçar a participação da defesa e sua efetividade. Se bem empregada a faculdade, é possível fazer uma defesa escrita no final da investigação e postular, nos casos em que seja viável, o futuro pedido de arquivamento pelo Ministério Público ao Juiz, já que nem a polícia, nem o MP, podem arquivar os autos da investigação instaurada. Então é uma faculdade importante e que deve ser bem manuseada conforme a estratégia defensiva.

4. Observações acerca do caráter inquisitivo do inquérito policial

Em linhas gerais, no sistema inquisitório o sujeito que decide também determina a produção de provas de ofício (acúmulo de funções). No sistema acusatório, por sua vez, a gestão das provas não é do julgador que permanece como espectador. Logo, de acordo com essa conceituação, o inquérito policial continua inquisitório, cabendo ao Delegado de Polícia o comando do procedimento, praticando atos de investigação e decisórios, ressalvada a reserva de jurisdição. De tal modo, acusatório em sua totalidade, o sistema processual brasileiro comporta uma fase administrativa de traço inquisitorial que, no estrito cumprimento da legalidade, não guarda simetria (pelo menos não deveria guardar) com o sistema inquisitivo típico da justiça eclesial da Idade Média (GAVIORNO, 2021).

O Código de Processo Penal Brasileiro de 1941 traz forte raiz inquisitorial, devendo ser iluminado pelos direitos fundamentais consagrados no texto constitucional de 1988. Como visto, dentre outros direitos fundamentais, o contraditório e a ampla defesa, como desdobramentos do devido processo legal, são constitucionalmente garantidos tanto no processo judicial quanto no administrativo (art. 5º, LV, CRFB). Considerando que o próprio legislador brasileiro admite a utilização da expressão processo para indicar procedimento, nele se enquadra, claramente, a ideia de qualquer procedimento administrativo e, por conseguinte, o inquérito policial (TUCCI, 2021). Portanto, como procedimento administrativo capaz de restringir bens essenciais da pessoa humana como o patrimônio e a liberdade, o inquérito policial deve ser reinterpretado sob a atual ótica constitucional (vale lembrar: pós 1941). Deste modo, apesar do pouco avanço legislativo, tem-se a garantia da participação da defesa como um progresso nessa busca de um inquérito policial condizente com o Estado Democrático de Direito.

FERNANDES (2002) defende que, por não ter que seguir uma sequência predeterminada de atos, o inquérito policial não se enquadra no conceito de procedimento administrativo. Não obstante, este entendimento parece incongruente à realidade diária do Delegado de Polícia que deve cumprir extensa série de atos investigatórios, a serem fundamentados, documentados e colacionados no inquérito policial, objetivando a elucidação da autoria e materialidade criminosa. Assim, assiste razão a TUCCI (2021) quando afirma que o inquérito policial é um "procedimento administrativo-persecutório de instrução provisória, destinado a preparar a ação penal”.

(...) referendada a extensão dos direitos indicados no dispositivo constitucional aos "indiciados em processos administrativos", e sendo inequívoco, outrossim, como visto, que o inquérito policial é uma das modalidades de procedimento administrativo, não há como negar sua abrangência pelo novel regramento da Carta Magna da República (TUCCI, 2021).

No processo inquisitório apenas um sujeito, encarregado de buscar a verdade e decidir, se destaca de forma atuante. No processo acusatório a descoberta da verdade é incumbência de todos os sujeitos do processo (juiz, acusador e acusado). Portanto, as matrizes inquisitória e acusatória se diferenciam principalmente em relação aos sujeitos envolvidos no processo (GAVIORNO, 2021). A garantia da presença do advogado fortalece a defesa e o contraditório, mas não tem o condão de enquadrar o inquérito policial no sistema acusatório.

Apesar de não se fechar precisamente em um conceito doutrinário a partir de características limitativas, pode-se falar que a iniciativa de produção de provas inerente à função investigatória marca o inquérito policial como inquisitório, o que não deve ser confundido com arbitrariedade. O delegado preside um procedimento, em essência, discricionário, mas possui o dever de fundamentar juridicamente seu entendimento. As conclusões e decisões tomadas pelo delegado legitimam-se democraticamente com escore no debate, na argumentação e na fundamentação orientada por valores tutelados como direitos fundamentais. Nesta linha, a participação da defesa, apesar de não retirar a condução probatória da Autoridade Policial, corrobora o caráter democrático e constitucional da investigação.

Como visto, tradicionalmente, o processo inquisitivo é marcado por ser secreto, não-contraditório e escrito, desconhecendo as regras da igualdade processual e considerando o investigado como mero objeto do processo. Entretanto, mesmo em um sistema inquisitivo, é possível que tais aspectos deixem de se apresentar. Mesmo que o contraditório e a defesa em uma investigação criminal não possam ser considerados plenos por faltar características típicas do sistema acusatório, os direitos fundamentais do indiciado devem ser tutelados no inquérito (CINTRA, 1998).

Apesar de inexistir vinculação entre a imputação penal realizada no inquérito policial e o curso do processo penal, regra geral, a investigação policial moldará a acusação. Deste modo, dentro das peculiaridades inerentes ao inquérito policial brasileiro, ainda que não seja possível o exercício do pleno direito à ampla defesa, o direito de defesa do investigado deve ser respeitado.

Importante observar que, embora justifique a natureza essencialmente inquisitiva do inquérito policial com base na não participação do suspeito na produção e indicação de provas, NUCCI (2015) confirma a tendência cada vez maior de contornar a investigação preliminar de garantias constitucionais no sentido de fortalecer o caráter democrático da investigação, bem como sua inegável força jurídica na elucidação de fatos criminosos, proporcionando ao Estado-acusação o desenvolvimento de seu mister.

Portanto, a alteração legislativa ora abordada não conferiu caráter acusatório ao inquérito policial. Mesmo com a inclusão do novo inciso XXI, ao art. 7º do Estatuto da OAB, o inquérito policial segue inquisitorial. Isso não implica dizer que seja arbitrário ou que não cabem direitos ao investigado. A ausência de poder requisitório do advogado na fase investigatória intensifica a continuidade da característica inquisitorial do inquérito policial. Também não se pode ignorar que a eficácia da Polícia Judiciária em grande parte está ligada ao fator surpresa. Assim, se o encontro de fontes de prova estivesse condicionado a anterior participação da defesa, o sucesso da investigação restaria substancialmente comprometido. Entretanto, ainda que de forma atenuada, os princípios do contraditório e da ampla defesa devem ser aplicados ao inquérito policial. O bom senso recomenda que se encontre um meio termo de forma a otimizar, o máximo possível, as garantias constitucionais. A presença do advogado na fase inquisitorial configura uma garantia de credibilidade do procedimento policial (CASTRO; COSTA, 2021).

Para BARROSO (2016), no constitucionalismo contemporâneo, o conflito de normas constitucionais é inevitável, uma vez que os textos modernos são dialéticos e tutelam bens jurídicos contrapostos, os quais devem ser solucionados por meio da ponderação em uma atividade criativa do intérprete.

5. Considerações finais

Não se pode negar que a Lei n. 13.245/16 proporcionou o amadurecimento do obsoleto entendimento no sentido de que as garantias fundamentais relacionadas ao devido processo legal, como o contraditório e a ampla defesa, não incidem na fase investigativa. Outrossim, Como consequência da incidência das garantias constitucionais e de convencionalidade dos tratados e convenções de Direitos Humanos, a Súmula Vinculante 14 do STF, visando garantir o exercício do direito de defesa, o qual deve ser efetivado pelo Delegado de Polícia, já havia estabelecido o direito do defensor ter amplo acesso aos elementos probatórios documentados (BARBOSA, 2021).

Não fosse a cultura autoritária e à dogmática literal que se apregoou, mesmo após a Constituição de 88, inclusive pelo STF, de que o inquérito policial não há contraditório e ampla defesa, o artigo 14 do CPP já autorizaria que o advogado apresentasse “razões e quesitos”, conforme veio previsto na alínea “a” deste mesmo inciso (BARBOSA, 2021).

O inquérito policial, principal instrumento de apuração de crimes, saiu fortalecido após o advento da nova lei. Uma persecução penal democrática, fundada nas normas constitucionais, requer a participação da defesa também na fase investigativa. Deve-se superar a ideia reducionista de uma investigação criminal descompromissada com direitos fundamentais (SANNINI NETO, 2021). As transformações legislativas ora estudadas mostram um desenvolvimento na investigação criminal que, sem perder o caráter inquisitivo e sigiloso, se aproxima da aplicação de direitos ligados à dignidade da pessoa humana, desde que não atropele a legítima eficácia da investigação.

A Lei n. 13.245/16, apesar de não trazer grandes novidades em relação a direitos já consagrados constitucionalmente, tem o mérito de realçar o respeito ao outro na relação jurídica (o investigado), garantindo a participação da defesa dentro de um procedimento capaz de afastar direitos fundamentais do indivíduo como a intimidade, patrimônio e liberdade. Dessa forma, seguem as lições de CHOUKR, citado por SANNINI NETO (2021).

(...) a dignidade da pessoa humana como fundamento maior do sistema implica a formação de um processo banhado pela alteridade, ou seja, pelo respeito à presença do outro na relação jurídica, advindo daí a conclusão de afastar-se deste contexto o chamado modelo inquisitivo de processo, abrindo-se espaço para a edificação do denominado sistema acusatório. Fundamentalmente aí reside o núcleo de expressão que afirma que o réu (ou investigado) é sujeito de direitos na relação processual (ou fora dela, desde já na investigação), e não objeto de manipulação do Estado.

Deste modo, considerando-se a possibilidade de ato estatal apto a interferir em direito fundamental do indivíduo, a defesa pode ser exercida na fase administrativa da persecução penal, justificando a participação do indiciado, ressalvada a hipótese de conflito entre direito que se revele no caso concreto de igual ou maior importância, hipótese em que a restrição da participação da defesa deve ser devidamente fundamentada de modo a evitar arbitrariedades por parte da Autoridade Policial. Trata-se da necessidade de democratização do inquérito policial.

Os elementos colhidos no inquérito policial quando aptos a deflagrar a ação penal ou mesmo para rejeição da relação processual servem tanto à acusação quanto à defesa e servem também ao juiz. Esses elementos além de ter a função de formar a opinio delict autorizando o Ministério Público a promover a ação, poderão servir ao acusado que, no bojo das informações colhidas e materializadas no inquérito poderá encontrar elementos que sustentem um afastamento da acusação. Por outro lado, o próprio juiz, que naquele momento inicial do processo, não terá outros elementos além daqueles levados pelo inquérito para avaliar sua decisão de rejeição ou admissão da peça acusatória (GAVIORNO, 2021, 153).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BARRETO, Vicente de Paulo. O Fetiche dos Direitos Humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará. Fortaleza, v. 4, n. 2, p. 13-100, julho/dezembro de 2006.

BRENE, Cleyson. Ativismo Policial: o papel garantista do delegado de polícia. Salvador: Juspodivm, 2019.

CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro. COSTA, Adriano Sousa. Advogado é importante no inquérito policial, mas não obrigatório. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jan-14/advogado-importante-inquerito-policial-nao-obrigatorio>. Acesso em: 1 de março de 2021.

FERNANDES, Antônio Scarence. Processo Penal Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

GAVIORNO, Gracimere Vieira Soeiro de Castro. Garantias constitucionais do indiciado no inquérito policial: controvérsias históricas e contemporâneas. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Direitos e Garantias Constitucionais) – Faculdades Integradas de Vitória, Vitória, 2006. Disponível em: < http://dominiopublico.mec.gov.br/download/teste/arqs/cp075236.pdf>. Acesso em: 11 de fevereiro de 2021

GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: o processo justo. Disponível em: <http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15708-15709-1-PB.pdf>. Acesso em: 1º de abril de 2016.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 1ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998.

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_________, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Especial Comentada. 4ª ed. rev. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2016.

LOPES JR., Aury. Lei 13.245/2016 não acabou com o caráter "inquisitório" da investigação. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jan-29/limite-penal-lei-132452016-nao-acabou-carater-carater-inquisitorio-investigacao>. Acesso em: 1 de março de 2021.

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NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014.

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TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Novo Curso de Direito Processual Penal. 15ª ed. rev. amp. e atual. Salvador: Editora Juspodivm, 2020.

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TUCCI, Rogério Lauria. Devido Processo Penal e alguns dos seus mais importantes corolários. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67232/ 69842>. Acesso em: 1 de março de 2021.

Sobre o autor
Eujecio Coutrim Lima Filho

Delegado de Polícia Civil no Estado de Minas Gerais. Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA, RJ). Mestre em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (UNESA, RJ). Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Estado da Bahia (UFBA, BA). Graduado em Direito pelo IESUS (BA). Professor de Direito Processual Penal na UNIFG (BA) e na FAVENORTE (MG). Professor nos cursos de pós-graduação da UNIFG/UNIGRAD (BA) e da ACADEPOL (MG). Ex-Advogado. Ex-Juiz Leigo do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Autor de obras jurídicas. Colunista do Canal Ciências Criminais.

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