O presente estudo visa analisar o instituto da Disregard Doctrine no Direito Administrativo.
É questão que deve ser visualizada pela Administração Pública, sob pena da reprimenda imposta se tornar ato obnóxio, senão vejamos.
Quando uma empresa contrata com a Administração Pública, seja para obras, prestação de serviço, compras, alienações e locações, tanto no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ficam subordinadas ao regime legal e necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas em Lei.
Para tanto, são celebrados contratos, contendo e discriminando os ajustes entre os órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares. Estabelece-se um acordo de vontades e as obrigações recíprocas são estipuladas.
No caso do descumprimento das clausulas e havendo atos lesivos previstos em Lei, haverá penalidades. As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, tanto na seara administrativa, bem como na cível.
A indagação consiste em definir se a responsabilização da pessoa jurídica excluíra a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito.
Para tanto, há que se avaliar a culpabilidade dos dirigentes ou administradores pelos atos ilícitos havidos.
Restando devidamente demonstrada a responsabilidade dos representantes legais do ente coletivo, eles igualmente devem ser alcançados pela reprimenda, aplicando-se o fenômeno da desconsideração da personalidade jurídica na esfera administrativa, sob risco da sanção se tornar inócua e não se coibir a fraude e o abuso na utilização do ente coletivo.
Mesmo porque, em muito dos casos analisados se apreende que o representante da empresa investigada, funciona como representante de várias outras empresas com modalidades de serviços semelhantes.
É uma evidente demonstração que a existência das demais pessoas jurídicas, todas em nome da mesma pessoa, tem o escopo de demonstrar a independência das suas personalidades jurídicas e respectivas autonomias patrimoniais.
Isto evidencia um verdadeiro incentivo para que o seu representante legal abstenha-se de suportar os riscos de quaisquer empreendimentos atrapalhados que porventura continue a realizar, jamais comprometendo o seu patrimônio individual.
Por isso que em determinadas circunstâncias, especialmente quando há a pratica ululante de ilícito administrativo, esta autonomia patrimonial da pessoa jurídica e da pessoa física deve ser vista com algumas reservas, de modo a relativizá-la.
Tanto que a Disregard Doctrine se tornou uma solução positiva, apta a coibir os desvios de função da pessoa jurídica, quando elas subestimam os efeitos da personificação jurídica, delas se utilizando com simulações e fraudes para alcançarem suas finalidades.
Ainda que se alegue a inexistência de regra expressa em lei, tal fato não impede a aplicação da teoria da desconsideração no âmbito do Direito Administrativo.
A constatação do desvio de função e o abuso da regra encontram fundamento nos princípios gerais do Direito e nos que regem a Administração Pública para relativizar a personalidade distinta do ente jurídico e do físico, pois que visa a impedir o inadimplemento de obrigações civis e trabalhistas.
Verifica-se que há compatibilidade entre Disregard Doctrine com os princípios que regem o Direito Administrativo, bastando que seja respeitado o devido processo legal administrativo para a aplicação da desconsideração e as situações indispensáveis para evitar o abuso da personalidade jurídica, coibindo que o patrimônio público suporte prejuízos, muita das vezes atingindo toda a coletividade.
Em nosso ordenamento a desconsideração está positivada pela Lei n.º 8.078/90, em seu art. 28; pela Lei n.º 8.884/94, em seu art. 18; pela Lei n.º 9.605/98, em seu art. 14 e no Código Civil, no art. 50. Na Lei n.º 8.666/93, em seu art. 90, há uma sinalização para o caso de se analisar se os licitantes não integram um mesmo grupo, como forma de se evitar fraude à licitação. E na Lei n.º 8.443/92, no art. 46, consagra a chamada desconsideração imprópria.
Em 2013, através da Lei n.º 12.846, houve a previsão da responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. O seu art. 3.º versa sobre a dupla responsabilização e no III, do art. 5.º, resta demonstrado que constituiu infração a utilização da pessoa jurídica para a prática de atos ilícitos, com a possibilidade da desconsideração do ente coletivo trazida pelo art. 14 do mesmo codex. O Decreto n.º 8.420, de 18 de março de 2015, regulamenta o mencionado dispositivo.
Contudo, mesmo que se possa questionar sobre a inexistência de regra expressa em lei, não podemos olvidar que a aplicação da desconsideração é salutar e imperiosa, visto que devemos atender aos fins sociais e às exigências do bem comum, pois caso contrário, o objetivo de todo o modelo positivado pelo Estado estará desvirtuado em seus fins.
A Administração Pública é regida por uma base de princípios que se dispõem a embasar a aplicação da Disregard Doctrine.
Começando pelo princípio da legalidade que deve ser analisado em toda a sua imensidão não apenas no limite da lei formal. Há que enxergá-lo como um Estado de Direito, com alcance superior ao positivado, ao legal, chegando ao justo.
A Administração há que agir com ética para validar os seus atos, pois nem tudo que é legal é honesto, nom omne quod licet honestum est.
A moralidade administrativa, a supremacia do interesse público e a indisponibilidade dos interesses tutelados pelo Poder Público, igualmente precisam ser preservados pela Administração. Quando eles estiverem em colisão, exige-se do hermeneuta e do aplicador do direito a solução que melhor resultado traga à harmonia do sistema normativo.
Isto porque não é crível que em nome da obediência do princípio da legalidade estrita, haja interpretação capaz de vir a beneficiar aqueles que se utilizaram da técnica da personalização, criada pelo Direito para que fossem alcançados fins lícitos.
A ausência de norma específica não pode impor à Administração um atuar em desconformidade com o Princípio da Moralidade Administrativa, muito menos exigir-lhe o sacrifício dos interesses públicos que estão sob sua guarda.
Em obediência ao Princípio da Legalidade, não pode o aplicador do direito negar eficácia aos muitos princípios que devem modelar a atuação do Poder Público.
Assim, permitir-se que uma empresa constituída com desvio de finalidade, com abuso de forma e nítida fraude à lei, venha a participar, por meio do seu representante de processos licitatórios, abrindo-se a possibilidade de que a mesma volte a tomar parte de outro contrato firmado com o Poder Público, afronta os mais comezinhos princípios do direito administrativo, em especial, ao da Moralidade Administrativa e ao da Indisponibilidade dos Interesses Tutelados pelo Poder Público.
E é neste contexto, que a melhor doutrina e a jurisprudência entendem que deva ser superada a personalidade jurídica como forma de atingir o patrimônio particular do sócio constituinte da pessoa jurídica.
Apresento uma decisão do STJ, aplicando a desconsideração em âmbito administrativo, proferida em mandado de segurança impetrado pela empresa G. E. G. MÓVEIS E EQUIPAMENTOS LTDA. contra ato do Secretário de Estado da Bahia que lhe estendeu os efeitos da declaração de inidoneidade para licitar emitida contra a empresa COMBAIL Ltda. por entender que compunham grupo de fato, a saber:
“ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANCA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA, POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.
- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar a aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações, Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.
- A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.”.
Assim, fica evidente que a personalidade conferida às pessoas jurídicas tem o condão de estimular a economia, incentivando os empreendedores a investirem nas atividades exploradas e jamais as utilizarem como blindagem às suas falcatruas.
Objetiva-se com a personificação do ente coletivo que a pessoa jurídica seja conduzida de modo a concretizar a sua função social, seguindo os preceitos legais, contratuais, estatutários e éticos, respeitando sempre a boa-fé objetiva nos negócios jurídicos celebrados.
A sua utilização subversiva pelo seu sócio, o que é vedado legalmente, tem como agravante o fato de na maioria das vezes vir acompanhada de esvaziamento patrimonial ou mesmo desvio das vantagens econômica dos negócios jurídicos celebrados em nome da sociedade personificada para o seu constituinte.
Deste modo, entendo que o instituto da Disregard Doctrine deve ser aplicado no Direito Administrativo, pois além de ser válido, há que se demonstrar a eficácia da reprimenda imposta.