A lei 13.245/16 e a democratização das investigações criminais

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O inquérito policial é a mais importante peça investigativa utilizada no Brasil. Com o advento da CF/88 foi traçado um novo perfil a este procedimento, o qual deve ser adequado por meio da legislação infraconstitucional.

A lei 13.245/16 e a democratização das investigações criminais

Por Raphael Zanon da Silva[1] e Rodolfo Luiz Decarli[2]

Regra geral, embora tenhamos pleno conhecimento de que a investigação criminal seja realizada quase que totalmente pela Polícia Judiciária, há exceções. Somente o inquérito policial é de exclusividade da Polícia Judiciária, haja vista ser ele o principal instrumento de apuração criminal existente no Brasil desde 1871, vez que com a publicação da Lei nº 2.033, de 20/09/1871, regulamentada pelo Decreto nº 14.824, de 28/11/1871 (art. 4º, § 9º), surgiu este procedimento investigativo assim definido pela letra da lei imperial:

O inquerito policial consiste em todas as diligencias necessarias para o descobrimento dos factos criminosos, de suas circumstancias e dos seus autores e complices; e deve ser reduzido a instrumento escripto (...).

            Especificamente, quanto ao inquérito policial, esta importante peça investigativa presidida pelo Delegado de Polícia{C}[3]{C} é um procedimento de natureza sigilosa, e assim é definido pela doutrina majoritária. No entanto, a doutrina contemporânea ao analisar o inquérito policial à luz da Constituição Federal de 1988, vem se posicionando no sentido de que durante a investigação há um “contraditório mitigado”, já que nos termos da carta magna o contraditório real somente é obrigatório durante o processo (judicial ou administrativo)[4].

Assim, quanto ao contraditório mitigado na primeira fase de persecução penal, parte da doutrina entende que o inciso LV do Art. 5º da CF/88 garante seu uso no inquérito policial porque traz à baila preceitos democráticos, os quais a carta magna fez questão de prever.

Seguindo essa linha de pensamento, Ada Pelegrini Grinover, Antônio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco{C}[5]{C} afiançam que após o indiciamento, mesmo não sendo formal este ato, e inexistindo, ainda, a acusação propriamente dita, já há uma situação de litígio ante a confrontação do investigado com o estado acusador. Então, conforme o Art. 5º, LV da CF/88, deve-se permitir o contraditório pelas consequências causadas por este ato, causando, por óbvio, a exposição do nome do cidadão em inquérito que apura um delito e deixando sua reputação fragilizada.

Neste mesmo diapasão, Aury Lopes Junior conclui que o princípio do contraditório deve ser obedecido no inquérito, pois os juízes não obedecem ao princípio do devido processo legal que só admite a utilização de provas obtidas em juízo como fundamento de sentença condenatória. Para este autor:

“A prova que é colhida na fase do inquérito e trazida integralmente para dentro do processo acaba mascarando a decisão final do julgador, tendo em vista que a eleição de culpa ou inocência é o ponto nevrálgico do ato decisório e pode ser feita com base nos elementos do inquérito policial e disfarçada com um bom discurso[6].”

            Necessário lembrarmos que, antes do advento da lei objeto de estudo o próprio Código de Processo Penal, em seu artigo 14, já prevê a possibilidade do investigado requerer ao presidente do inquérito policial a realização de diligências que considere útil à busca da verdade real. Este pleito pode ser deferido ou indeferido, a juízo da autoridade que decidirá de modo fundamentado em respeito ao disposto no artigo 50, I, da Lei 9.784/99, o que demonstra o caráter discricionário imprimido a “informatio delicti”.

Sem dúvida a apuração sobre a existência, ou não, de um crime e, na eventualidade, de ter sido ele perpetrado, descobrir quem foi seu autor interessa a toda sociedade. Assim, além de seus fins persecutórios, o inquérito policial também possui finalidade social.

Neste sentido, por não ser parte, o Delegado de Polícia não se envolve e nem se apaixona pela investigação, o que o desvincula da acusação e da defesa e o faz agir como um primeiro juiz compromissado com a verdade dos fatos, fazendo com que o inquérito policial seja um verdadeiro instrumento de justiça criminal.

Mas, o que muda com a nova lei que, em tese, confere o direito de acesso ao advogado que representa investigado no âmbito da Polícia Judiciária?

Estabelece a nova redação do art. 7°, XIV da Lei 8.906/94 (EOAB) que é direito do advogado:

 Examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital.

Neste caso, entendemos que nada muda quanto à atuação do advogado no âmbito da investigação presidida por uma autoridade policial e por meio do inquérito policial, haja vista que tão somente houve a inserção legal do que já havia sido decido pelo STF quando da edição da súmula vinculante n° 14, que sedimentou o direito do defensor em ter acesso amplo aos elementos de prova documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária.

Ocorre que, como já mencionado acima, a investigação criminal não é de caráter exclusivo da Polícia Judiciária, podendo outras instituições apurar fatos criminosos por meio de procedimento especifico, tal como ocorre no Poder Legislativo, por meio das CPI’s e, de forma mais recente, no Ministério Público por meio de um PIC (procedimento investigatório criminal), procedimento este que muito se assemelha ao próprio inquérito policial, porém, sem ser submetido ao controle jurisdicional de prazo e de legalidade.

Neste caso específico, ou seja, na investigação realizada pelo Ministério Público, podemos apontar que houve uma profunda mudança com a novel legislação. Isto, pois, sob o argumento de regulamentar o art. 8º da LC 75/93, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) editou no ano de 2006 a Resolução nº. 13, cujo objetivo foi de disciplinar, no âmbito do Ministério Público, a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal (PIC), cuja função é de “apurar a ocorrência de infrações penais de natureza pública, servindo como preparação e embasamento para o juízo de propositura, ou não, da respectiva ação penal”.

O artigo 13, “caput”, da citada Resolução prevê que os atos e peças do procedimento são públicos. Todavia, o inciso II do parágrafo único do mesmo artigo explica que os pedidos de vista ou extração de cópias deverão ser efetuados de forma fundamentada, ainda que efetuado por advogado, com a ressalva do sigilo imposto. Deste modo, o investigado somente teria acesso à obtenção, por cópia autenticada, de depoimento que tenha prestado e dos atos de que tenha, pessoalmente, participado{C}[7]{C}.

Logo, o direito de acesso do defensor neste procedimento de caráter seletivo não se submetia a vinculação da sumula 14 do STF e, somente com o julgamento do RE 593727/MG[8], houve menção sobre o acesso do advogado aos autos do PIC.

Por consequência, temos que passou a ser disciplinado por lei o acesso aos autos de procedimento investigatório criminal (PIC), não podendo mais o membro do Ministério Público deixar de dar acesso ao advogado constituído pelo investigado a todos os atos documentados do procedimento, tendo o dever de observância às prerrogativas previstas no art. 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX, da Lei 8.906/94 (EAOAB).

Outro grande avanço para a democratização das investigações foi a inserção do inciso XXI ao art. 7° do Lei 8.906/94 (EOAB), tratando como direito do advogado:

assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar razões e quesitos;

           

Parece-nos que tal previsão legal está fazendo com que a doutrina responsável pela “minimalização” do inquérito policial esteja em profunda tristeza. Tal dispositivo traz uma nova garantia ao cidadão durante uma investigação, dando a ele o direito de ser assistido por um advogado constituído e, até mesmo, por um defensor público, se assim desejar.

            Vejamos que a presença do advogado durante o inquérito policial não é obrigatória mas, caso o investigado tenha um defensor previamente constituído, aquele não poderá ser ouvido sem a presença deste. Talvez seja esta a mais profunda alteração da lei no tocante ao “desenrolar das investigações”, já que a ausência do advogado previamente constituído em tais atos gerará a ilicitude das provas que derivadas, assim como estabelecido no art. 157, § 1° do CPP{C}[9]{C}.

            Neste ponto específico, novamente, frisamos que a necessidade da presença do advogado nos atos relacionados a oitiva do investigado somente será obrigatória nos casos em que houver defensor previamente constituído, o qual deverá ser intimado, por qualquer meio, para assistir seu cliente nos atos em que houver sua participação, tão somente.

Aqui ainda podemos ampliar a discussão para os procedimentos investigatórios, principalmente o inquérito policial, onde o investigado não dispõe de recursos para a contratação de um profissional habilitado. Neste caso, o investigado seria socorrido por quem?

            Não nos deixa dúvidas que a Defensoria Pública deverá assumir tal função, a qual, inclusive, já esta dentre seus objetivos previstos no art. 3°-A da lei complementar n° 80/94: “XIV - acompanhar inquérito policial, inclusive com a comunicação imediata da prisão em flagrante pela autoridade policial, quando o preso não constituir advogado”.

            Desta feita, sendo o investigado integrante de um grupo economicamente vulnerável, a Defensoria Pública, por força do art. 7°, XXI do EOAB, deverá assistir o investigado.

Fundamentando nossa posição, entendemos que tal aplicação pauta-se no artigo 3º, caput e parágrafo 1º do Estatuto da OAB, que regula o exercício da advocacia pública e privada, extraindo de sua leitura que os membros das carreiras jurídicas públicas, excluindo a magistratura e o Ministério Público, exercem a advocacia e, consequentemente, são regulados pela referida lei e representados pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Além disso, o novo inciso XXI deve ser aplicado também aos Defensores Públicos com base na analogia, considerando que exercem, no processo penal, funções semelhantes às dos advogados criminalistas, não havendo razão jurídica que justifique tratamento diferente, sob pena de violação ao princípio da igualdade.

Logo, sob a égide de tal raciocínio, não podemos adotar a tese de que vícios no inquérito policial são irrelevantes quanto à persecução penal, pois, agora, surgiu a possibilidade de haver ato nulo durante o inquérito policial, plausível de macular todo o elemento de prova decorrente do ato, inclusive, gerar o não recebimento da denúncia pelo magistrado.

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Insta consignar breve comentário a inserção do parágrafo 12[10] ao art. 7° do estatuto em comento, o qual torna clara a possibilidade de o responsável pelas investigações incorrer em crime de abuso de autoridade previsto no art. 3°, “j” da lei 4.898/65, o qual tipifica o crime de abuso de autoridade o atentado (“aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional”), quando da não observância dos direitos estabelecidos no inciso XIV do art. 7° do Estatuto da OAB.

Objetivando findar nossa exposição, entendemos de extrema relevância tecer comentários acerca da alínea “b” do art. 7°, XXI da lei estudada. A título de esclarecimento, o presente artigo possibilitaria ao advogado constituído a “requisição de diligências”.

            Para tanto, transcrevemos as razões do veto:

Da forma como redigido, o dispositivo poderia levar à interpretação equivocada de que a requisição a que faz referência seria mandatória, resultando em embaraços no âmbito de investigações e consequentes prejuízos à administração da justiça. Interpretação semelhante já foi afastada pelo Supremo Tribunal Federal - STF, em sede de Ação Direita de Inconstitucionalidade de dispositivos da própria Lei no 8.906, de 4 de julho de 1994 - Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (ADI 1127/DF). Além disso, resta, de qualquer forma, assegurado o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, nos termos da alínea ‘a’, do inciso XXXIV, do art. 5o, da Constituição

Sem dúvida alguma o termo “requisição” possui tom de determinação obrigatória de cumprimento de diligência pelo Delegado de Polícia. Por este motivo, entendemos que na atual sistemática constitucional e sempre atento ao princípio da paridade de armas, qualquer tipo de elemento de prova a ser realizado durante a investigação estará sob o julgo do Delegado de Polícia, ao qual lhe é assegurada a independência funcional[11] pela livre convicção nos atos de Polícia Judiciária.

Desta feita, além do investigado e ofendido requererem diligências (art. 14 do CPP), entendemos que o Ministério Público também deteria tal direito, sendo elas realizadas, ou não, sempre por despacho fundamento pelo Delegado de Polícia e desde que não prejudiquem a eficiência e celeridade das investigações e os demais elementos de provas vindouros.

No mesmo sentido, ao término do inquérito policial, tanto o membro do Ministério Público, quanto o advogado do investigado/indiciado poderiam requerer (não requisitar) diligências ao magistrado o qual, de forma fundamentada, exararia sua decisão pelo deferimento ou não de tais diligência dentro da extrema necessidade de sua realização (leia-se imprescindibilidade).

Deste modo, podemos verificar nestas alterações do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, que mais do que garantir direitos aos membros da advocacia privada, estabelece garantias ao investigado que, em caso de não observância, poderá resultar no não recebimento da denúncia pelo magistrado em razão de sua nulidade.

Por sua vez, valoriza-se o inquérito policial com sendo um procedimento de extrema relevância para o sistema de persecução criminal, o qual tem por objetivo não só de fornecer elementos ao titular da ação penal, mas também de evitar acusações levianas, dando a este procedimento uma nova interpretação frente às normas constitucionais pós ditadura militar.

Portanto, a Polícia Judiciária no Estado Democrático de Direito, à luz da doutrina de Luigi Ferrajoli[12], e conforme mencionado por Ruchester Marreiros Barbosa[13] pode ser considerada como uma “Polícia de Garantias”, as quais lhe foram concedidas pela Constituição visando a busca da verdade com observância da moralidade e dos princípios da investigação, demonstrando-se, assim, a emancipação de funções do Estado na busca constante da consagração da democracia como elemento central do exercício do poder, reforçando o caráter republicano das Polícias Judiciárias.

BIBLIOGRAFIA

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva. 2015.

LIMA, Renato Brasileiro de Curso de Processo Penal. Niterói. Editora Impetus. 2013.

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9ª Edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2009.

SANNINI NETO, Francisco. Inquérito Policial e Prisões Provisórias: teoria e prática de polícia judiciária. 1ª ed. São Paulo: Ed. Ideias & Letras. 2014.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 10ª Edição. Editora JusPodivm. Salvador. 2015.

http://www.conjur.com.br/2015-ago-25/academia-policia-delegado-efetivar-garantia-defesa-investigacao-criminal - acesso em 13.01.2016

Sobre os autores
Raphael Zanon Silva

Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009), pós-graduação em Direito Público pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus (2011) e pós-graduação em Direito Penal pela Escola Paulista de Magistratura-SP (2014). Também é pós-graduado em Direito Processual Penal pela Escola Paulista de Magistratura-SP (2016). Aprovado no exame 140º da OAB, é ex Delegado de Polícia do Estado do Espírito Santo e atualmente é Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo. Na área acadêmica atuou como Professor de Direito Penal junto à Anhanguera Educacional, e como professor convidado do Curso Complexo Andreucci de Ensino. É professor concursado da Academia da Polícia Civil do Estado de São Paulo.

Rodolfo Luiz Decarli

Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo. É Professor de Direito Penal e Processual Penal junto à Anhanguera Educacional. Professor assistente de Direito Processual Penal junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor tutor convidado pela Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes - LFG.

Informações sobre o texto

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