- Direito à Saúde e Direito Sanitário
De certo que ao estudarmos o conceito de saúde e as normas legais que tratam de sua proteção, promoção ou manutenção, nos depararemos com diversas áreas de conteúdos semelhantes, que até se identificam, mas que não se confundem. É o caso das normas de saúde em relação às de direito sanitário, as de vigilância sanitária e as de vigilância epidemiológica. Apesar de semelhantes, terão núcleos básicos distintos. Como Sueli Gandolfi Dallari mesmo nos indica, “ tarefa difícil é separar as regras de conteúdo especificamente sanitário das demais que visam melhoras a condição social dos indivíduos “, haja vista que o direito sanitário é um dos diversos ramos de direito a que chamamos de social (como o são o previdenciário, o direito trabalhista, o direito à educação, etc.). E continua: “ Todo direito,7 assim chamado, social – como se existisse um direito que não seja social! – baseia-se na definição das necessidades humanas e na existência de pessoas que não dispõem de meios para satisfaze-las. É a lei, então, que irá ressaltar, todavia, que todos esses direitos ditos sociais são aquisições recentes da sociedade moderna, e que a evolução de tais direitos está intimamente ligada à evolução do reconhecimento do que hoje chamamos Direitos Humanos. Neste linha, podemos afirmar que o direito sanitário é um direito bastante recente, sendo ainda pequeno o volume de trabalho de doutrinadores nessa área.
Do ponto de vista jurídico, o problema da preservação da saúde implica, necessariamente, no seu reconhecimento como um direito público subjetivo dos habitantes do País, que deve ser fortalecido pelo ordenamento jurídico nacional e protegido pelo Estado que tem o dever de proporcionar aqueles destinatários, serviços em condições de atender às necessidades públicas nesse campo. Em contra-partida, esse direito não poderá deixar de gerar para o indivíduo e a coletividade onde vive, em certa situações, obrigações, responsabilidades e participação.
A esta altura implica notar que a área de abrangência da legislação sanitária ou de saúde está voltada, principalmente, para dois ramos distintos: um respeitante à organização de serviços, e outro, relacionado com o estabelecimento de preceitos substantivos, programáticos, coercitivos e paracoercitivos, disciplinado procedimentos a serem observados pelos administrados, fixando vedações e impondo sanções para fazer cessar as ações ou omissões que comprometem a saúde da coletividade.
O processo legislativo em matéria de saúde se desenvolve em três níveis de governo: federal, estadual e municipal, cabendo em geral ao primeiro a aprovação de normas gerais, aos Estados, a normatização supletiva, e aos Municípios, a disciplinação dos assuntos do seu peculiar interesse. Nada obstgante, a competência da União para legislar não exclui a competência suplementar dos Estados.
Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência supletiva plena para atender às suas necessidades e peculiaridades. A superveniência de norma federal sobre normas gerais suspende a eficácia de lei estadual, no que for contrário (art. 24, §§ 1°, 2°, 3° e 4° da Constituição Federal).
Do ponto de vista da hierarquia das leis, as Constituições Federal e Estaduais, as leis complementares às constituições e as leis ordinárias, federais, estaduais e municipais, contém, com maior ou menor intensidade, dispositivos sobre a saúde das pessoas.
- Direito Sanitário
Hely Lopes Meirelles opõe-se à idéia, defendida por alguns autores, de que seja o Direito Sanitário ramo autônomo do Direito Administrativo. Para Hely, assim como para outros publicistas italianos, o ordenamento sanitário continua sendo objeto do Direito Administrativo, como matéria de polícia administrativa. Aliás, para Hely, no Brasil, sempre se considerou a polícia sanitária como assunto de Direito Administrativo, como se comprova pelas obras de Alcides Cruz, Direito Administrativo Brasileiro, 1914, n. 172; Rui Cirne Lima, Princípios de Direito Administrativo, 1954, p. 119 e outras.
Discussões a respeito da autonomia do Direito Sanitário à parte, é fato que o estudo sobre Direito Sanitário cresceu enormemente em sua importância, assumindo papel relevante na sociedade moderna, principalmente devido a sua imensa expressão dentro do conceito mais amplo de Saúde Pública. Hoje, a legislação sanitária, expressa através das normas que regulam as ações de vigilância sanitária, vigilância epidemiológica e saúde do trabalhador, está presente no dia-a-dia de todos os cidadãos, seja através do controle de bens de consumo oferecidos à população (grande parte), seja através do controle de serviços de saúde prestados à comunidade, ou através de ações que visam preservar o meio ambiente em que vivemos, além, é claro, de serviços outros de controle e erradicação, v.g., o controle nacional do Aedes aegypti..
- Vigilância Sanitária
Vigilância Sanitária é uma contínua luta, individual e coletiva, pela harmoniosa adaptação do homem à natureza, pela racional aproveitamento dos recursos naturais, pela proteção contra os riscos decorrentes do processo de produção e pela segurança no consumo de bens e serviços, ou seja, pela qualidade de vida.
O saber técnico associado à ação do Estado na manutenção e melhoria da qualidade de vida não basta para que isto se realize. É preciso que a sociedade tenha consciência da importância das responsabilidades sociais do setor produtivo e que a população possa participar do controle social.
Conseqüentemente, Vigilância Sanitária é um instrumento de cidadania e a conquista de cidadania representa seu avanço.
A importância das ações de vigilância sanitária em nossa sociedade hoje é tão significativa que a Lei n° 9.782, de 26 de janeiro de 1999, que define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, criou, também, em nível nacional, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, autarquia sob regime especial, com a independência administrativa, estabilidade de seus agentes e autonomia financeira, vinculada ao Ministério da Saúde, com prazo de duração indeterminado e atuação em todo o território nacional. A Agência tem sede e foro no Distrito Federal (art. 3°, § único, da Lei n° 9.782/90).
A Agência tem por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras (art. 6° da Lei).
Hoje, a Vigilância Sanitária é amplamente conceituada em legislações de saúde e sanitária, podendo ser assim resumidamente definida:
Entende-se por vigilância sanitária o conjunto de ações dirigidas à defesa e à proteção da saúde coletiva cuja função é identificar e controlar permanentemente os fatores de risco à saúde individual ou coletiva, através de ações desenvolvidas sobre condições, produtos, serviços elementos, transporte, meios e origem que direta ou indiretamente possam produzir agravos à saúde.
A vigilância sanitária visa, à eliminação, à diminuição e à prevenção dos riscos à saúde, através do acompanhamento do cumprimento de padrões adequados aos grupos de fatores de risco à saúde e da intervenção nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo: a) o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos, da produção ao consumo e b) o controle da prestação de serviços que se relacionem direta ou indiretamente com a saúde.
As ações de vigilância sanitária, contemplam, portanto, todas as ações de saúde, desde a promoção, passando pela proteção, recuperação e reabilitação da saúde, sendo agrupadas em três áreas:
- ações de normatização e controle da prestação de serviços e atividades que direta ou indiretamente se relacionem à saúde;
- ações de normatização e controle da industrialização, transporte, comercialização e uso de produtos de interesse sanitário;
- ações de normatização e controle sobre o meio ambiente e as condições de trabalho.
Desde a Carta de 1967 e Emenda de 1969 direitos e deveres, direta ou indiretamente, constavam de seus textos, mas foi com a Constituição Federal atual que tais direitos afloraram, somado a legislação ordinária como adiante se referirá.
- O Sistema Único de Saúde – SUS
A Carta da República em vigor, em seu Título VIII – DA ORDEM SOCIAL -, Seção II, trata DA SAÚDE, afirmando que esta é direito de todos e dever do Estado e que são de relevância pública todas as ações e serviços de saúde. Ela também cria o SUS – Sistema Único de Saúde, rede regionalizada e hierarquizada que compreende todas as ações e serviços públicos de saúde, definindo, em seu art. 200, as suas competências, e dentre elas, a de executar as ações de vigilância sanitária.
Já a Lei n° 8080, de 19.09.90 – Lei Orgânica da Saúde – vai regulamentar o disposto na Constituição, definindo mais detalhadamente as competências e atribuições do SUS, bem como as respectivas responsabilidades da União, Estados e Municípios nesta enorme rede regionalizada e hierarquizada que é esse sistema. Aos Estados, por exemplo, através de suas Secretarias de Saúde – já que a direção do SUS é única e nos Estados deve ser exercida pelas Secretarias de Saúde – compete, dentre outras coisas, coordenar, e, em caráter complementar, executar ações e serviços de vigilância sanitária, bem como participar, junto com órgãos afins, do controle dos agravos do meio ambiente que tenham repercussão na saúde humana (art. 17, inc. IV, “ b “ e inc. V, da Lei n° 8080/90).
Assim, não nos resta dúvida da importância que hoje assumiram as ações de vigilância sanitária em nossa sociedade, elevadas ao nível de relevância pública pela própria Constituição Federal, assim como, por conseguinte, o próprio Direito Sanitário.
Normas sempre existiram, porém, vemos, com as vênias cabíveis, que os novos e velhos paradigmas do Direito Sanitária, em especial, está restrito e adstrito a conscientização do povo, pois grande parte da resolução dos problemas é no âmbito deste espectro, pois o poder de polícia obriga, mas não vê tudo.
Tanto assim o é que a Lei n° 6.437, de 20.08.77, substituiu o Decreto-lei n° 785, de 25.08.69, que foi o primeiro corpo de normas penais-administrativas sistematizado em matéria de saúde no país.
A transgressão da norma sanitária, seja qual for a sua natureza, coercitiva ou paracoercitiva, importará, de acordo com a Lei n° 6.437/77, em penalização do infrator, conforme a natureza e a gravidade da falta cometida.
A citada lei, que define as infrações à legislação sanitária estabelece no seu artigo 12; “ As infrações sanitárias serão apuradas em processo administrativo próprio, iniciado com a lavratura do auto de infração, observados os ritos e prazos estabelecidos nesta lei.”
Notória as alterações por regiões, como na nossa (RJ), onde poderá haver a inicialização do processo administrativo através de reclamação (denúncia) expressa ou anônima, vistorias direcionadas, etc.
De acordo com Hélio Dias, “ as proibições, determinações, restrições e deveres em matéria de saúde, foram atualizadas, incluindo-se novas situações cuja prevenção ou repressão se impunha, sem prejuízo do critério dominante de ensejar ao infrator primário, autor de falta menos grave, o direito de reabilitação, através da aplicação de penalidades mais brandas, ou até mesmo isentado-o destas. “.
Por outro lado, foram igualmente revistos os passos do processo administrativo, destinado à responsabilização dos recalcitrantes, aclarando pontos obscuros ou omissos na legislação ab-rogada, assegurando sempre ampla defesa aos indiciados.
A responsabilidade, sob o ponto de vista da legislação sanitária, não exclui, porém, a apuração de possíveis crimes, contravenções, de faltas éticas ou disciplinares, conforme a legislação civil, penal, administrativa e normas ético-disciplinares, tendo, a exemplo disso, falsificação de remédios, as normas insertas no código penal brasileiro (DOS CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA – artigos 267 ut 285), a Lei 7.347, de 24.07.0985, a Lei n° 8.137, de 27.12.1990, etc.
Daí poder reiterar o que acima foi dito de que, apesar da existência de normas rígidas o melhor caminho a ser trilhado, à nossa humilde ótica, ainda está na orientação, pois, a assim não se entender, impossível se mostra, em assunto atual, o controle da dengue no pais, apesar de todos os esforços instalados nos diversos níveis de governo, os índicos de possibilidade de epidemia continuam sendo grandes.
É possível afirmar que a regulação, como função estatal, é sinônimo da clássica noção administrativa de competência regulamentar?
Impossível se mostra introduzir este tema sem adentrar na natureza do Poder Regulamentar, que, insitamente, engloba a competência regulamentar, podendo ser entendido como a competência da Administração de emanar atos normativos, ou seja, de caráter genérico e abstrato, para que uma lei possa ser executada e surta eficácia concreta. Na nossa opinião, só o regulamento estritamente necessário a preencher as condições de plena aplicabilidade da lei é que merece esse nome. Lei que não demande complementação normativa e contenha em si todos os requisitos de produção dos efeitos que lhe são inerentes dispensa regulamentação, acarretando a inocuidade do regulamento porventura feito ou a sua anulação, se em algo pretender, mesmo indiretamente, alterá-la.
Há uma escola que faz repousar o fundamento jurídico do poder regulamentar na atribuição originária e discricionária de que são portadores os órgãos da Administração. Dimanaria a prerrogativa da natureza ínsita da administração como aplicadora dinâmica da lei, prescindindo-se de delegação, legislativa..
A que lhe é oposta, contrariamente, compreende a atribuição regulamentar como uma competência derivada e concebida como autêntica legislação, que seria, em principio da órbita do Legislativo, não fosse a delegação deferida em sede constitucional ou legal ao Executivo, a primeira, genérica, a segunda, específica, restrita à matéria versada em cada lei e prevista expressamente.
A competência originária (regulação), traz em seu conteúdo inúmeros abusos administrativos perpetráveis licitamente, se o exegeta a adotar. Com efeito, ela retroage aos princípios do direito administrativo monárquico, incinerando o dogma da rígida separação de poderes bem assim o da subordinação completa da Administração ao quadro normativo, da lei. Ora, competência administrativa não oriunda de fundamento legal ou constitucional expresso, com o oferecimento ao agente público, apenas por exercer poder de liberdade em tudo que a lei não proibir, equivale a retirar-lhe todas as peias garantidas pelo regime democrático, pois ao legislador eleito pelo povo ficaria impraticável gastar tempo integral em editar normas constritoras e proibitivas de exageros. Duas ordens normativas contraditórias duelariam pela interferência na vida privada, uma baseada no princípio da autoridade, outra, a do legislador eleito, externaria os últimos suspiros da representatividade popular.
A nosso ver, o fundamento da atribuição regulamentar fixa-se em pedestal superior ao legal, na Constituição Federal, em um de seus corolários primordiais: o da própria tripartição de poderes, dele se podendo deduzir para a generalidade dos órgãos administrativos encarregados de fazer cumprir as leis atinentes ao exercício de suas competências. Se ao Executivo ficou reservada a tarefa precípua de executar os mandamentos legais, a que não cabe se furtar e o legislador, em sua faina, elabora lei inexeqüível sem complementação normativa, a possibilidade de regulamentação provocaria dupla violação à CF, a uma, pela negação de vigência e aplicabilidade de lei regularmente promulgada, a duas, pela castração da finalidade-mor da Administração, a concretização do interesse público, tão-somente localizado na lei ineficaz. Infere-se, portanto, que o preceito da tripartição de poderes coloca claramente a competência regulamentar a serviço dos órgãos administrativos no cumprimento de suas peculiares funções. Além dessa competência genérica, estatui a Carta Magna duas específicas: a do Presidente da República, no tocante à regulamentação para a fiel execução de qualquer lei saída do Congresso Nacional e a dos Ministros de Estado, no que tange à expedição de instruções para a execução de leis, decretos e regulamentos (respectivamente, art. 84, inc. IV e art. 87, inc. II).
Bem se vê que inexiste margem de discricionariedade estendida ao administrador encarregado de exercer competência regulamentar. Esta delineia seus contornos exaustivamente no Estatuto Político. Diga-se, de passagem, que certa e determinada lei está também apta a criar em seu bojo competência regulamentar e deferi-la a um órgão individualizado em detrimento dos demais, se não desbordar do âmbito legal de suas competências.
Resumindo: no ordenamento brasileiro, há três fontes que autorizam o exercício de poder regulamentar:
a) uma, constitucional genérica (art. 2.° CF), que se materializa no órgão a que o ordenamento incumbiu a aplicação da lei sob mira, independente de autorização nela ou em outra expressa;
b) a segunda, desdobrável em duas específicas, também constitucionais, a do Presidente, englobadora de quaisquer leis e a dos Ministros de Estado, relativa unicamente às leis que tragam assunto próprio de suas pastas:
c) a terceira, legal, em cada lei que pugnar expressamente por sua regulamentação, se o órgão escolhido não repugnar ao quadro geral de competências antes demarcado.
Note-se, então, que o exercício de função regulamentar não comporta discricionariedade. À hipótese objetiva de existência de brechas na lei, que inviabilizem sua aplicação ao caso concreto pela Administração, e só aí, a
Constituição ou a lei ordenam taxativamente ao agente estatal que desempenhe atividade normativa e a complemente, nos exatos termos e limites permissivos da eficácia dos fins inspiradores de sua criação. Nada mais e nada menos, sob pena de poda dos excessos ou complementação obrigatória do que falta.
Tais instruções inserem-se no âmbito do poder regulamentar que nunca poderá extrapolar os termos do ordenamento regulamentado. Conforme reza a melhor doutrina, os pressupostos para a validade do regulamento guardam vinculação necessária com seus limites, daí não ser lícito ao regulamento criar direitos ou obrigações; ampliar, restringir ou modificar os direitos e obrigações previstos na lei que regulamenta; subordinar-se ao texto e à inspiração legislativa; limitar-se ao desenvolvimento dos princípios legais. No cotejo argumentativo podemos afirmar que o poder regulamentar que cabe ao Esatado não se resume em repetir os textos legislativos que deve aplicar, mas cumpre-lhe buscar compatibilizá-los com o sistema legal vigente, nos princípios maiores que o informam.
RELEVÂNCIA PÚBLICA
O tema é apaixonante, em vista da pouca literatura disponível, o que leva o hermeneuta a divagar e persegui-lo para atender o que foi solicitado.
Principiamos por dizer que ações e serviços de saúde são, por definição constitucional – art. 197 – serviços de relevância pública, assim como, água, luz, esgoto, etc.
Os serviços de relevância pública guardam relação direta com os serviços ou atividades essenciais (art. 9°, § 1°, CF/88), sendo, via de conseqüência, de responsabilidade direta Estatal, em todas as suas esferas – Federal, Estadual e Municipal – e, indiretamente, sob o aspecto in eligendo e in vigilando, àqueles concedidos ou permitidos pelo Poder Público.
A regra insculpida no artigo 129 da CF/88, inciso II, confere ao Ministério Público a função institucional de zelar pelo efetivo respeito aos serviços de relevância pública, aos direitos constitucionalmente assegurados, promovendo as medidas necessárias à sua garantia; a mesma norma, em seu inciso III, estatui o poder-dever do Ministério Público de promover a ação civil pública para proteção dos interesses difusos e coletivos, o que também é autorizado pela Lei n° 7.347, de 24/07/1985, estendendo tal poder-dever a União, Estados e Municípios (art. 5°).
Vale observar que saúde pública é um direito social (art. 6°, da CF/88) e o exercício fiscalizador sanitário se constitui no instrumento materializador de tal garantia social, afeto, atualmente, aos Órgãos Públicos diretamente envolvidos no processo e ao Ministério Público.
De outra parte, tal hipótese guarda os traços característicos dos denominados interesses difusos, posto que as marcantes doutrinárias, como a transindividualidade e a indivisibilidade, assim como as indeterminações de seus titulares se acham presentes.
Impossível discorrer sobre o tema sem efetuar um breve escorço sobre as formas de atuação estatal, posto que a constituição de 1988 nasceu num momento político que tinha como paradigma a luta existente entre o comunismo e o capitalismo. Seguindo o exemplo de diversos países europeus, mesclando princípios de igualdade com liberdade, veio a Constituição de 1988 a se consubstanciar em uma Carta do "bem estar social", colocando o Estado como ser que não mais se abstém de prestar, mas que, tendo em vista a desigualdade social existente, passa a desempenhar atividades ao cidadão, prestando-lhe utilidades de forma a tornar sua vida mais digna – relevância pública.
Esse é o espírito da Carta de 88. Ela nasceu com o intuito de prestar ao cidadão as utilidades que o mesmo precisa para viver dignamente, de forma a não depender apenas do mercado para prover suas necessidades. Por isso atribui diversas competências ao Estado brasileiro, obrigando a Administração Pública a desempenhar certas atividades que o Estado, por considera-las "atinentes a interesses integrados em sua esfera de ação própria", retira do comércio e da iniciativa particular e traz para si como uma competência, um dever – poder.
É por este paradigma que deve a Constituição brasileira ser interpretada. Como sendo uma Carta do bem estar social que, ao mesmo tempo em que previu a liberdade de iniciativa característica do regime capitalista, preocupou-se com a desigualdade social e previu um Estado prestador de comodidades básicas ao cidadão através dos serviços públicos. Assim, deve-se levar em consideração esta realidade jurídica quando da análise das formas de atuação do Estado.
Assim, as atuações Estatais estariam divididas em dois campos básicos: as atividades próprias do Estado, que são os serviços públicos, e aquelas próprias dos particulares, mas que, dadas determinadas circunstâncias, poderia o Estado nelas intervir, até mesmo em forma de concessões ou permissões, tudo visando atender a demanda e o bem estar social, nos diversos campos.
Deste modo, quando o artigo 21 da CF prevê que "compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água", ele está prevendo uma atividade que, dada sua importância no momento político de elaboração da Constituição, foi tida como uma atividade primordial, necessária ao desenvolvimento da sociedade, indispensável à manutenção da dignidade da pessoa humana e, por isso, foi retirada do domínio dos particulares e foi entregue ao Estado, estando, o mesmo, obrigado a desempenhar esta atividade.
Isto implica dizer que as atividades chamadas serviços públicos não são negociadas pelo poder público. O Estado presta tais atividades porque é obrigado a fazê-lo pelo texto constitucional. Os serviços públicos são atividades especiais, com regime jurídico específico, qualificadas pela Constituição, que, retirando-as da livre alçada dos particulares, retira-as do mercado e as coloca sob a égide do poder público que deve desempenha-las sob comando constitucional.
Muito se discute sobre que tipo de serviço poderá ser considerado essencial na forma do que dispõe o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor - CDC, que inclusive comina pelo cumprimento forçado da obrigação de fazer, de fornecer a referida prestação essencial e ainda pela reparação dos danos causados pela interrupção deste serviço.
A Lei n° 7.783/89 assim dispõe em seu artigo 10:
Art. 10 - São considerados serviços ou atividades essenciais:
I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;
II - assistência médica e hospitalar;
III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
IV - funerários;
V - transporte coletivo;
VI - captação e tratamento de esgoto e lixo;
VII - telecomunicações;
VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;
IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais;
X - controle de tráfego aéreo;
XI - compensação bancária.
Em medida amplíssima todo serviço público, exatamente pelo fato de sê-lo (público), somente pode ser essencial. Não poderia a sociedade funcionar sem um mínimo de segurança pública, sem a existência dos serviços do Poder Judiciário, sem algum serviço de saúde etc. Nesse sentido então é que se diz que todo serviço público é essencial. Assim, também o são os serviços de fornecimento de energia elétrica, de água e esgoto, de coleta de lixo, de telefonia etc.
Portanto, os serviços essenciais estão para a coletividade e para o Ordenamento Jurídico como serviços indispensáveis à manutenção da vida e dos direitos, conceito que vivifica a impossibilidade de sua interrupção. Além do mais, por serem indispensáveis à normalidade das relações sociais ocupam natureza pública, onde não se evidencia proprietários destes serviços, mas apenas gestores que devem atuar para a preservação de sua utilização pelo homem, sendo, via de conseqüência, de relevância pública, podendo assim, da mesma forma, defini-la.
As principais conseqüências advindas, mostram-se àquelas referentes ao poder-dever do Estado, de um modo geral, representado por seus Órgãos fiscalizadores e pelo Ministério Público de promover meios e ações capazes de tornar hodierno e contínuo a promoção de ações que tornem viável a mantença da qualidade de vida do ser humano. Tal como acima dito, a Constituição Federal confere ao Ministério Público a tarefa institucional de zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos por ela assegurados (art. 129, inciso II), estendendo tal obrigação, a União, Estados e Municípios, por força da Lei n° n° 7.347, de 24/07/1985 (art. 5°).
Isso significa que é dever impostergável do Ministério Público a defesa do povo, cabendo-lhe exigir dos poderes públicos o efetivo respeito aos direitos constitucionalmente assegurados na prestação dos serviços públicos relevantes e essenciais e, da mesma forma, ao próprio serviço público, a persecução da obrigação dos contribuintes de cumprir suas determinações.
A normatização se justifica e obriga seus responsáveis.
O artigo 196 da Constituição Federal dispõe que "A saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação".
O artigo 197 do texto constitucional determina expressamente que as ações e serviços de saúde são de relevância pública.
O artigo 198 inciso II garante o atendimento integral, na esteira do que dispõe o artigo 194 inciso I, também da Carta Magna, de universalidade do atendimento público de saúde.
O artigo 173 da Constituição do Estado determina que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante " acesso universal e igualitário às ações e ao serviço de saúde, para sua promoção, proteção e recuperação", ressaltando no artigo 174 que "são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros, pessoa física ou jurídica de direito privado".
Prescreve ainda o inciso I, do artigo 175 da Constituição Estadual que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem o sistema único de saúde no nível estadual, e, dentre outros critérios, organizado de acordo com a municipalização dos recursos, dos serviços e das ações.
Assim também o artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei Federal nº 8.080, de 19/9//90 (Lei Orgânica da Saúde), que estrutura o serviço único de saúde :
"O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação".
Seu artigo 7º estabelece como diretriz:
"I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
II - integralidade de assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;
(....)
IV- igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie".
O dever de prestação dos serviços de saúde pertence primariamente ao poder público, porquanto o Art. 6º do CDC prescreve "São direitos básicos do consumidor: (...); X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral."
Tratando-se de serviço essencial, resta incontroverso que a prestação desse serviço deve ser contínua, o que significa dizer que os requeridos não podem interrompê-la com suas condutas omissas (e até mesmo comissiva e criminosa no caso de fixação de teto financeiro sabida e flagrantemente insuficiente, o que já é objeto de anterior ação) ante a inexistência de leitos e de hospitais suficientes, devendo, para tanto, adotarem todas as medidas necessárias para garanti-la.
A respeito da obrigação da prestação de serviços essenciais, o artigo 22, da Lei Federal nº 8.078, de 11/9/90 (Código de Defesa do Consumidor) assim dispõe:
"Art. 22 - O órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único - Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código." (grifamos)
Os serviços essenciais não podem, portanto, sofrer solução de continuidade. Assim, não podem deixar de ser ofertados aos usuários, vale dizer, prestados no interesse coletivo. Neste sentido confira-se o ensinamento de Zelmo Denari, in "Código Brasileiro de Defesa do Consumidor", comentado pelos Autores do Anteprojeto, Rio de janeiro, Ed. Forense Universitária, 1.995, p. 140.
Também devem respeitar o requisito da adequação, isto é, devem ser prestados na exata proporção competente a satisfação da demanda dos usuários.
Dito isto, dúvidas não restam, à nossa humilde ótica, que os serviços de relevância pública estão diretamente ligados, por relação direta, aos serviços ou atividades essenciais, não podendo deles se separar, obrigando, como conseqüência lógica, todos os envolvidos neste sistema, ao poder-dever de executa-los ou determinar-lhes à execução, sob pena de responsabilidade direta ou indireta.