A doutrina brasileira do habeas corpus

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O entendimento jurisprudencial e constitucional em sede de Habeas Corpus, como remédio constitucional garantindo o direito fundamental de ir e vir.Seus aspectos históricos e sua hermenêutica constitucional,mormente a brasileira.

A doutrina brasileira do habeas corpus e a origem do mandado de segurança vindo de uma profunda análise doutrinária de anais do Senado e da jurisprudência histórica do Supremo Tribunal Federal. Em razão dessa contextualização, o tempo e a prática judiciária evidentemente nasceu de instrumentos para defesa de inúmeros direitos. As consequências foram de uma reinterpretação do instituto do habeas corpus, decorrente dos esforços doutrinários e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, dando origem à doutrina brasileira do habeas corpus, que, conferindo-nos, em nosso Brasil, ao antigo instrumento Processual da Inglaterra, maior amplitude. Segundo doutrinadores e legisladores, o maior do mundo. A razão desse esplendoroso fato estava arraigada na redação original do art. 72, § 22, da Constituição de 1891 que deixava bem claro no seu texto, “dar-se-á habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder”. Como se pode notar, o referido dispositivo não fazia nenhuma menção ao direito de ir e vir, nem à liberdade de locomoção. Não falava também em prisão, constrangimento físico, em liberdade física. Adicionando a isso a presença das expressões coação, ilegalidade e abuso de poder, montou-se a tese do uso desse writ em todas essas circunstâncias, mesmo havendo da presença de um constrangimento físico direto. Assim, essa tese, ficou conhecida como a Doutrina Brasileira do Habeas Corpus, estabelecendo assim sua moradia em Ruy Barbosa efêmero guardião. Dizia o nosso saudoso Ruy Barbosa, “não se fala em prisão, não se fala em constrangimentos corporais. Fala-se amplamente, indeterminadamente, absolutamente, em coação e violência; de modo que, onde quer que surja, onde quer que se manifeste a violência ou a coação, por um desses meios, aí está estabelecido o caso constitucional do habeas corpus” (SENADO FEDERAL).

Ruy Barbosa sustentava a utilização do habeas corpus em todas as situações atreladas ao indivíduo. Para ele, não se tratava de uma simples interpretação da nossa Carta Magna. Antes, o legislador constituinte havia, concretamente, agido com a razão devida, dando ao instituto do habeas corpus conotação ampla, transformando-o em instrumento de defesa contra abusividades e ilegalidades.

O Habeas Corpus já estava previsto no Código Criminal de 1830 e no Código de Processo Criminal de 1832. Ambos, porém, expressavam à prisão e ao constrangimento físico. Por isso, Ruy Barbosa tomava partido de que “a questão está sanada pelo confronto da letra das instituições republicanas com a letra das instituições imperiais. Muito embora a Constituição de 1891 pretendesse enraizar no Brasil o habeas-corpus com os mesmos alcances dessa garantia durante o Império, a Constituição de 1891 teria dado relação ao habeas-corpus como fez relativamente à instituição do júri. Em se tratando do júri, diz formalmente o texto constitucional: É permanente a instituição do júri”. Concluindo Ruy Barbosa, “o habeas-corpus hoje não está atrelado aos casos de constrangimento corporal. O habeas-corpus hoje se estende a todos os casos em que um direito de qualquer ser, qualquer direito, estiver ameaçado, obstruído, violado, impossibilitado no seu caminhar pela intervenção abusiva de poder ou de uma ilegalidade” (SENADO FEDERAL). Posso citar aqui como o mais claro exemplo, o Habeas Corpus no 3.536 do Supremo Tribunal Federal, de 6 de maio de 1914, em que Ruy Barbosa é, ao mesmo tempo, impetrante e paciente. Insurge-se o então Senador pelo Estado da Bahia contra o Chefe de Polícia que impediu a publicação no jornal denominado O Imparcial de discurso por ele proferido no Senado Federal contra ato do Governo da União que, infringindo preceitos constitucionais, prorrogou por seis meses o estado de sítio. Assim decidiu o Supremo: “Considerando que o constrangimento ou coação de um deputado ou senador no exercício de seu mandato concedido pela soberania nacional, partindo de poder público, incide evidentemente na hipótese do art. 72, § 22, da Constituição da República, que manda conceder habeas corpus ‘sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou abuso de

poder’; Considerando que o fato de que se queixa o senador impetrante do presente habeas corpus ‘de se achar privado de publicar os seus discursos na impressa, fora do Diário Oficial’, por ato do chefe de Polícia desta cidade, importa em manifesta restrição na sua liberdade de representante da Nação, porque o seu mandato deve ser cumprido em sessões públicas do parlamento (art. 18 da Constituição), em discursos, pela palavra falada para a Nação que ele representa; Considerando que neste regíme político a publicidade dos debates do Parlamento é da sua essência, porque todos os poderes políticos surgem da Nação no exercício de sua soberania, e ela, como comitente do mandato, precisa saber da ações de seus representantes; Considerando finalmente que a publicação dos discursos, restrita à liberdade de imprensa oficial sob a fiscalização do executivo, anula a publicidade; Acordam por estes fundamentos conceder a ordem impetrada, para que seja o impetrante, senador Ruy Barbosa, assegurado no seu direito constitucional de publicar os seus discursos proferidos no Senado, pela imprensa, onde, como e quando lhe convier” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL).

O assunto em palta, porém, contou com votos divergentes, que demonstram a polêmica do debate acerca do cabimento do habeas corpus em hipótese como esta que, na verdade, resguarda a liberdade de expressão. Todavia, vale depositar o voto do Ministro Godofredo Cunha, vencido: “Não tomei conhecimento do presente pedido de habeas corpus, por entender que este não é o remédio hábil para corrigir ou reparar o mal de que se queixa o impetrante. O preceito do art. 72, § 22, da Constituição, deve ser interpretado em termos, e não com a generalidade que a maioria lhe empresta. É essa a opinião de Lucio de Mendonça, conselheiro Lafayette, Hwrd, Kent, Rossi, Blackstone e outros, os quais provam que o habeas corpus é destinado tão-somente a proteger a liberdade pessoal, isto é, o poder de fato para a locomoção. Invoco neste artigo que, pela expressão indivíduo, circunscreve a disposição à pessoa física. Na hipótese, por exemplo, do art. 80, § 2º da lei fundamental, só as pessoas físicas podem ser presas e desterradas e não as morais, por não serem susceptíveis de prisão ou desterro. O impetrante e paciente não está coagido em sua liberdade, nem ameaçado de constrangimento ilegal com relação à sua pessoa” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Outro julgado emblemático foi o do “Caso da Bahia”, em que os advogados Ruy Barbosa e Methodio Coelho impetraram ordem de habeas corpus em favor de Aurélio Rodrigues Vianna, 2º vice-governador em exercício do Estado da Bahia, e outros deputados estaduais, alegando encontrarem-se em constrangimento ilegal, pois haviam sido impedidos de exercer seus cargos em Salvador, ocupada por força militar da União. Neste julgado, Habeas Corpus no 3.137 do Supremo Tribunal Federal, ficou consignado que “compete ao Poder Judiciário garantir com habeas corpus a liberdade individual necessária ao exercício das funções políticas” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL).

É clara, à posição extrema de Ruy Barbosa contrapunha-se a interpretação ortodoxa do habeas corpus apenas como meio de defesa da liberdade de ir e vir. Porém, é de notável importância, o direcionamento empregado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, foi corrente intermediária que, a despeito de também 78 Revista de Informação Legislativa permitir uma interpretação mais ampla, fundava seu entendimento na tese de que a liberdade de locomoção era condição necessária para o exercício de inúmeros outros direitos que, por isso, poderiam ser protegidos pelo habeas corpus.

De fato, todo direito deverá adivir da liberdade de locomoção. Ela é concretamente de fato acondição e meio para o exercício de praticamente todos os demais direitos. Se um advogado é impedido de ter contato com seu cliente, ou se um padre é obstado de celebrar a sua missa, justificada seria a concessão de habeas corpus; entretanto, não para defender a liberdade de advogar, ou a liberdade de religião, mas sim o direito de ir e vir, condição para o exercício do desempenhador da profissão e daquele de necessita dos serviços. Exemplo concreto é o caso dos Conselheiros Municipais do Distrito Federal. Alegando

ilegalidade na formação interna do referido Conselho, com infração a dispositivos do Regimento Interno, o Presidente da República expediu decreto impedindo o Conselho de compor-se e reunir-se, fechando também o edifício. Contra tal ato e em favor de Conselheiros eleitos foram impetrados habeas corpus a fim de ser permitido o ingresso dos pacientes no edifício do Conselho e para o exercício do mandato. O mérito pela tese que coloca o direito de locomoção como condição para os demais, possibilitando o amparo pelo habeas corpus, deve ser atribuído a Pedro Lessa, então Ministro do Supremo Tribunal Federal. Para ele, o habeas corpus tem função específica de proteger a liberdade, entendida em sua acepção estrita. Tanto que chegou a negar provimento em um dos habeas corpus do Conselho do Distrito Federal, sob o argumento de que o que se tentou conseguir “não foi garantir a liberdade individual somente, mas resolver concomitantemente uma questão de investidura em funções de ordem legislativa” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL). Todavia, Pedro Lessa defendia que o habeas corpus deveria ser admitido sempre que o impetrante fosse privado de sua liberdade, que deveria ser vista também como um meio de exercício de todos os demais direitos. Tanto que, dias após, votou favoravelmente à Concessão da ordem a outro grupo de Conselheiros do Distrito Federal, os quais ele considerava regularmente investidos e que, portanto, pretendiam tão somente a preservação de sua liberdade de exercer suas funções, e não a investidura. Em suas exatas palavras no HC no 2794, de 11.12.1909: “O habeas corpus tem por função exclusiva garantir a liberdade individual, e não investir quem quer que seja em funções políticas e administrativas. Nesta forma concedi a ordem, porque, investigando a espécie, verifiquei que é completamente diferente da anterior. Os impetrantes, neste caso, alegam e provam que, exercendo os direitos que lhes davam os seus diplomas, passados pela Junta de Pretores, se haviam reunido regularmente sob a presidência do mais velho para a verificação de poderes. O habeas corpus tem por finalidade e excclusividade garantir a liberdade individual. Essa liberdade individual ou pessoal, que é a liberdade de locomoção, a liberdade de ir e vir, é um direito constitucional, que se debruça na natureza abstrata e comum do homem.

Existe a necessidade de todos sem distinção, ao rico e ao indigente, ao operário e ao patrão, ao médico e ao sacerdote, ao comerciante e ao advogado, ao Juiz e ao industrial, ao soldado e ao agricultor, aos governados e aos governantes. O direito de locomoção é uma condição sine qua non do exercício de uma infinidade de direitos. Usa o homem da sua liberdade de locomoção para cuidar da sua saúde, para trabalhar, para fazer seus negócios, para se desenvolver científica, artística e religiosamente”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL).

Quando Pedro Lessa afirmava que o habeas corpus servia como a proteção da liberdade entendida em sentido estrito (ponto em que foi, inclusive, acusado de contraditório pelo Presidente da República na ocasião em que concedeu habeas corpus em favor dos Conselheiros), ele queria dizer, na verdade, que o writ não se prestava a defender outros direitos que não o de liberdade, mas que, todavia, deveria ser concedido sempre que este, de alguma maneira, mesmo como condição de outros direitos, fosse ofendido. Pontes de Miranda (1972) critica o entendimento de Pedro Lessa externado no Habeas Corpus no 3.567, de 1o de julho de 1914, quando este diz que “é evidente que a liberdade de pensamento, a de consciência e a religiosa podem ser violadas por dois modos: ou pela coação à liberdade de

locomoção impedindo-se que o jornalista, o tipógrafo e os demais empregados do jornal penetrem no edifício da folha ou pratiquem quaisquer outros atos de locomoção, necessários à publicação do jornal, ou que o orador vá à praça pública ou suba à tribuna onde tem de falar, que o adepto de certas crenças religiosas se afaste do lugar onde lhe ofendem as crenças, que o auxiliar de um culto se entregue aos atos do culto externo, dependentes da liberdade de movimentos, ou por outros quaisquer meios, pelo entrelaço ao exercício de outros direitos, juntando-lhe, por exemplo, a construção de edifícios que tenham a forma de templo, apreendendo-se uma gráfica, todos os exemplares de um livro, exigindo-se, para a nomeação para

certos cargos públicos, ou para todos, a profissão de certa religião. Fica primeiramente bem claro que o remédio é o habeas-corpus, visto como há coação ilegal à liberdade de locomoção, condição, meio, caminho, para um sem-número de direitos.

Dá-se o habeas-corpus para o paciente ir à praça pública, ou a igreja, e poder manifestar os seus pensamentos pela tribuna ou pelo assembléia religiosa” “Quando a liberdade de pensamento, a de consciência e a de cultos, ou religiosa, são tolhidas por outros meios que não acoação à liberdade de locomoção, absurdo fora conceder o habeas-corpus para garantir quaisquer direitos fundamentais. Se uma autoridade arbitrária arranca um templo, apreende arbitrariamente os exemplares de um livro, ou de uma folha diária, quem no gozo de suas faculdades mentais se lembraria de requerer um habeas-corpus?”. (REVISTA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL) Para Pontes de Miranda (1972, p. 185), “a argumentação do ministro não estaria clara a verdadeira extensão do habeas-corpus: não se protege o indivíduo, nesses casos, pelo simples fato de não serem atentados à liberdade física, e sim a coisas. Se fossem, o habeas-corpus seria indicado. Não no sendo, como nos exemplos lembrados pelo jurista, ou dar-se-ia início ao processo criminal pelos crimes imputados, ou, no caso de dano, propor-se-ia, para eficiente e pleno reembolso do paciente, a respectiva ação de indenização...”. No entanto, Pontes de Miranda (1972, p. 186), não era a favor da interpretação restritiva ou ortodoxa do habeas corpus. Muito pelo contrário, como se pode inferir das seguintes passagens: “Qualquer que fosse o modo de acentuar, restringindo ou ampliando, as limitações do remédio, da forma, que o da Constituição de 1891, art. 72, § 22, equiparou a direito público constitucional, subjetivo, o que não se pode negar é a intenção do constituinte dandolhe mais larga esfera de aplicabilidade. Boa ou excessiva: pouco importaria. Era o que lá estava”. E mais adiante: “E que é que dizia o § 22 da Declaração de Direitos? O que os vocábulos desse parágrafo consignavam e mandavam é que se desse o habeas-corpus ‘sempre’ que houvesse coação ou violência, proveniente de atos ilegais ou abuso de poder. O ‘abuso de poder’ era conceito, aí, complementar de ‘ilegalidade’. A Constituição considerou que o abuso de poder pode não ser ilegal. Como se deveria entender isso? Restritivamente, como se todos esses dizeres mantivessem apenas a antiga instituição? A negativa impunha-se a olhos vistos. Seria acusar o legislador constituinte de incurável e absoluta incompetência, ou prolixidade vazia, em coisas de escrever. Seria excetuar, por meio de interpretação cinicamente tendenciosa, toda a história liberal de nossa jurisprudência e de nossa política. Seria mais ainda, atentaria contra os mais corriqueiros preceitos universais de exegese” (MIRANDA, 1972, p. 187). Assim, apresenta seu veredicto: “tecnicamente, o parágrafo estava perfeito. Miudear circunstâncias seria impróprio de uma Constituição, dizer mais do que disse rastrearia pelo ocioso e redundante, e dizer menos seria prometer outra coisa menos liberal, o que não foi, positivamente, a intenção do constituinte” (MIRANDA,1972, p. 188).

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Othon Sidou (1969, p. 53), assim como Pontes de Miranda (1972), enxerga no habeas corpus da Constituição de 1891 uma criação típica nacional, visando a defesa dos direitos fundamentais. Para ele o equívoco foi mais na escolha do nome do instituto criado para defesa dos direitos individuais do que nele próprio. Segundo Sidou, “é tempo de atentar para que, em verdade, o que a primeira constituição republicana fez não foi elevar o habeas corpus da sua condição processual para dar-lhe guarida em seu bojo, porém batizar com o nome específico do habeas corpus a garantia genérica em preservação dos direitos pessoais.

Criou-se um instituto que, potenciado em defesa dos direitos individuais, exigia curso célere, e nesse propósito, perseguindo a rapidez, deu-se-lhe o nome de habeas corpus, tomando de seu, apenas, essa característica, peculiar a todos os interditos, e de todas a mais impositiva”.

Houve, assim, sem dúvida, a criação de uma doutrina própria e autêntica do habeas corpus – a doutrina brasileira –, denominação justa em face de sua originalidade,

que, apesar de ter partido do molde apresentado pelo antigo instrumento jurídico inglês, adquiriu contornos pátrios bem particulares. Alguns chegaram a dizer que o instituto brasileiro era o mais amplo do mundo. Outros o comparam com o direito de amparo previsto na Constituição do México de 1917. De qualquer forma, esse episódio foi um dos capítulos mais importantes de nossa história jurídica, principalmente por ter dado azo ao desenvolvimento e a posterior criação de outros institutos. Para Pontes de Miranda (1972, p. 233), “a tese reacionária e a antítese liberal fizeram explodir a mais memorável contenda jurídica constitucional do Brasil. Mais: da América Latina”.

Tal foi a eficiência e a eficácia do habeas corpus durante o atribulado período da Primeira República que logo precipitou seu fim.

De fato, em 3 de setembro de 1926 adveio revisão constitucional que introduziu alterações no art. 72 da Constituição de 1891, a declaração de direitos. No entanto, nenhuma delas foi tão substancial como a realizada no parágrafo 22, que passou a ter a seguinte redação: “Dar-se-á o habeas-corpus sempre que alguém sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção”.

A leitura demonstra que foi omitida a coação e acrescentada a liberdade de

locomoção. Passando a fazer referência expressa ao direito de locomoção, a Constituição

restringiu o campo de aplicação do habeas corpus às hipóteses de cerceamento do direito

de ir, ficar e vir. A jurisprudência ainda tentou resistir, mantendo a interpretação de que o writ poderia ser utilizado sempre que a liberdade de locomoção fosse um direito condição para o exercício de outros direitos, mas certamente a posição restou enfraquecida pela alteração constitucional. Direitos outros que não a liberdade de locomoção restaram, dessa forma, desamBrasília a. 45 n. 177 jan./mar. 2008 81 parados. E para solucionar esse problema a

doutrina teve que buscar alternativas. Alguns chegaram a defender a tese da posse dos direitos pessoais, ensejando a possibilidade de utilização dos interditos possessórios para sua defesa. Ruy Barbosa foi novamente um dos defensores de tal tese, que acabou não vingando. Mas o fato é que a discussão jurídica ao fim da doutrina brasileira do habeas corpus acabou rendendo frutos. A lacuna teria que ser preenchida por outro instrumento. Esse cenário fez parte da gênese do mandado de segurança, criação jurídica nacional como a doutrina que o precedeu e incentivou, introduzido pela primeira vez na Constituição de 1934 (art. 113).

Como disse Pontes de Miranda (1972, p. 235): “como dar remédio àquelas coações e ameaças provindas dos poderes públicos quando a liberdade de locomoção não fosse o direito condição? Foi então que se pensou no Mandado de Segurança, criação posterior, porém que remonta ao projeto de Guidesteu Pires, em 1926. A data é sugestiva. Fechando-se a porta que a jurisprudência abrira, era preciso abrir outra”.

Em 1934, era a seguinte a redação constitucional do art. 113, no 33: “Dar-se-á mandado de segurança para a defesa de direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por acto manifestamente inconstitucional ou illegal de qualquer autoridade. O processo será o mesmo do habeas corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado não prejudica as acções petitoriais competentes.”

Note-se que até o rito era o mesmo do habeas corpus. Inclusive, diante disso, não haveria, na prática, diferença entre os dois institutos, caso não tivesse o mandado de segurança sido regulamentado pela lei no 191, de 16 de janeiro de 1936, que especificou as hipóteses de seu cabimento.

A Carta de 1937, por sua vez, obviamente em virtude do regime autoritário então adotado, suprimiu tal garantia, como é afeto a regimes dessa natureza. Porém, em 1946 o mandado de segurança retornou ao quadro constitucional, nele permanecendo até hoje. Vale destacar,

todavia, a redação do art. 141, § 24, da

Constituição da 1946, que assim dispunha: “Para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas-corpus, conceder-se-á mandado de segurança, seja qual for a autoridade

responsável pela ilegalidade ou abuso de poder”.

Certo é que a menção expressa a tutela por via de mandado de segurança de direito não amparado por habeas corpus – e na atual Constituição acrescida da referência também ao habeas data – deixa transparecer, sem dúvida, sua origem.

Na esteira desse dispositivo constitucional, adveio a lei disciplinadora em 1951 (Lei no 1.533, de 31 de dezembro), até hoje vigente. Assim, a análise da doutrina brasileira do habeas corpus e das origens do mandado de segurança demonstra que este surgiu da necessidade e da importância de se disponibilizar ao cidadão instrumentos para a garantia, isto é, tutela e preservação, de seus direitos. Sua gênese remete a um meio rápido, eficaz e constitucionalmente assegurado, criado como defesa contra as ilegalidades do Poder Público e, pois, indispensável ao Estado de Direito. Desse modo, deve ser prestigiado como meio acessível e indispensável à manutenção das instituições democráticas e como criação do direito brasileiro.

Referências

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanosfundamentais. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Históriae prática do habeas corpus. 7. ed. Rio de Janeiro: Borsoi,1972. 1 t.

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