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Cooperação judiciária: passo fundante para a jurisdição internacional

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3. A internacionalização de princípios e dos direitos humanos

 A humanidade assiste, passo a passo, à generalizações na adoção de princípios jurídicos e  dos direitos humanos. Os direitos humanos têm, no processo histórico, sido adotados nas Constituições dos países democráticos: ocidentais – Europa, EUA, América Latina, bem como em países da Oceania e em alguns da Ásia e África, através da vigência, a partir dos textos constitucionais, das chamadas gerações de direitos humanos, que se  tornam fundamentais, vez que previstos nas Constituições.

Os direitos humanos, em princípio, têm sido conquistados, por cada geração, em um determinado Estado, ou em alguns Estados do mundo, e, depois, passam a ser adotados em outro ou outros. Em seguida, são previstos em instrumentos internacionais e generalizam-se mais ainda, em face do status que passam a ter de Direito Internacional[63].

Parece ter sido esta a lógica até hoje. No caso dos direitos de primeira geração, ou dimensão, os chamados direitos de liberdade, a sua concretização se deu na Inglaterra, nos EUA e na França, onde teve um cunho de universalidade, através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que não pretendia ser apenas do homem e do cidadão da França, mas de todo o mundo. Ressalte-se que, na Conferência de Berlim, em 1890, seguiu-se nessa esteira de generalização dos direitos humanos de primeira geração, por coibir-se o trabalho escravo, pondo-se o verdadeiro acento que faltava na efetivação da liberdade[64].

Os direitos sociais, sobretudo os do trabalho, do mesmo modo, tidos como os de segunda geração, os chamados direitos de igualdade, conquistados, principalmente,  a partir da segunda metade do século XIX em alguns países da Europa (welfare state) e nos EUA (walfare captalism), tiveram também grande impulso generalizador pela Conferência de Berlim – realizada em 1890[65], da qual participaram treze Estados, com sugestões para a criação de uma repartição internacional para realizar estudos e estatísticas acerca do trabalho, e com resoluções no intuito de regulamentar, no âmbito internacional, medidas para proibir, em certas condições, o labor no interior das minas, o trabalho dominical e a utilização do trabalho de crianças e adolescentes;  e regular o das mulheres. Com a Constituição de Weimar e o Tratado de Versalhes (1919), e com a criação da Organização Internacional do Trabalho, intensificou-se a generalização da segunda dimensão dos direitos humanos, os direitos sociais.

No final da Segunda Grande Guerra, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, o processo de generalização incrementou-se, com a compilação, em um instrumento de Direito Internacional, em especial, das duas primeiras gerações de direitos humanos.

Ademais, intensificou-se o regramento da terceira geração de direitos humanos, os direitos difusos, em face das preocupações com o meio ambiente, movida, a comunidade internacional, pelo temor em razão dos riscos de hecatombe nuclear e outros males. Assim, instrumentos internacionais sobre o tema ambiental foram editados, como a Convenção Internacional sobre a regulação da pesca da baleia, de 1946; a Convenção sobre o estabelecimento da Comissão Interamericana para a Pesca do Atum; a  sobre a pesca em geral, de 1949; e a sobre a proteção dos pássaros, de 1950. Mas foi a partir de 1970 que o Direito Internacional do Meio Ambiente alcançou contornos mais bem definidos, sobretudo com a Resolução nº 2.398, sob a égide da ONU, na Conferência de Estocolmo de 1972, a primeira conferência intergovernamental sobre proteção do ambiente[66].

  Esta generalização dos direitos humanos, na esfera internacional, consubstancia-se no Direito Internacional dos direitos humanos, tanto através de documentos das Nações Unidas, como de convenções regionais, v.g., a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a Carta Social Europeia, a Convenção Americana de Direitos do Homem e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.  

O Direito Internacional dos Direitos do Homem, pelo menos em perspectiva, alça o homem à condição de sujeito de Direito Internacional, afirmando-se o indivíduo “como unidade primária e sujeito por excelência do direito internacional”. Esta visão causa uma fissura na compreensão tradicional dos sujeitos de Direito Internacional, pautada sempre a partir do conceito de soberania e em uma visão do Direito Internacional autoritária[67].

Assim é que importante capítulo constitucional de Direito Internacional já foi cumprido no mundo ocidental, de modo muito claro em grande parte da Europa e da América, o da constitucionalização dos direitos humanos, sob o ponto de vista internacional, nesses espaços, através, sobretudo, da CEDH e da CADH.

Quanto aos princípios jurídicos, no Direito Internacional, ainda se está um passo atrás no que se refere à sua compreensão normativa, quando comparada à que se chegou em torno deles nos Estados soberanos democráticos, nos quais se definiu, como visto alhures, que os princípios são normas de igual ou superior importância que as regras. É que, em Direito Internacional, em face do respeito à soberania dos Estados envolvidos, fala-se na necessidade de extrema clareza nas definições, a ser mais conveniente, para muitos, a adoção de regras, normalmente mais claras, quanto ao sentido, que os princípios jurídicos. A margem de interpretação, maior quanto aos princípios, na opinião de muitos, pode levar, no plano internacional, caso sejam tidos com o mesmo valor normativo das regras, a situações problemáticas de discordâncias insuperáveis entre os interessados na aplicação da norma. O receio do ativismo judicial internacional[68] e as dificuldades de aceitação internacional da mera ponderação para a resolução de problemas relacionados a colisões de princípios e solução de casos concretos soam, para muitos, contra a aplicação direta dos princípios. O entendimento, até certo ponto comum em Direito Internacional, de necessária certeza, imperante nas relações internacionais, a exigir, em tese, concordância de todos, pelo menos dos envolvidos em questões a serem decididas, fragiliza a aplicação dos princípios, sob o argumento de uma certa fraqueza semântica.

Deste modo, os princípios, em Direito Internacional, são consideradas normas jurídicas, mas supletórias, apenas aceitos com força de norma em caso de lacunas no complexo de regras. As funções desempenhadas pelos princípios no Direito Internacional ainda se restringem quase que somente às de inspirar os órgãos competentes na edição de normas internacionais e, também, de dar coerência axiológica ou normativa, em face dos múltiplos intérpretes e aplicadores do Direito Internacional[69]. Exerceriam uma função  clarificadora da interpretação das regras, a indicar um caminho, um fim a se alcançar, um valor a se salvaguardar. Assim, ao lado da função inspiradora na feitura das normas, os princípios, no Direito Internacional, têm um papel de auxiliar na interpretação das regras do Direito Internacional e, em caso de lacunas, supri-las. Não obstante a limitação funcional, quando comparadas com as das regras jurídicas, as funções pré-citadas, quanto aos princípios, são, por óbvio, relevantíssimas, contudo, há que se rever esta posição, para que os princípios ganhem, no plano internacional, a mesma força normativa que têm no domínio constitucional.

 Com efeito, o Direito Internacional tem um grande número de princípios, que são classificados em duas grandes espécies: (1) os princípios gerais de Direito[70] aplicáveis ao Direito Internacional (v.g.: proporcionalidade; boa-fé; proteção da confiança; garantia do due process; responsabilidade e compensação de danos; proibição de ser juiz em causa própria; de que ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza); (2) e os princípios gerais de Direito Internacional (v.g.: igualdade soberana dos Estados; reciprocidade; resolução pacífica dos conflitos; responsabilidade internacional; não ingerência em assuntos internos de outros Estados; direito de autodeterminação dos povos; proteção dos direitos humanos; proteção do meio ambiente; livre circulação de ideias e informações)[71].

Após a Segunda Grande Guerra, assim como aconteceu no Direito Constitucional, os princípios foram amplamente adotados no Direito Internacional[72]. De um lado, por indução dos ordenamentos jurídicos dos povos, observando-se os  princípios gerais de direito de cada Estado soberano[73], em comparação com os demais. Assim, alcançar-se-ia o complexo dos princípios gerais de direito aplicáveis em Direito Internacional. Por outro, examinando-se os documentos jurídicos internacionais, através de suas regras particulares, também por indução, chegar-se-ia à conclusão sobre os princípios gerais de Direito Internacional.

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Como acentua Machado, “é hoje reconhecido pela comunidade internacional que os direitos humanos devem ser protegidos pelo direito interno dos Estados”[74]. Do mesmo modo, os princípios, “por serem reconhecidos pelo direito internacional como tendo alcance universal, devem ser parte integrante do direito interno de todos os Estados”[75]. Assim, o conjunto de princípios jurídicos, que consubstancia os princípios de Direito Internacional, também deve ser adotado pelos Estados, em uma via que se diz de mão dupla. Os novos direitos humanos conquistados e os princípios previstos na ordem jurídica de um Estado vão se generalizando, são adotados em outros Estados, passam ao domínio do Direito Internacional e terminam por influenciar Estados que não os adotam, a ponto destes reformularem a ordem jurídica interna, para prever as fórmulas jurídicas internacionais[76].

Nesse sentido, a proteção da confiança e a segurança jurídica – e os princípios processuais por elas implicados - terminam por conduzir à adoção disseminada no mundo de princípios, como o devido processo legal, a coisa julgada, a separação dos poderes etc., até porque se propugna que os juízes nacionais se tornem juízes internacionais em uma jurisdição internacional eficaz[77].

Em verdade, este é o ponto mais falho do sistema jurídico internacional, a falta de uma jurisdição internacional eficaz, que, de fato, tenha o homem como o principal sujeito (autor), pois é ele que sofre as maiores violações em seus direitos, que são tidos como internacionais, e somente com a vinculação jurídica dos juízes dos Estados ao sistema internacional, na aplicação do Direito Internacional, seria possível cumprir este desiderato, que, parcialmente, já está sendo alcançado em grande porção da Europa, Estados Unidos, Canadá, América Latina e alguns países da Oceania, Ásia e África.

     Trata-se, em suma, de garantir-se o acesso à justiça: “todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei” (art. VIII da DUDH). Na Carta das Nações Unidas, no Capítulo que trata da Cooperação Internacional Econômica e Social  (IX), está previsto que, baseados no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião (art. 55, “c”). Para a realização desse propósito, todos os membros da Organização das Nações Unidas “se comprometem a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente” (art. 56 da Carta das Nações Unidas).

     Não resta dúvida que sem acesso à jurisdição[78] não há garantia de direitos. Em verdade, o acesso à jurisdição é um dos mais importantes direitos fundamentais, assim definido em várias Constituições democráticas[79] e na própria DUDH, como acima transcrito. Cappelletti e Garth afirmam que a ausência de mecanismos para a efetiva reivindicação de direitos destitui estes direitos de sentido: “O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos”. Em verdade, o acesso à justiça é direito humano de primeira geração, assim previsto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seu art. 16, ao definir a separação dos poderes como fundamento necessário para a existência de Constituição que dê significação a uma sociedade como verdadeiramente livre. O Judiciário (conjunto de órgãos que presta a jurisdição) deve ser de forma tal que coíba o arbítrio do próprio Estado e garanta ao cidadão os seus direitos em caso de violação, mesmo que essa seja praticada pelo ente estatal.

     Bem definido nos Estados democráticos, o acesso à justiça ainda é restrito no plano internacional. Faz-se necessário, em face da soberania dos Estados, para que este direito humano de primeira geração seja conquistado no plano internacional, que se tenha como fundamento o chamado princípio da cooperação, já mencionado acima, mas que será abordado, com mais vagar, a seguir, com nuances mais específicas.

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Sobre o autor
Raimundo Itamar Lemos Fernandes Júnior

Juiz Titular da 16ª Vara do Trabalho de Belém. Professor da Especialização em Direito Processual e do Trabalho da UNAMA. Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito pela UNAMA. Ex-juiz Cooperador do TRT da 8ª Região (Rede Nacional de Cooperação Judiciária do CNJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JÚNIOR, Raimundo Itamar Lemos Fernandes. Cooperação judiciária: passo fundante para a jurisdição internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4594, 29 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46128. Acesso em: 26 abr. 2024.

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