O Direito e o seu caráter pacificador

28/01/2016 às 12:22
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Este artigo trata da influência que o direito traz para a sociedade, levando em consideração seu aspecto pacificador e coercitivo. Analisa a constante interação entre os fenômenos sociais e as normas advindas do Estado, analisando o tema dialeticamente.

Nas fases mais remotas e primitivas da civilização não existia a figura do Estado para garantir o cumprimento do direito e aquele que desejasse satisfazer sua pretensão (suas vontades), o fazia de sua própria forma, através da vingança privada. Os conflitos existentes entre os indivíduos eram resolvidos por eles mesmos. 
Ao ato de praticar justiça com as próprias mãos deu-se o nome de autotutela (autoproteção). Aquele que fosse mais forte vencia determinado conflito, pois não existia alguém imparcial para dizer o direito no caso concreto.
Com o surgimento do Estado, este passou a ditar regras, as quais foram criadas para estabelecer ordem dentro da sociedade. Dessa forma, ao conjunto de regras e princípios impostos pelo Estado para regular a vida social podemos denominar Direito.
Assim, atualmente, somente ao Estado é dado estabelecer as normas jurídicas que terão aplicação em toda a sociedade, não podendo os indivíduos realizarem justiça com as próprias mãos. Isso está expressamente previsto no nosso Código Penal, no artigo 345, que preceitua:
Exercício arbitrário das próprias razões
Art. 345. Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite.
Pena: detenção de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.
Isso quer dizer que em regra, é crime praticar justiça pelas próprias mãos. Embora haja tal proibição, cabe mencionar que não raro acompanhamos nos noticiários policiais casos em que a população se revolta contra pessoas que cometem delitos e realizam verdadeiros linchamentos, praticando atos brutais. Tais atitudes acontecem porque o povo vem perdendo a crença nos poderes públicos, diante de tanta impunidade e da fragilidade e brecha da lei.
No Brasil, por exemplo, se alguém pratica um roubo (popularmente chamado de assalto), mas sua ficha criminal é limpa, ou seja, é primário e possui bons antecedentes, geralmente o Juiz lhe concede o direito de responder ao processo em liberdade. Desse modo, muitas vezes, embora preso em flagrante delito, o mesmo não fica encarcerado nem mesmo 24 horas, pois logo é solto e acaba delinquindo.
Essa fragilidade acaba levando a população a não acreditar nos poderes públicos. Demais disso, a justiça brasileira é muito lenta (morosa), e um processo judicial leva anos para ser solucionado. Para evitar que um indivíduo passe anos preso sem que tenha sido julgado, é que muitas vezes os próprios juízes são obrigados a ordenar a liberdade provisória dos presos, isso porque vigora no sistema constitucional o princípio da presunção de inocência, que significa que ninguém será considerado culpado antes de uma sentença penal condenatória.
Se ninguém pode ser tratado como culpado antes de uma sentença penal condenatória, transitada em julgado (sentença que não cabe mais recurso) não se pode admitir que o Estado mantenha um indivíduo preso provisoriamente por muito tempo, sem que se tenha contra ele um pronunciamento judicial definitivo declarando-o culpado, pois isso consistiria em verdadeira antecipação de pena, que é proibido.
Esse é o argumento utilizado pelos Advogados e Defensores Públicos para conseguirem a liberdade provisória de seus assistidos. Enquanto o Estado não aparelhar sua justiça de Juízes e servidores, bem como material suficiente para realização de julgamentos com celeridade, são essas situações que farão parte de nosso dia a dia. 
Mas retomando o tema da proibição da prática da justiça com as próprias mãos, pois o Estado é monopolizador da jurisdição, cabe frisar que o direito surgiu justamente para evitar o conflito direto entre as pessoas. O direito tem a função de pacificar a sociedade, dirimindo os conflitos. 
No entanto, ao mesmo tempo em que busca a pacificação social, o direito é imposto através do uso da força. Trata-se do que denominamos de coercibilidade. Esta é a possibilidade que o Estado tem de utilizar a força para fazer prevalecer as normas jurídicas, limitando a ação dos indivíduos, realizando assim o controle social.
Conforme alhures demonstrado, sem a imposição, sem o uso da força, não conseguiria o direito possuir plena efetividade. Isso porque se ficassem as normas jurídicas ao puro arbítrio das pessoas, as leis acabariam não sendo cumpridas, pois cada indivíduo teria a liberdade de escolher se cumpre ou não os preceitos normativos. 
O descumprimento da norma seria algo inevitável pois é inerente ao ser humano querer ou exercer a sua liberdade. De fato, ninguém deseja ficar preso à regras. Todos queremos ser livres, logo se houvesse a opção em se submeter à lei ou não, a resposta negativa seria inevitavelmente a escolha dos indivíduos.
Também, é preciso frisar que a sociedade e o direito convivem através de uma influência mútua. Não há sociedade sem o direito, assim como inexiste direito sem a sociedade.
A título de exemplo, imaginemos uma ilha deserta, sem qualquer habitante, somente ocupada pela natureza. Nesse lugar seria necessária a existência de normas jurídicas para regularem a vida natural? A resposta só pode ser negativa. No entanto, se pessoas forem morar nessa ilha e constituírem uma sociedade, com certeza será necessária a presença de normas jurídicas, pois passou a atuar naquele ambiente o mundo cultural, das ideias, com a presença humana.
Nesse último caso, deve ser estabelecida ordem, controle sobre os atos das pessoas, enfim, regulamentação sobre a vida social e isso se faz através do direito. Mas cabe frisar, o direito não é a única forma de controle social, temos por exemplo a religião, a moral, as normas de trato social ou de etiqueta, que são bastante estudados pela filosofia.
Importante citar alguns exemplos de como a sociedade influencia o direito. Ora, há alguns anos atrás quem poderia imaginar a permissão para se realizar casamento de pessoas do mesmo sexo? Quem podia imaginar a permissão para que pessoas do mesmo sexo adotassem crianças? 
Isso hoje é permitido e ocorre porque a sociedade passou a reclamar dos poderes públicos o reconhecimento das aludidas relações e o direito teve que tutelar.
Outrossim, o adultério, crime que era previsto no artigo 240 do Código Penal, foi revogado em 2005, através da lei 11.106/2005. Isso aconteceu porque a sociedade não mais tolerou que o Estado punisse criminalmente a conduta, sendo apenas passível de indenização na esfera cível.
Esses e tantos outros exemplos, como também é o caso da lei Maria da Penha e da lei dos crimes virtuais, demonstram que a sociedade exerce direta e profunda influência nas normas jurídicas e estas por sua vez influenciam a sociedade, pois são postas e impostas sobre os indivíduos, para regular as relações sociais.
Porém, embora existindo uma ampla legislação sobre os diversos aspectos da vida, os indivíduos não cessam de praticar ilicitudes. É o caso do crime de homicídio, que no nosso país cada vez mais vem aumentando. Também os casos de violência doméstica, que mesmo com uma lei bastante rígida, continua a aterrorizar a vida de inúmeras famílias.
Por último, cabe aduzir que apesar de constantemente descumprido, ressalte-se que a sociedade não sobrevive sem a presença do direito, pois dentre as formas de controle social existentes, é o único capaz de atuar sobre a liberdade do indivíduos, uma vez que dotado de coercibilidade e é justamente essa obrigatoriedade que regula e limita as ações dos indivíduos, estabelecendo o equilíbrio social.
“Ubi societas, ibi jus”

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Sobre o autor
Herberth dos Santos Silva

Bacharel em Direito pela FACID-Teresina-PI, especialista em direito penal e processual penal, Advogado (licenciado), atualmente exercendo a função de Assessor Jurídico do TJ/PI (5ª Vara de Família e Sucessões) e professor de Noções de Direito, Política e Cidadania no Colégio CEV.

Informações sobre o texto

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