Sumário: 1 - Introdução. 2 - Contexto Histórico da Gestão de Recursos Hídricos no Brasil. 3 - Histórico da Proteção Jurídica das Águas no Brasil. 4 - O Regime Jurídico dos Recursos Hídricos. 5 - Conclusão. 6 - Bibliografia.
1. Introdução
Embora a degradação dos recursos naturais tenha se intensificado a partir da revolução industrial e do aperfeiçoamento dos modos de produção, registra-se que a má utilização ou mesmo a passividade em relação a degradação ambiental no Brasil remonta ao descobrimento.
Como veremos adiante, a evolução legal da proteção aos recursos naturais e em particular dos recursos hídricos no Brasil pode ser dividida em três momentos distintos que vão desde a chegada dos portugueses no Brasil em 1500 até a fase atual da gestão, quando ainda tenta-se implementar de forma satisfatória a Política Nacional de Recursos Hídricos consagrada na Lei 9.433/97.
Registre-se que, de acordo com Almeida (2010) e Farias (2009), nas fases que marcam o histórico legal da proteção aos recursos naturais e da gestão de recursos hídricos no Brasil não se pode dizer que os fatos históricos ocorreram de forma cronológica, visto que, não se tem exatamente o momento onde uma começou ou terminou, isto é, os momentos se confundem.
Assim, trata o presente artigo de caracterizar, em linhas gerais, o histórico evolutivo da gestão de recursos hídricos no Brasil a partir de fatos relativos à história ambiental. Está dividido em duas partes: a primeira trata da gestão de águas de um modo mais geral e a segunda, trata especificamente do histórico da gestão de águas no Brasil enfocando os três momentos históricos citados.
2. Contexto Histórico da gestão de recursos hídricos no brasil
Os primeiros sistemas de gestão de águas de que se tem registro ocorreram na Roma Antiga quando os romanos deixaram de retirar água diretamente do Rio Tigre e construíram inicialmente o aqueduto de Acqua Appia, passando nos anos seguintes a construção de outros aquedutos, o que resultou em uma rede hidráulica para abastecimento daquela cidade. Nas situações de crise de abastecimento de água, acredita-se que havia os caçadores de águas responsáveis pela procura de água em quantidade e de qualidade para o abastecimento hídrico. E assim, de acordo com a demanda, os romanos foram desenvolvendo sistemas de organização dos recursos hídricos.
Em 97 a. C. Julius Frontinus VI foi nomeado pelo imperador para o cargo de Comissário de Águas de Roma, passando a ser o responsável por gerir um complexo sistema de captação de água em fontes afastadas para distribuição em reservatórios existentes ao longo da cidade. Já naquela época,
“Os usos da água eram divididos em classes: nomine Caesari, privatis e usus publici. A classe usus publici era subdividida em castra, opera publica, munera e lacus. As águas nomine caesari destinavam-se ao palácio imperial e aos prédios diretamente sob o controle do imperador. As águas privati destinavam-se a particulares por concessão do Imperador (beneficio principis) e estavam sujeitas ao pagamento de uma taxa. As águas usus publici, destinavam-se a prédios públicos, a balneários, instalações militares e para-militares, fontes ornamentais e reservas de emergência” (CAMPOS, 2001, p. 21).
Para este autor, muitas estruturas ainda utilizadas na modernidade utilizam técnicas similares ao sistema de gestão de água observados na antiguidade romana. No período pós Idade Média criou-se a cultura de pavor à água e inexistência de qualquer hábito de higiene; a água praticamente foi substituída por perfumes. Nesse período não houve desenvolvimento de nenhuma técnica de gestão de recursos hídricos, situação essa que veio a modificar-se apenas no período posterior a Revolução Industrial.
Com o desenvolvimento industrial e a conseqüente exploração dos diversos recursos naturais aliados ao crescimento e concentração das populações nas cidades, bem como a falta de um sistema de esgotamento sanitário adequado poluiu sobremaneira os reservatórios de água, diminuindo a oferta desse recurso.
Buscando resolver ou mesmo minimizar o problema, desenvolveu-se um sistema de gestão do abastecimento das cidades a partir da captação das águas brutas diretamente dos reservatórios e sua adução aos pontos de consumo, tratamento das águas com o objetivo de melhorar suas características tornando-as próprias para o consumo, distribuição das águas tratadas, coleta de esgoto através de uma rede de tubulações e tratamento do esgoto para ser recebido em condições adequadas pelo receptor final.
Mais tarde, a partir das discussões em torno da preservação dos recursos naturais e da construção da noção de desenvolvimento sustentável, passou-se a discutir de forma mais ampla a necessidade de práticas aptas a garantir a sustentabilidade do recurso natural “água”.
3. histórico da proteção jurídica das águas no brasil
Para Antonio Vasconcelos e Benjamim (1999) a história da legislação ambiental no Brasil pode ser dividida em três fases ou momentos distintos: uma fase da exploração desregrada, a fase fragmentária e a fase holística.
Pela classificação trazida por Benjamim, a primeira fase, que é de exploração desregrada, ocorre entre o descobrimento do Brasil e os primeiros anos do século XX. Neste período registra-se a forte influência portuguesa para a formação da história ambiental brasileira e que teve repercussão modelo de pensamento ecológico concebido e existente ainda hoje no Brasil. A segunda fase, chamada por Benjamim (1999) de fragmentária, tem como marco a difusão mundial do pensamento ecológico. Este mesmo autor defende que a terceira fase denomina-se holística e caracteriza-se pela visão do meio ambiente como um conjunto integrado.
“Nesta fase, houve a solidificação do pensamento jurídico ambiental no sentido de preservação do meio ambiente como um sistema ecológico integrado (onde as partes – os bens ambientais – são protegidas a partir do todo) e com autonomia valorativa (por ser, em si mesmo, um bem jurídico). O bem jurídico, cuja tutela é visada, engloba um complexo conjunto de inter-relações, onde a proteção isolada de uma de suas parcelas não impede o desequilíbrio do todo e sua conseqüente degradação” (ALMEIDA, 2002).
Talden Farias (2009) aponta que provavelmente seja mais adequado tratar esses momentos históricos como fase fragmentária, fase setorial e fase holística visto que na fase denominada por Benjamim de “exploração desregrada” existe uma legislação esparsa e na fase fragmentária a legislação ambiental se apresenta com um viés econômico. Os dois autores concordam quanto a terceira fase como sendo holística. Não obstante, adota-se aqui a classificação oferecida por Farias (2009) dividindo os momentos históricos em fase fragmentária, setorial e holística, cuja descrição se faz de forma pormenorizada a seguir.
3.1 Primeira Fase: Fragmentária
Nesta primeira fase que vai do descobrimento do Brasil até 1930, não havia qualquer preocupação ou interesse com o meio ambiente, exceto pela proteção a alguns recursos naturais, dentre os quais não se incluía a proteção à água. As normas jurídicas vigentes tinham o único objetivo de assegurar a preservação dos recursos que tinham valor econômico de interesse para a expansão ultramarina, a exemplo do pau-brasil e outras riquezas florestais (FARIAS, 2009).
Por volta de 1534 o rei de Portugal enviou ao Brasil uma esquadra liderada por Martim Afonso de Souza. Esta expedição tinha o objetivo de proteger o comércio de pau-brasil dos corsários franceses e de tentar encontrar ouro nas terras recém-descobertas. Foram criadas as vilas de São Vicente, Santo Antônio da Borda do Campo e São Paulo. Entretanto, essas expedições além de não obterem o sucesso esperado tinham um alto custo para a Coroa Portuguesa. Assim, diante desse fracasso, o rei português resolveu conceder direitos de propriedade das faixas de terras na costa brasileira, iniciando a destruição da mata atlântica e demonstrando o seu interesse meramente utilitarista cujo objetivo era o de exaurir os recursos naturais existentes na terra recém-descoberta, com o intuito de fomentar a economia da metrópole e concebendo a ocupação indígena como um dos componentes integrantes de sua propriedade.
Nesse sentido, vejamos o registro de uma carta de foral do rei d. João III confirmando a cessão de uma capitania de 80 léguas na costa do Brasil ao capitão Pero Lopes de Souza contendo uma das regras a serem seguidas,
“Uma das regras determina que todo o pau-brasil, especiarias e drogarias dessa capitania pertencem à Coroa e que, caso alguém retirar ou negociar algum desses gêneros, a pena será a perda de toda a fazenda para a Coroa, além do degredo definitivo para a ilha de São Tomé. Acompanha uma outra carta, nos mesmos termos, dirigida a Martim Afonso de Souza” (Disponível em: http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=838&sid=104.” Acesso em: 27 de março de 2010).
Na época do descobrimento, as “Ordenações Afonsinas” eram a legislação vigente em Portugal. As Ordenações Afonsinas em poucos dispositivos tratavam de questões ambientais e não há sequer menção a proteção jurídica das águas.
Já nas Ordenações Manuelinas, editadas em 1521, a legislação ambiental teve previsão mais detalhada “a exemplo da proibição da comercialização das colméias, sem a preservação das abelhas ou da caça dos animais como coelhos, lebres e perdizes, com instrumentos que pudessem denotar crueldade” (FARIAS, 2009, p. 28) ao introduzir o conceito de zoneamento ambiental, a teoria da reparação do dano ecológico determinando o valor da indenização de acordo com a valia da árvore (ALMEIDA, 2002).
As Ordenações Filipinas, editadas quando o Brasil estava sob o domínio espanhol, foram as primeiras a trazer algum dispositivo que encontrasse relação com a proteção das águas quando ao fornecer o conceito de poluição, “proibiu a qualquer pessoa jogar material que pudesse matar os peixes e sua criação ou sujar as águas dos rios e das lagoas.” (ALMEIDA, 2002).
No fim do século XVII, o Governador-Geral, representante da Coroa Portuguesa no Brasil Colônia, assinou um Regimento contendo diversos dispositivos de natureza ambiental acerca de distribuição de terras, extração da madeira do pau-brasil, exploração de minas de ouro, prata e de salitre, pesca de baleias (ALMEIDA, 2002).
No final do Século XVIII foram proibidas sesmarias nas terras litorâneas aos mares e rios, onde houvesse madeira de construção, cabendo à Coroa Portuguesa a propriedade das terras não ocupadas. Importante ressaltar que são desse período os primeiros dispositivos relativos a proteção florestal que hoje denominamos de “áreas de preservação permanente” pois nesse final de século XVIII a Coroa mandou expedir cartas régias aos governadores das capitanias ordenando a proteção da vegetação localizada perto dos mares ou nas margens dos rios, a demarcação e reforma da administração dos terrenos das matas, a criação de normas para evitar procedimentos arbitrários sobre o corte de árvores nas propriedades. Essas limitações impostas pelo Estado, embora tivessem uma razão meramente econômica, indiretamente protegiam os recursos hídricos através da proteção da vegetação existentes no entorno dos reservatórios. O documento datado de 17 de novembro de 1805 cuja ementa se descreve abaixo, trata-se de ofício enviado pelo então governador da capitania de Pernambuco,
“[...] no qual expressa sua preocupação com a devastação das matas de pau-brasil, que ele credita ao contrabando, à expansão das lavouras de algodão e, principalmente, ao não cumprimento das leis que controlavam essas atividades, citando como exemplo as cartas de foral descumpridas. Para ajudar na solução desse problema, enviou um projeto com medidas para preservar o pouco de mata que ainda restava, dividido em três partes: 1º, Proibir o corte do pau-brasil nas capitanias de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande sob pena de três meses de prisão e multa de cinqüenta a quatrocentos mil réis. Caso o réu não tivesse condição de arcar com a multa, a pena seria de um a dois anos de reclusão na ilha de Fernando de Noronha. 2º, Ordenar ao juiz conservador das matas que iniciasse, imediatamente, a demarcação e o tombamento das árvores de pau-brasil. 3º, Devido a pouca oferta e à distância das matas de pau-brasil, ele sugere que, ao invés de cortar e transportar as toras, seja feita a extração apenas da tinta nas próprias matas.” (Disponível em: http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=838&sid=104. Acesso em: 27 de março de 2010).
No entanto, segundo Almeida (2002) a legislação suplementar extravagante as normas jurídicas nesse período eram editadas várias vezes e versando sobre o mesmo assunto o que foi, certamente, um dos motivos pelos quais era tão inoperante, além de ser esparsa, confusa e mal sistematizada o que, a grosso modo, não difere muito da legislação ambiental existente até os dias atuais. Não obtendo a coação desejada com a edição da norma jurídica, a autoridade legal lançava mão da mesma norma, porém com outra terminologia legislativa, agravando as penas pecuniária e corporal, esta última ligada à pessoa do infrator e à sua respectiva classe social.
Com a independência do Brasil e a promulgação da Constituição Imperial em 1824 foi determinada a edição de um Código Civil e um Criminal porque apesar da independência do reino de Portugal, as Ordenações Filipinas ainda vigoravam devido à inexistência de uma legislação brasileira.
A Constituição Imperial não trouxe qualquer dispositivo sobre a tutela ambiental, mas o Código Penal de 1890 trazia em seu texto dispositivo acerca da proteção das águas. O Art. 162 daquele diploma legal determinava que corromper ou conspurcar a água potável de uso comum ou particular, tornando-a impossível de beber ou nociva à saúde. Pena: prisão celular de 1 (um) a 3 (três) anos.
A constituição republicana de 1891 também não trouxe qualquer dispositivo sobre questões relativas aos recursos hídricos. Nesta fase fragmentária verifica-se que não havia uma preocupação direta com os recursos naturais, mas apenas com alguns de interesse econômico a exemplo do pau-brasil.
3.2 Segunda Fase: Setorial
A fase setorial se destaca pelo inicio do controle legal das atividades exploratórias, mas ainda sem qualquer intuito preservacionista.
O Código Civil de 1916[1], embora fizesse menção à água trouxe regulação do direito de uso desse recurso apenas no que diz respeito ao direito de vizinhança e na utilização da água como um bem de domínio privado e de valor econômico limitado. Segundo esse diploma legal, a água poderia ser utilizada desde que fossem resguardados os direitos de vizinhança.
A Constituição Federal de 1934 trouxe em seu art. 5º, inciso XIX, alínea “j” dispositivos constitucionais de cunho ambiental dispondo que “compete privativamente à União: [..] XIX - legislar sobre [...] j) bens do domínio federal, riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia hidrelétrica, florestas, caça e pesca e a sua exploração”.
Verifica-se que o interesse constitucional por tutelar a gestão dos recursos hídricos deu-se apenas a partir do crescimento da demanda por energia elétrica, pois estabeleceu no artigo 119 que o aproveitamento industrial das águas e da energia hidráulica dependeria de autorização ou concessão federal, na forma da lei.
Ato contínuo, foi editado o Decreto 24.643 de 10 de julho de 1934, denominado Código de Águas, que definiu os tipos de água, critérios de aproveitamento além de dispor sobre a contaminação dos corpos hídricos e foi o primeiro diploma legal que disciplinou o aproveitamento industrial das águas no Brasil. No entanto, esse Código atribuía competência ao Ministério da Agricultura para a tutela dos recursos hídricos, o que deixou claro que havia a preocupação eminentemente agrícola.
Aponta Milaré (2007) que o Código de Águas atendendo ao que dispunha a Constituição supracitada, foi editado com vistas a possibilitar o aproveitamento industrial das águas e, sobretudo, da energia hidráulica. Naquela oportunidade, o Brasil deixava de ser um país essencialmente agrícola e a indústria expandia-se, e era necessário disciplinar os serviços públicos de luz e força, até então concedidos por Municípios e por Estados.
No tocante ao domínio das águas o Código de 1934 classificava as águas como águas públicas de uso comum, águas comuns e águas particulares. As águas públicas de uso comum eram os mares territoriais, inclusive golfos, baías, enseadas e portos, as águas interiores correntes ou dormentes, navegáveis ou flutuáveis, as águas correntes ou braços de quaisquer correntes públicas, que, desembocando em outra, tornam-na navegável ou flutuável e as fontes e reservatórios públicos.
As águas públicas eram de domínio da União, dos Estados e dos Municípios. Eram municipais as águas contidas nos seus limites, estaduais as que serviam de limite a dois ou mais Municípios ou percorressem territórios de dois ou mais Municípios e da União as águas marítimas, as situadas nos antigos Territórios e as que servissem de limites de Estados ou do País, ou proviessem ou se dirigissem de um Estado para outro.
As águas comuns eram as correntes não navegáveis, nem flutuáveis. Essas águas não eram objeto de domínio, mas consideradas bens de todos. Águas públicas eram as águas navegáveis ou flutuáveis, o que explica a ênfase dada pelo Código de Águas à navegação. As demais eram comuns, sem dono, ou como usualmente denominadas, res nullius; poucas e insignificantes eram as águas particulares, que eram as nascentes e demais águas contidas em terrenos particulares que não fossem comuns ou públicas (MILARÉ, 2002).
O Código de Águas também dispunha sobre águas subterrâneas, mas, posteriormente, essa matéria ficou disciplinada no Código de Mineração (Dec.-lei 227, de 28.02.1967) que classificou as águas subterrâneas como jazida mineraria e determinou que seriam regidas por lei especial.
A implementação do Código de Águas no que diz respeito às águas de domínio da União ficou sob a responsabilidade do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica –DNAEE, compartilhada com o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas –DNOCS nas áreas sujeitas ao flagelo das secas. Nas águas de domínio dos Estados essa competência era exercida com a constituição de órgãos para aplicar o Código de Águas, e seus atos mais importantes eram as autorizações para a derivação de águas e as concessões para o aproveitamento de energia hidrelétrica, sendo que estas eram de exclusiva competência da União. A gestão das águas limitava-se à gestão de sua quantidade, sem preocupação com a sua qualidade.
A Constituição Brasileira de 1937 em nada inovou no tratamento dado as questões relativas aos recursos hídricos apenas repetindo o que dispunha as anteriores no tocante à competência da União para legislar e à exploração econômica das águas. A Constituição de 1946 incluiu nos artigos 34 como bens da União “os lagos e quaisquer correntes de água em terrenos do seu domínio ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limite com outros países ou se estendam a território estrangeiro, e bem assim as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países” e no artigo 35 como bens do Estado “os lagos e rios em terrenos do seu domínio e os que têm nascente e fez no território estadual” (BRASIL, CF 1937).
Embora existissem disposições acerca do tratamento dado aos recursos hídricos, notamos que até aqui não há qualquer intenção de proteção do meio ambiente, permanecendo a preocupação com a competência para explorar economicamente os recursos naturais.
Assim, na falta de disposição legal que amparasse o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o legislador do Código Penal de 1940 associou a proteção aos recursos hídricos com o direito à saúde pois não se podia assegurá-la num ambiente degradado. Dispôs o art. 271 que “corromper ou poluir água potável de uso comum ou particular, tornando-a imprópria para o consumo ou nociva à saúde. Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. Se o crime é culposo – pena: detenção de 2 (dois) meses a 1 (um) ano" (BRASIL, Decreto-Lei 2.848/1940).
3.3 Terceira Fase: Holística
Registra-se que a questão da necessidade de gestão das águas de forma sustentável tomou uma dimensão internacional a partir das discussões do Clube de Roma, criado em 1968, que primeiro preocupou-se com o estabelecimento de critérios para utilização dos recursos hídricos pois até então nada existia nesse sentido.
No entanto, temos como marco da preocupação em torno da preservação dos recursos naturais a Conferência de Estocolmo (1972) que registrou o começo da preocupação do sistema político com as questões ecológicas. Nesta década assistimos à emergência e expansão das agências estatais de meio ambiente, assim como do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e na década seguinte, já aparecem os partidos verdes tendo um expressivo papel na institucionalização das questões ambientais. (LEIS, 1995).
No tocante a gestão de águas especificamente, podemos destacar a Conferência das Nações Unidas sobre Água ocorrida em 1977 em Mar Del Plata, Uruguai, que lançou as bases para a tomada de posição da comunidade internacional em relação aos recursos hídricos, em razão da poluição e pela iminente escassez (VARGAS, 2000).
No Brasil, a Lei 6.938, de 31.08.1981 que disciplinou a Política Nacional do Meio Ambiente e instituiu o Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA, integrado por órgão federais, estaduais e municipais, responsáveis pela proteção ambiental. O órgão superior desse Sistema é o Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, ao qual compete, entre outras atribuições, “estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com vistas ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os hídricos”. No exercício de sua competência, o CONAMA editou a Resolução 020, de 18.06.1986, que inaugurou, no âmbito nacional, a gestão da qualidade das águas.
A Resolução CONAMA 20/1986, recentemente foi revogada pela 357 de 17 de março de 2005; esta última trata da classificação das águas de acordo com suas utilizações e respectivos padrões de qualidade. A Resolução CONAMA 357/2005 classifica as águas doces, salobras e salinas no território nacional, definindo os padrões de qualidade de cada uma dessas classes, segundo os seus usos preponderantes. O enquadramento dos corpos de água nessas classes é feito nos níveis de qualidade que deveriam ter para garantir os usos a que se pretende destiná-los, o que exige um controle de metas visando a atingir, de modo gradual, os objetivos do enquadramento. Os usos definidos nessa Resolução não abrangem todos os usos possíveis das águas, mas apenas os específicos, que exigem água de determinada qualidade (BRASIL, Resolução 357/05 CONAMA). No entanto, por muito tempo, a Resolução 20/1986 foi o instrumento legal utilizado para disciplinar a dinâmica de utilização das águas, até o promulgação da Lei 9.433, de 08 de janeiro de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos.
Com a construção do conceito de Desenvolvimento Sustentável a partir do Relatório Brundtland, o qual discutia o modelo de desenvolvimento econômico pautado apenas na acumulação de capital em detrimento do meio ambiente e continha o modelo de desenvolvimento a ser adotado definindo-o como “aquele que atende às necessidades presentes sem comprometer a capacidade das futuras gerações de prover as suas próprias necessidades.” (BARBOSA, 2007, p. 67).
Com a Constituição Federal de 1988 todas as águas tornaram-se públicas posto que enquanto recursos naturais são bens públicos de uso comum do povo, inclusive as subterrâneas, não mais existindo águas comuns ou particulares. Assim, os antigos proprietários de poços, lagos ou qualquer outro corpo de água passaram à condição de meros detentores dos direitos de uso dos recursos hídricos caso obtenham a necessária outorga prevista em lei.
A Constituição Federal repartiu a gestão de recursos hídricos com a divisão dos domínios das águas entre a União, os Estados e o Distrito Federal, deixando a competência para legislar sob o domínio apenas da União. A CF 1988 também previu em seu artigo 21, XIX a criação do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos – SINGREH. Em 1991 o SINGREH passou pelo processo de regulamentação com o encaminhamento ao Congresso Nacional de projeto de lei dispondo sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SINGREH (BRASIL, Agência Nacional de Águas. Disponível em: http://conjuntura.ana.gov.br/ acesso em: 25 de março de 2010).
No âmbito dos Estados, cada um ficou responsável por disciplinar a gestão de águas com a edição das leis que fossem necessárias. Na Paraíba, por exemplo, a questão ficou disciplinada através da Lei 6.308/96 que tratou da gestão dos recursos hídricos, a Lei 7.779/05 que criou a Agencia Estadual de Águas (AESA) além de outros instrumentos legais que posteriormente modificaram em parte essas leis.
A Constituição Federal ao estabelecer em seu art. 22, inciso IV que caberia privativamente a União legislar sobre águas definiu que apenas ao legislador federal caberia instituir os fundamentos atinentes ao gerenciamento dos recursos hídricos. Assim, apenas a gestão é que é descentralizada e não a competência para legislar, que continua centralizada e nas mãos da União. De acordo com o art. 22, parágrafo único, apenas a edição de uma lei complementar poderá autorizar os Estados a legislarem em matéria de recursos hídricos.
Um aspecto destacado por Edis Milaré (2007, p. 498) refere-se ao fato de que embora a Constituição Federal considere os usos múltiplos das águas ainda permanece a preocupação com o aproveitamento energético dos recursos hídricos visto que o art. 20, parágrafo primeiro daquele diploma legal dispõe que
“É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração” (BRASIL, CF 1988).
Outros dispositivos legais a exemplo do art. 21, XII, alínea “b” da Constituição Federal, também demonstram a preocupação com a exploração energética dos recursos, deixando um pouco de lado a prioridade que deve girar em torno da gestão adequada com vistas a buscar um desenvolvimento sustentável.
Em junho de 1992 ocorreu a ECO-92 quando foi adotada a Agenda 21, documento internacional consistente de um programa de ação em termos de preservação dos recursos naturais mas sem força de norma internacional obrigatória, que estabeleceu que cada país deve se comprometer a refletir, global e localmente, sobre a forma pela qual governo, empresas, organizações não-governamentais e sociedade civil poderiam cooperar na busca de soluções para os problemas sócio-ambientais (MACHADO, 2005).
No tocante aos recursos hídricos, a agenda 21 brasileira dedicou seu capítulo 18 à “Proteção da Qualidade e do Abastecimento dos Recursos Hídricos: Aplicação de Critérios Integrados no Desenvolvimento, Manejo e Uso dos Recursos Hídricos”. Era o primeiro passo na gestão dos recursos hídricos no Brasil.
Registre-se que o estado de São Paulo em 1991, foi o primeiro a possuir uma política de recursos hídricos, que estabeleceu normas de orientação à Política Estadual de Recursos Hídricos bem como ao Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Em seguida, foram editadas as leis estaduais de recursos hídricos os estados do Ceará (1992), Santa Catarina (1994), Rio Grande do Sul (1994), Bahia (1995), Rio Grande do Norte (1996) e Paraíba (1996). O processo de instituição das políticas estaduais de recursos hídricos no Brasil está representado na figura 1 a seguir:
A Figura 1 representa o avanço da instituição das políticas estaduais de recursos hídricos mostrando que nos seis anos após a edição da Lei 9.433/97 diversos estados e o Distrito Federal instituíram suas políticas estaduais de recursos hídricos. Outro ponto a ser destacado é de que o avanço das legislações estaduais ocorreu primeiro em locais onde já eram identificados conflitos relacionados à disponibilidade de água, causados por restrições quantitativas e/ou qualitativas, iniciando-se o processo pelas regiões Sudeste, Sul e Nordeste, expandindo-se posteriormente paras as regiões Centro-Oeste e Norte.
Com a edição da Lei n° 9.433 em janeiro de 1997 instituindo a Política Nacional de Recursos Hídricos e criando o SINGREH, regulamentou-se o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal. Saliente-se que nessa oportunidade, como a maioria das políticas de recursos hídricos estaduais precederam a política nacional, esta foi meramente um reflexo do que muitos Estados já haviam disciplinado.
Já a Figura 2 mostra o avanço da edição de leis estaduais que tomando por base o modelo estabelecido pela Lei 9.433/97 já pautada nos modelos de políticas estaduais que lhe antecederam, estabeleceram as políticas de recursos hídricos no Brasil que lhe sucederam, o que merece uma certa crítica vez que se de um lado contribuiu sob o aspecto de alinhar-se técnica e ideologicamente, de outro, trouxe dificuldades para sua implementação pois cada um dos biomas nacionais tem suas peculiaridades próprias, não havendo como conceber uma política idêntica para Estados como o Amazonas e a Paraíba, por exemplo.
Esta última legislação envolve a implementação de normas internas de gestão e conservação, considerando a água como bem ambiental limitado dotado de valor econômico, assegurando que sua gestão deva sempre proporcionar o uso múltiplo das águas, e estabelecendo a bacia hidrográfica como unidade territorial e a descentralização como tônica dominante para a concretização de Políticas Nacionais de Recursos Hídricos.
A lei 9433/97 impôs a necessidade de serem editadas várias normas regulamentadoras, o que, em grande parte, ainda não ocorreu. No entanto, a sua edição alterou profundamente a disciplina da aplicação do Código de Águas que inclusive, teve muitos dos seus dispositivos revogados.
Como parte da regulamentação necessária à execução da Política Nacional de Recursos Hídricos, foi promulgada a Lei 9.984, de 17.07.2000, que criou a Agência Nacional de Águas – ANA, como entidade federal de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e integrante do Sistema Nacional de Recursos Hídricos. E, por sua vez, o Dec. 3.692, de 19.12.2000, que contempla a estrutura organizacional e operacional da ANA.
Em fevereiro de 2002 durante o II Fórum Mundial Social, ocorreu também o seminário “Um Mundo Sustentável é Possível” em Porto Alegre, Brasil, discutiu também questões essenciais para a proteção dos recursos hídricos. Em abril de 2002 ocorreu o “Dialogo entre Tomadores de Decisão sobre Gestão Sustentável da Água – prioridades para estruturas políticas e melhores práticas” na Suíça.
Nesse último, foram apresentadas propostas pelas organizações não-governamentais participantes com foco na bacia hidrográfica e na proteção dos recursos hídricos e o seu acesso as populações mais carentes tendo em vista ser o acesso à água um direito fundamental do ser humano.
4. conclusão
Vemos que a evolução legal da gestão dos recursos hídricos no Brasil pode ser dividida em três momentos distintos que vão desde a chegada dos portugueses no Brasil em 1500 até a fase atual da gestão, quando ainda tenta-se implementar de forma satisfatória a Política Nacional de Recursos Hídricos.
A primeira fase que vai do descobrimento do Brasil até 1930, não havia qualquer preocupação ou interesse com o meio ambiente, exceto pela proteção a alguns recursos naturais, dentre os quais não se incluía a proteção à água. A fase setorial se destaca pelo inicio do controle legal das atividades exploratórias, mas ainda sem qualquer intuito preservacionista. A fase holística inaugura com a visão sobre a necessidade de gestão dos recursos naturais de forma sustentável e em particular, a necessidade de gestão de águas através do estabelecimento de critérios para utilização dos recursos hídricos. Nesse sentido, muitas ações foram empreendidas no sentido de gerir o recurso água, mas sempre a partir de um enfoque econômico.
Com efeito, a partir da analise histórica da evolução legislativa referente a historia ambiental brasileira no tocante a gestão de águas verificamos que o que hoje ainda ocorre dentro do sistema legislativo brasileiro é fruto de um modo de legislar pautado na cultura de que os recursos naturais devem servir ao interesse econômico de modo que devem ser buscados meios de promoção da exploração dos recursos para servirem ao crescimento econômico.
Esse modo de gerir os recursos, talvez por conveniência ou acomodação, se fez presente após a independência do Brasil, passando pela independência da Colônia, do nascimento das primeiras previsões legais sobre e gestão de recursos e o surgimento do Direito Ambiental como ramo autônomo do Direito, chegando aos dias atuais com muitas inovações no tocante a técnica legislativa, mas com algumas deficiências no tocante a aplicabilidade.
É fato que as realizações atuais do Brasil são significativas na área de gestão dos recursos hídricos e isso o tem colocado como inovador nessa matéria. Em termos de legislação sobre gestão dos recursos hídricos, o Brasil tem um dos regimes jurídicos mais avançados do mundo.
O atual sistema jurídico de gerenciamento dos recursos hídricos envolve a implementação de normas internas de gestão e conservação considerando a água como bem ambiental limitado e dotado de valor econômico, assegurando que sua gestão deva sempre proporcionar o uso múltiplo das águas, e estabelecendo a bacia hidrográfica como unidade territorial e a descentralização como tônica dominante para a concretização de Políticas Nacionais de Recursos Hídricos.
No entanto, embora em termos legais tenhamos avançado muito, na prática, a situação é bem diferente. Há enorme dificuldade em conceber a Política de Recursos Hídricos conforme o texto em vigor.
No tocante a gestão de recursos a nível estadual, um dos prováveis motivos para tal dificuldade é a questão do entrave posto pelo texto constitucional em amarrar a competência legislativa à União, permitindo apenas a gestão por parte dos Estados. Tal entrave acaba por deixar os Estados de mãos atadas diante das necessidades particulares de cada um; a gestão de águas deveria estar adequada a partir das condições de cada bioma, ou seja, não se pode conceber um único modelo de gestão para o semi-árido e para às áreas pertencentes ao bioma mata atlântica ou à região amazônica, ou mesmo ao cerrado, pois cada um tem condições ambientais diversas.
Além disso, a quantidade de normas e a confusão existente na aplicação destas, além da comum falta de aptidão técnica por boa parte dos órgãos administrativos são outros fatores condicionantes para uma aplicação satisfatória do que dispõe o texto legal.
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