Fundamentos dos contratos empresariais e das declarações unilaterais da vontade

14/02/2016 às 15:23
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A necessidade de formulação de teorias que atendam às especificidades de cada relação contratual.

1. Dos contratos plurilaterais

A distinção entre o ato complexo e o contrato assentada pela doutrina pauta­se na análise do interesse das partes. Enquanto no contrato os interesses das partes são contrapostos, no ato complexo são idênticos.

Partindo da distinção supracitada, ao analisar a sociedade, Ascarelli constata que ainda que a constituição seja marcada por interesses diversos dos sócios, a realização é caracterizada pela coexistência do interesse comum com interesses particulares.

A permanência, durante toda a sociedade, de interesses particulares permite entendê­la não como ato complexo, mas contrato. Ao mesmo tempo, a existência concomitante de interesses distintos e comuns pode ser entendida como traço diferenciador entre o contrato de sociedade e o contrato de permuta.

Ascarelli critica a aplicação de uma teoria geral dos contratos, que generaliza regras peculiares dos contratos de permuta aos contratos de sociedade. Para tanto, cita a teoria de Kuntze, que coloca em uma mesma categoria (i) o ato da constituição de uma sociedade, (ii) a manifestação de vontade pela qual vários sujeitos assumem uma vontade única em um negócio jurídico e (iii) a concorrência da manifestação de vontade do curador e do incapaz na realização de negócio jurídico.

Seguindo sua análise por teorias, Ascarelli cita Gierke, cuja teoria baseia­se no entendimento de que no momento da constituição da sociedade surgiria uma nova pessoa jurídica.

Para o autor, ocorre uma superestima do momento da constituição, a tal ponto que se passa a entendê­lo como um ato jurídico de natureza especial, de fundação. O erro dessa teoria, segundo ele, revela­se na profunda distinção que os adeptos dessa teoria são obrigados a fazer entre as sociedades que são pessoas jurídicas e as que não o são.

O autor afirma que a constituição da sociedade, no limite, objetiva distinguir os interesses sociais e os interesses individuais dos sócios. A personalidade jurídica atribuída a essas sociedades seria, portanto, mero instrumento de unificação da coletividade dos sócios.

Igualmente improcedente parece para o autor a teoria que, ao tentar conciliar as diversas tendências existentes, vê na constituição da sociedade (i) um negócio jurídico que seria ao mesmo tempo contrato (baseado na relação entre os sócios) e ato unilateral (baseado na relação de todos os sócios) ou (ii) dois atos simultâneos (um contrato e um ato unilateral). Para Ascarelli, apesar de essa teoria partir de percepções corretas – existência de semelhanças e distinções com relação aos demais tipos de contrato ­, chega a uma conclusão inaceitável: um único ato, simultaneamente, com caráter de contrato e ato unilateral, duas naturezas diversas e contraditórias.

Para a doutrina tradicional, a constituição da sociedade é entendida como um contrato. A crítica a essa teoria parte justamente da existência de certas peculiaridades no contrato de sociedade. Tais peculiaridades demonstram, para o autor, que há uma distinção entre contratos de sociedade e contratos de permuta que permite identificar a subespécie “contratos plurilaterais”, que teria como subcategoria mais importante, porém não a única, os contratos de sociedade.

As distinções apontadas pelo autor são as seguintes: (i) admissão da participação de mais de duas partes no contrato; (ii) a existência de direitos e obrigações a todas as partes; (iii) a existência de obrigações de uma parte para com todas as demais; (iv) o aperfeiçoamento do contrato através de subscrições, que não constituem contratos preliminares.

Como decorrência lógica do fato de as partes se obrigarem entre si, os contratos plurilaterais são contratos com comunhão de fim.

O conceito de fim adquire autonomia nesses contratos, ficando configurado a partir do caso concreto. Cada contrato terá, portanto, um fim, dependendo do caso concreto, sendo necessário examinar a licitude e a possibilidade de tal acordo. A finalidade do contrato será, portanto, a realização de uma atividade posterior, e com isso não há que se falar em extinção do mesmo com o mero adimplemento por parte dos sócios. Há, logo, um prazo de duração um tanto quanto peculiar.

Fica clara, com isso, mais uma distinção entre os contratos de permuta e os contratos plurilaterais: enquanto os primeiros destinam­se unicamente à distribuição de bens, sendo essa a única finalidade, disciplinada pelo próprio contrato, os últimos disciplinam a utilização do bem, que deverá ser, posteriormente, utilizado para a realização da atividade, ou seja, para a realização da finalidade do contrato plurilateral (função instrumental).

As características previamente expostas também acabam por explicar o motivo pelo qual se pode constituir condomínio entre os sócios. Esse condomínio seria um fundo comum, compartilhado entre eles, cuja utilização visa à realização da finalidade comum estipulada no contrato plurilateral, ou seja, a realização dessa atividade ulterior.

O direito de cada um dos sócios sempre estará relacionado com a realização da supracitada atividade ulterior, que figura como finalidade comum. O exemplo mais típico de direito das partes seria o recebimento de lucros decorrentes da realização de uma atividade.

Deve­se ressaltar que todos os sócios devem gozar de direitos do mesmo "tipo". Isso não significa que seus direitos sejam idênticos. Embora a quantidade possa ser diferenciada, a diferenciação dos direitos não pode se dar "qualitativamente".

O objeto da prestação da obrigação dos sócios pode, a contrario sensu, ser diverso: um sócio pode ter a obrigação da entrega de dinheiro, enquanto outro deve entregar um móvel, e um terceiro pode ter como obrigação a realização de algum trabalho. Também é possível ter uma obrigação de caráter continuado, por exemplo, o pagamento de uma mensalidade ou anuidade. Essa diversidade de obrigações diverge da situação encontrada no âmbito dos demais contratos, nos quais a obrigação de cada parte tem como objeto algo típico e constante.

Quanto às obrigações das partes em um contrato plurilateral, importa colocar que estão sujeitas a duas ordens de normas: (i) as normas gerais, "próprias" dos contratos plurilaterais, e (ii) normas especificas que decorrem do objeto da obrigação de cada parte. Para ilustrar este último tipo de ordem de norma, caso um sócio transfira um objeto para a sociedade, ele permanece responsável por evicção ou vícios ocultos.

Diferentemente dos contratos bilaterais, nos quais as obrigações de cada uma das partes se apresentam em uma relação jurídica de equivalência, nos contratos plurilaterais só é possível vislumbrar tal equivalência entre as obrigações e os direitos de um determinado sócio, e entre obrigações e direitos de uma perspectiva global, considerando a sociedade em si.

Ascarelli prossegue diferenciando as sociedades das associações, ambas contratos plurilaterais, através da análise do escopo de cada uma delas. Enquanto o escopo da sociedade é atingível por meio de operações a desenvolver­se com terceiro para obtenção de lucro, o escopo da associação é proporcionar aos participantes a possibilidade de gozar diretamente de determinados serviços sem nenhum pagamento ou por um preço inferior ao de mercado. Os associados podem até contribuir com dinheiro para poderem participar da associação, mas este será destinado à aquisição de bens e serviços aos próprios associados.

Essa diferenciação explica a discrepância entre os direitos de quem participa em uma sociedade e de quem participa em uma associação: na sociedade, o direito dos sócios tem um conteúdo típico e constante, mas nem sempre idênticos (ex.: em uma S. A., quem subscreve um maior número de ações tem direito a receber maior parte dos lucros obtidos pela companhia). Isso não ocorre nas associações, nas quais os direitos são idênticos a todos os associados.

O teórico propõe mais uma distinção: contratos plurilaterais internos e plurilaterais externos. Os contratos plurilaterais externos seriam aqueles em que as partes têm que agir em grupo perante terceiro ­ como se fossem uma só pessoa – na busca de seus objetivos. Há, portanto, nesse tipo de contrato, a constituição de uma empresa, unindo todas as partes e possibilitando que ajam em grupo. Um bom exemplo ilustrativo dessa seria uma Sociedade Anônima, a qual atua baseada na soma das vontades dos acionistas, na união de vontades que também é conhecida como affectio societatis. Já nos contratos plurilaterais internos, as partes não atuam como uma só, cada parte age individualmente perante um terceiro, apenas observando as regras do contrato estipulado. Há uma pluralidade de partes e há também um fim comum, mas para se chegar a este não é necessária a criação de uma nova pessoa que represente todas as partes. Um exemplo consiste na venda de mercadorias a condições prefixadas por comerciantes.

Ascarelli evidencia ainda que, como o contrato plurilateral externo visa à constituição de uma nova organização destinada a ter relações jurídicas com terceiros, a jurisprudência geralmente derroga as normas gerais dos contratos para prevalecer o interesse de terceiro, ou seja, as causas de invalidade do contratou de adesão de uma das partes podem ser desconsideradas para proteger o terceiro de boa­fé, pois, se fossem aplicadas, não haveria como a sociedade ou a parte serem responsabilizadas.

Segundo o autor, os contratos plurilaterais apresentam­se como contratos abertos, ou seja, há uma permanente oferta de adesão a novas partes que satisfaçam determinadas condições e, por outro lado, há também uma permanente possibilidade de desistência dos que deles participam sem que haja a dissolução da sociedade. Essas ideias são inconcebíveis nos demais contratos, os quais possuem apenas duas partes.

Importante é a observação feita pelo autor de que o caráter aberto do contrato plurilateral persiste mesmo quando é necessária a modificação do contrato social, ou seja, a modificação do contrato social não representa o encerramento do contrato anterior e a constituição de um novo. Como consequência disso, Ascarelli aponta que as novas partes de um contrato plurilateral integram o contrato originário, ou seja, respondem pelos débitos anteriores à sua participação na sociedade, como se sempre tivessem sido sócios.

O aspecto mais peculiar dos contratos plurilaterais seria, então, a questão dos vícios de constituição. Na teoria geral dos contratos, o vício de uma das manifestações de vontade vicia o contrato como um todo; já nos contratos plurilaterais, é possível distinguir onde recairia o vício: na adesão de cada parte (quanto a sua forma e validade, exs: incapacidade da parte, falta de subscrição do capital) ou no contrato em seu conjunto (exs: ilicitude de seu objeto, falta de forma, simulação).

O vício na adesão de uma parte não viciaria o contrato como um todo se ainda continuasse possível a consecução de seu objetivo. Isso é o chamado princípio da conservação dos contratos, que se baseia na pluralidade dos contratantes, pois se houvesse apenas duas partes, o vício na manifestação de uma delas no momento de sua adesão seria razão suficiente para dissolver o contrato em sua totalidade. Este princípio da conservação dos contratos é adotado pela doutrina italiana, pelo direito francês e brasileiro.

As diferenças entre o contrato social como um todo e a adesão individual de cada uma das partes é também verificada na execução das obrigações de determinadas partes num contrato plurilateral: (i) num contrato bilateral, se uma das partes não cumpre suas obrigações, cabe ao credor a possibilidade de executá­las. Caso isso não seja possível, pelo que se chama de impossibilidade superveniente, há duas possíveis consequências: nulidade ou resolução do contrato; (ii) num contrato plurilateral, porém, caso não se possa executar uma obrigação não cumprida, a nulidade ou resolução recai apenas à adesão da parte inadimplente. Admite­se, portanto, a continuidade do contrato em relação às demais partes, visto que o objetivo comum ainda é atingível. 

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Tal característica (continuidade do contrato social) permite que a parte em relação à qual o contrato foi anulado ou resolvido possa ser substituída por outra pessoa, sem que isso altere a natureza do contrato social, ou constitua novação.

Não se presume que todos os sócios estejam livres de cumprir suas obrigações pelo inadimplemento de uma das partes, caso o objeto do contrato social ainda seja possível. No entanto, a execução (judicial ou extrajudicial) da obrigação de uma das partes implica no cumprimento das obrigações de todos os sócios.

A consequência da resolução do contrato social é mediata e indireta, enquanto que nos contratos de permuta é uma consequência direta e imediata.

O fato de os contratos de sociedade terem caráter instrumental, ou seja, serem celebrados a fim de possibilitar a consecução de um objetivo comum, significa que eles não se preocupam somente com as relações entre os sócios, mas também com a relação deles com terceiros.

Assim sendo, o contrato de sociedade tem um aspecto interno, como já foi dito, que diz respeito à constituição e organização da sociedade, e um aspecto externo, relativo à sua ulterior utilização em relação a terceiros.

Os direitos e deveres dos sócios são considerados em ambos os aspectos. O dever de organização das partes, por exemplo, não se dá somente no âmbito interno da sociedade, mas também nas relações exteriores. Tais deveres não são patrimoniais, mas são antes deveres de administração, de gestão.

Quanto aos poderes de administração, podem­se distinguir os que se referem à possibilidade de modificar o contrato, os que se referem à orientação geral da gestão, os que se referem à administração e os que se referem ao seu controle. A amplitude desses varia conforme a organização da sociedade e a responsabilidade dos sócios.

Um dos tipos de gestão ­ organização da sociedade – consiste na possibilidade de votações por maioria. Essa possibilidade é tanto maior quanto mais nítida a diferença, num contrato plurilateral, entre os interesses comuns e os interesses particulares. Nos contratos bilaterais esse tipo de organização inexiste.

As posições jurídicas conferidas às partes por um contrato plurilateral são muito mais complexas do que aquelas que decorrem de um contrato bilateral, tanto pela maior diversidade de direitos e obrigações, quanto pelo fato de que cada um dos sócios pode estar submetido a uma disciplina diferente.

Todas as características apresentadas demonstram que o contrato plurilateral, do ponto de vista econômico, é um contrato de organização, pois ele é celebrado para organizar a atividade de várias partes, que pretendem atingir um objetivo comum. Nesse sentido, são diferentes dos contratos de permuta. 

Conclui­se, pelo exposto, que os contratos plurilaterais são uma espécie de contrato, sendo seu maior exemplo (mais não único) o contrato de sociedade.

2. Contratos externos

A uma organização que tenha relações com terceiros abre­se a possibilidade de personificação. A pessoa jurídica nascente tem como substrato o contrato plurilateral que originou a organização, e passará a ser o agente nas diversas relações jurídicas que antes empenhavam os participantes da organização. O caráter unitário decorrente da personificação pode ser analisado de duas perspectivas: internamente, quer dizer que as relações de uma parte com as demais passam a ser relações de tal parte com a pessoa jurídica; do ponto de vista externo, por outro lado, as relações de todas as partes com terceiros passam a ser concebidas e disciplinadas como relações da pessoa jurídica com terceiros. Este último aspecto corresponde ao motivo de se criar uma pessoa jurídica, o que fica nítido ao se pensar na facilitação das relações com terceiros gerada mediante a personificação.

A faculdade de personificar­se não reside no campo de discricionariedade da organização. Com isto, quer se dizer que não basta a vontade da organização para haver personificação, mas há condições, de ordens material e formal. Quanto à primeira, tem­se que a existência de pessoa jurídica é condicionada à existência de uma organização externa, eis que não haveria sentido em cogitar direitos, bens, obrigações – enfim, relações – “de grupo” para casos em que as partes não agem como um grupo, como ocorre com as organizações internas. Já das exigências externas, destaca­se a publicidade – a constituição de pessoa jurídica como tal deve ser de conhecimento de terceiros para que seja regular­, conditio juris para a personificação. A inobservância das condições formais implica no surgimento de sociedades irregulares. Observa­se, contudo, que essa regra é aplicável somente aos contratos externos, pois para contratos plurilaterais de organização interna não se impõe o princípio da publicidade, já que não é necessário que todos os sócios tenham se manifestado com tais a terceiros.

Em se tratando de sociedades de organização interna, cumpre diferenciá­las das sociedades em conta de participação: enquanto aquelas consistem em contratos plurilaterais de caráter meramente interno, em que os sócios agem individualmente, por conta própria e em seu próprio nome perante terceiros, as últimas são uma pluralidade de contratos bilaterais, celebrados entre o sócio ostensivo e os sócios participantes, os quais não se relacionam com terceiros.

Em se tratando de sociedades de forma geral, é comum a confusão entre espécie (sociedade) e gênero (contratos plurilaterais). No campo teórico, isso se reflete em uma utilização terminológica imprecisa, em habitual referência metonímica: recorre­se a “sociedades” quando se quer tratar de “contratos plurilaterais”. No campo prático, a confusão é mais perniciosa, materializando­se em recorrente organização sob a forma de sociedade embora os fins realmente visados sejam de associação. Nesses casos, os agentes observam regras e o modelo geral de sociedade, para provocar a incidência de normas de sociedade, mas, através de cláusulas contratuais oportunas, adaptam­na aos fins que realmente têm em vista (associativos). Esse fenômeno de confusão justifica­se principalmente pelo fato de ser a sociedade a espécie mais e melhor disciplinada normativamente. 

3. Contratos Normativos

Uma das características peculiares do contrato plurilateral é o fato de suas partes poderem assumir obrigações com objetos diversos, embora coordenadas para o mesmo fim. Pode ser que o objeto dos compromissos assumidos pela parte consista na disciplina da conduta ulterior dela nos futuros negócios jurídicos que realizem, se obrigando a uma atividade positiva ou negativa.

Essa é a hipótese do contrato normativo, que se caracteriza como estabelecimento prévio das cláusulas com as quais deverão (ou não) ser concluídos determinados contratos futuros. Ou seja, as partes do contrato normativo poderão disciplinar os futuros contratos que pretendam celebrar entre si, entre alguma delas e terceiros ou futuros negócios que cada uma pretenda realizar individualmente.

Quando as partes determinam em quais circunstâncias e como serão celebrados negócios entre cada uma delas e terceiros, o que elas realmente fazem é disciplinar a concorrência entre elas por meio de uma disciplina normativa. Nesse sentido, dentro do contrato plurilateral, cada parte assume para com a outra uma obrigação correspondente, de modo a regular a concorrência recíproca por meio do contrato normativo. Desse modo, identifica­se uma subcategoria de contratos plurilaterais ­ os contratos plurilaterais normativos.

É muito comum na prática que as partes disciplinem as cláusulas dos futuros contratos que possam a ser celebrados entre elas. É o caso dos empreendedores que prefixam os juros nas relações recíprocas entre si. Também é comum que as partes assumam o compromisso recíproco de seguirem uma determinada diretriz comum, como quando os acionistas combinam como votar em uma assembleia geral. Também é possível que as partes disciplinem a concorrência recíproca, como quando vários empreendedores convencionam não vender abaixo do preço, ou não recorrer a determinadas práticas de concorrência.

Diante dessas hipóteses de contratos plurilaterais normativos, percebe­se que as partes podem criar organizações meramente internas ou, quando disciplinam suas relações com terceiros, externas.

Seja como for, as partes celebram esse tipo de contrato visando a alcançar um fim comum, de modo que a restrição à sua liberdade de ação, por meio do contrato plurilateral normativo, será compensada. Esse fim, no entanto, não é o fim comum que caracteriza a sociedade em si. Na verdade, é por meio da consecução desse fim que as partes buscam obter suas vantagens.

É por isso que, quando do contrato decorre uma organização que deva agir para com os terceiros para a realização do fim buscado pelas partes (contratos plurilaterais normativos externos), adota­se a forma da sociedade. Assim, a organização das partes se personifica, de modo que as dívidas decorrentes de sua atividade não afetam o patrimônio individual de seus membros (separação do patrimônio dos sócios e da sociedade). Serão aplicadas à organização, portanto, as normas concernentes à sociedade e, eventualmente, aquelas que dispõem quanto ao fim concretamente visado pelas partes (o fim econômico do negócio).

4. Conclusão

O texto estudado imprime em primeiro lugar a conveniência e, mais, a necessidade de formulação de teorias 

que atendam às especificidades de cada relação contratual. Essa constatação, que se aplica para o Direito como um todo, é enfocada pelo autor sob a óptica de que contratos plurilaterais apresentam peculiaridades o bastante para que não possam ser disciplinados à semelhança dos tradicionais contratos de permuta – ou ao menos não o devem se se pretende evitar regulações ineficientes e que obstaculizam o próprio desenvolvimento da atividade ao invés de facilitá­lo. Com efeito, em um mundo marcado pela crescente especialização, fenômeno ao qual o Direito não é imune, há cada vez menos espaço para as formulações abstratas, o que quer dizer, no mundo jurídico, que se deve ter cautela com a generalidade normativa, que pode ter efeitos tão ou mais perniciosos que a própria falta de regulação. Se tal percepção soa óbvia hoje, não o era à época de Ascarelli, e nisto reside o mérito do autor. Além disso, ainda hoje, se inconteste na teoria, na prática não há tanta obviedade assim: para comprovar, pode­se pensar na crítica de muitos comercialistas à aplicação subsidiária das normas de sociedade simples às sociedades limitadas.

A particularidade dos contratos plurilaterais, exaustivamente exposta pelo autor ao longo do texto, fica bem clara à luz de um exemplo prático: uma organização, mediante a existência de affectio societatis, opta por personificar­se para atingir seus fins e atuar perante terceiros, passando a constituir uma sociedade personificada. Se, após a constituição, é quebrada a affectio societatis por um dos sócios, a conseqüência jurídica provável e adequada é a resolução parcial da sociedade, ou seja, o contrato não é extinto como um todo, mas apenas em relação àquele sócio que se distanciou do fim social. Não é possível imaginar semelhante conjuntura para casos de contratos de permuta, para os quais o distanciamento de uma das partes do fim contratual implica inadimplemento e, em conseqüência (não necessariamente, mas em regra, observa­se), extinção contratual. Essa comparação faz nítida a diferença do caráter instrumental dos contratos plurilaterais e do caráter imediato dos de permuta. Consequência muito relevante que a este aspecto se relaciona é o fato de a exceção de obrigação não cumprida alcançar contratos de permuta, mas não os de sociedade, principal espécie dos plurilaterais. E é lícito dizer que não poderia ser diferente, sob pena de lesão a terceiros, o que seria contraproducente, eis que a constituição de uma sociedade tem em vista sobretudo as relações com terceiros, como bem pontua Ascarelli.

A prática jurisprudencial tem confirmando o que se pontuou acima: a título de exemplo, no Recurso Especial no 1.128.431­SP, discutiu­se a possibilidade jurídica de pedido de dissolução parcial de sociedade anônima fechada em razão de quebra de affectio societatis, materializando a hipótese que se imaginou acima. O recurso teve seguimento negado, visto que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é pacífica quanto à possibilidade de dissolução parcial de sociedade anônima fechada de cunho familiar. Destaca­se, então, o reconhecimento da possibilidade de dissolução parcial, observando­se, no mais, que mais adequado ainda seria falar em necessidade (ao invés de possibilidade) devido à relevância da função social dos contratos e do consequente princípio da preservação dos mesmos.

Tal hipótese de dissolução parcial serve também para bem ilustrar característica típica dos contratos plurilaterais apontada por Ascarelli em seu texto, qual seja, de coexistência de interesses particulares – interesses estes que, em regra, levam o agente a ser parte do contrato – com o interesse social comum. No caso em questão, o sócio que deixou a sociedade o fez porque seu interesse particular não era mais compatível com o fim social. Resta nítido, portanto, que subsiste à formação do contrato uma tensão entre interesses particulares e o interesse comum; quando esta tensão torna­se incompatibilidade, não há alternativa senão a saída da parte, eis que sendo um contrato instrumental, a atuação da parte não importa enquanto um fim em si mesma, mas apenas enquanto contribui para o fim social. 

À luz dessa tensão pode ser compreendido também outro fenômeno de muita importância no contexto societário moderno: a desconsideração da personalidade jurídica. Conforme previsto no artigo 50 do Código Civil, e no artigo 28, § 5o, do Código de Defesa do Consumidor, a desconsideração é cabível “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial”. Nesses termos, é correto dizer que a desconsideração da personalidade jurídica relaciona­se à sobreposição dos interesses particulares em detrimento do interesse social. Verificada essa sobreposição, não há razão em manter a separação patrimonial para efeitos de determinadas obrigações. Portanto, a desconsideração da personalidade jurídica significa possibilidade coibir abusos sem a necessidade de extinguir a pessoa jurídica para todos os efeitos, o que mais uma vez se relaciona com a proteção de terceiros (segurança jurídica) e com o princípio da preservação dos contratos (função social).

Outro fenômeno que pode ser analisado sob a perspectiva do conflito dos interesses particulares com o interesse social comum é o da vontade da maioria. Como foi visto, os contratos de sociedade são classificados por Ascarelli como plurilaterais externos que, para agirem perante terceiros, constituem uma nova pessoa, de forma que essa nova pessoa representa o desejo de todas as partes em suas ações. Em outras palavras, mediante a affectio societatis, é possível criar uma companhia com vários sócios. O problema é que a visão da affectio societatis e, consequentemente, dos contratos externos, pode ficar um pouco distorcida ao longo da vida social, pois se pode pensar que, na verdade, a affectio societatis representa apenas a vontade do controlador ou dos sócios majoritários, e não de todos os sócios. Assim, haveria identidade dos interesses particulares daqueles que detêm maior poder social e o interesse comum, mas não entre este e os interesses particulares dos demais sócios. Esse é um tema muito discutido pela doutrina brasileira, que condena a atual legislação societária por continuar com a histórica proteção à concentração de poder e capital ao proteger e facilitar o exercício do sócio controlador, gerando um ambiente não muito favorável para potenciais investidores. No supracitado julgamento do Recurso Especial no 1.128.431­SP, trazido mais uma vez a título ilustrativo, reconheceu­se entretanto que os minoritários também possuem o direito de pedir pela resolução parcial da companhia. Essa orientação coaduna com todo o exposto pelo autor acerca de sociedade, na medida em que significa prevalência do interesse social, no caso, defendido pelos minoritários, frente aos interesses dos majoritários.

Outro relevante aspecto relacionado às sociedades mencionado no texto que merece alguns comentários é a defesa, pelo autor, de que todos os sócios devem gozar de direitos do mesmo "tipo”, o que significa que os direitos dos sócios podem até se diferenciar quantitativamente, mas não qualitativamente. Pode­se neste sentido questionar se o caráter de voto nas Sociedades Anônimas tem caráter qualitativo ou quantitativo. Nesse caso, os acionistas que possuem ações preferenciais não têm o mesmo direito de voto daqueles que têm ações ordinárias. Ou seja, há um “tipo” de direito que os falta, uma qualidade. Assim, pode­se considerar que nos casos das S. A., tal gozo de direitos em sociedades que possuem essas ações é desigual, sendo que apenas se todas as ações fossem ordinárias todos teriam o mesmo direito qualitativo.

Por fim, também com base no Recurso Especial no 1.128.431­SP pode ser criticado outra ideia exposta por Ascarelli no texto em estudo. No referido julgamento, a Relatora explica que, diante da globalização da economia e da evolução do mercado, as empresas de cunho familiar, que antes se constituíam sob a forma de sociedades limitadas, passaram a optar pela forma da sociedade anônima fechada, posto que esta é mais moderna e dinâmica, de modo a melhor se adaptar ao mercado. Destarte, a estrutura das sociedades anônimas fechadas foi adotada pelas pequenas e médias empresas de caráter familiar, sendo o seu intuito pecuniae diminuído em face do intuito personae.

Por esse motivo, há no Brasil uma tendência de surgimento de pequenas e médias empresas sob a forma de sociedade anônima fechada, um disfarce para a sua real estrutura de sociedade limitada. As sociedades anônimas são em regra entendidas no direito brasileiro como de fraca ou irrelevante affectio societatis, em oposição às limitadas.

Assim, o reconhecimento da possibilidade de dissolução parcial da sociedade em questão em razão de quebra da affectio societatis indica que o caráter substancial da organização, em essência limitada, prevaleceu sobre a forma, de sociedade anônima. Ascarelli, ao tratar da prática de organização sob a forma de sociedade embora os fins realmente visados sejam de associação, indica esta como uma tática para provocar a incidência de normas de sociedade. A contrario sensu, afirma que quando a essência de uma organização é de sociedade, mas a forma não, são inaplicáveis as normas de sociedade. A orientação do autor, portanto, pode ser caracterizada como formalista, o que é questionável frente à tendência de privilegiar­se o conteúdo às formas. 

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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