A inacessibilidade em meio a modernidade.

O desafio de se deambular em uma hodierna sociedade, cuja ética sedimenta-se em uma estética edificadora da inacessibilidade

19/02/2016 às 11:25
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Uma reflexão atenta para toda a problemática que envolve os desafios de se locomover em meio a uma "humanidade" estandardizada, maquinada e edificada em um modelo de arquiteturas que fingem incluir a pessoa com deficiência.

Passe a andar pelas ruas como quem não apenas caminha, mas experimenta o solo que pisa; olhe à sua volta, dialogue com o entorno e ouse um diálogo, cuja reciprocidade do entendimento do que é para um, corresponda a ambos.

O deambular daquele que não foi ainda incluso na arquitetura petrificada; o paradoxo das estruturas plenamente edificadas com o intuito de oferecer segurança, torna-se manifestação de um ausente discurso dos indivíduos comuns à realidade hodierna, que se planeja sob a frágil e obscura ideia de igualdade e do respeito às diferenças. Na moderna sociedade que habitamos assenta-se a dura realidade de uma coletividade de indivíduos, os quais não se apercebem de uma incoerente conjuntura, onde o manifestar-se em público é um representar de completos desconhecidos embora se confunda em performances miméticas; exceto pelo gosto das convenções que se manifestam em rápidos e extenuantes encontros, fora estando mergulhado no aparato tecnológico que os aproximam, encontram-se todos em um fetichismo pelo gosto narcísico das formas que os identificam, porém sob uma distância regulamentada pela falta de afeto. Coexistem dentro de uma realidade maquinada e pensada para disfarçar os motes divergentes, vistos como uma falta, um erro, uma lacuna a ser preenchida: uma inaceitável “deficiência”; exceto quando algo fere os seus sentidos, contrariando o pensar de uma sociedade que preza por uma postura pragmática, onde se acredita em um “todo ordenado”, a ponto de não enxergar o diferente, que por si só, é a diferença. Desta forma insurge o princípio aristotélico de que “a natureza não é algo estático, inerte; todo o universo se revela em um manifestar dinâmico e transformador de gerações de seres e coisas que em estágios e estados múltiplos, que se diferenciam a todo instante.”[1] É o diferente a resultante dessa cosmológica equação.

Na busca por melhor compreendermos o Ethos enquanto fundamento da estética arquitetada no narcísico gosto a se projetar em múltiplas estruturas, onde pontos interligam retas que se jungem a outras, tecendo um emaranhado de ângulos e curvas, erguendo pilares a sustentarem os graus de um comportar coletivo, cuja genealogia se constrói no gosto pelo belo que edifica representações de uma moral excludente, acostumada ao impressionismo das formas e do brilho efêmero; ensejando adentrar a “casa” onde, instam-se as feições de uma cultura seduzida pelo o econômico a ditar que a normalidade dos tempos modernos se faz assim; vemos o encontro dessa sedução em desiquilíbrio, resgatar a afirmativa aristotélica de que os seres tem por natureza o desejo pelo conhecimento. Tal desejo, em que, o a-priori dessa intelecção, sedimenta-se nas sensações o despertar interesse por essa ou aquela experiência que nos “choca” os sentidos; todavia, segundo o filósofo, a vista é por anseio precípuo, a que em primeiro nos proporciona o conhecimento em virtude do repentino descortinar dos muitos objetos que se dão a conhecer. (METAFISICA, cap. I)

Aprisionado aos sentidos, pincipalmente no que tange à vista e ao tato, os indivíduos sujeitam-se à acomodação esteticista das formas de se conjugar uma coletividade que passa pelo “silencioso rio da admiração” profícua, sem, contudo, refletir o poeta que diz ser “o homem um cadáver adiado”. Segregados no tempo presente, cujo torpor motivado pelo gosto de se igualarem ao todo que os circundam, ignoram a historicidade do conhecimento que os fazem ser no presente instante, a parte que competem ser, de conformidade com a intencionalidade condizente à realidade líquida e cooperativamente erguida em modelos puramente econômicos. Por essa razão mesma, que de forma tímida, realçam-se as diferenças, necessitando coexistirem em uma selva petrificada e lapidada aos moldes da frieza de um “belo” caracteristicamente expresso no brilho de construções que acobertam a necessária inclusão.

A inacessibilidade, expressa em estruturas edificadas sob a égide do que há de melhor em formas arquitetônicas, se estende sobre a grande massa de indivíduos que ignoram caminhar como “personas”, refletidas e expostas à maneira de obras de artes exibidas em grandes medinas. Na forma lisa de pedras a que se pisa, o eu narcísico se deixa estandardizar, pois assim se insere no discurso hegemônico da normalidade, refletindo a coletividade de indivíduos que vivem orgulhosos por não presenciar de forma incômoda a diferença, pois em tempos de “elogio a tolerância”, “igualdade” é sinônimo de respeito à liberdade, e a diferença, característica primeira do ser, pode até ressoar, mas não fará eco!

Enquanto perene movimento de relativa interatividade, segue a vida o seu curso em processo de trabalho e cooperação onde nossos hábitos ordenam-se, grosso modo, sob o véu de um mesmo ethos: aquele enquanto morada, na qual nos resguardamos; lugar que recorremos quando necessitamos de refazimento e orientação pra nossas ações;[2] a princípio, ideário legal, justificando a necessidade de utilizarmos do desejo de conhecer, como precípuo ato de respeitar a diferença que faz diferença. Segundo Aristóteles, é na diferença que a espécie se completa, distinguindo-se enquanto tal e enquanto gênero; ou seja, se faz, se torna, constituindo sua identidade. Assim, subintende-se que cada povo, cada nação, cada agrupamento de indivíduos com suas múltiplas maneiras de agir, de alguma forma, seguem um código de ética que a partir dessa diversidade comportamental, terão características peculiares ao agir dessa ou daquela sociedade. Entretanto, não se pode olvidar a existência de indivíduos na composição desse todo; individualidades com suas historicidades caracterizadas em peculiaridades que as diferenciam, mesmo que subjugadas por uma massiva indústria cultural que de forma pujante imprime contornos performáticos de um modus operandi, aplicando o brilho estrutural nas construções urbanísticas como representações do modelo sociopolítico e econômico vigente. A negação dessas “diferenças” é sobrepujar a participação de um contingente que, em contexto socioeconômico e político, é sem dúvida parte contabilizada e participativa.  Segundo o senso – IBGE -, de 2010, tal negação efetivamente não se dá quando essas “diferenças” compõem hoje, apenas no Brasil, um universo de mais ou menos 46 milhões de cidadãos, a arcarem com seus impostos, se não diretamente, arcam indiretamente via os lações familiares que buscam de alguma forma a inserção desses indivíduos na sociedade que insiste na edificação de estruturas pouco e quase nada acessíveis.

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Conceder acesso é mais que cumprir a normativa formalizada pela lei. É, antes, estabelecer a discussão do que é a temática da acessibilidade em todas as suas instâncias: cultural, educacional, política e econômica. No cumprimento do direito de ir e vir, de todo e qualquer pessoa estão manifestos a necessidade de segurança e bem estar, daquele que transita pelas edificações públicas e privadas. Recobrando o pensar filosófico de que o conhecimento também se faz no campo das percepções sensíveis e este tendo por precípuo entendimento o que de imediato se contempla pela vista.[3] É de bom tom considerar que em tempos de esmaecimento do diálogo entre os homens, visto estarmos na horizontalidade das coisas que nos move e ditam nosso caminhar, nosso falar, nosso agir diante do real; promover a discussão do diferente que se estampa entre a “armada” selva de pedra, é desvelar a obscura realidade constituída em falsas sensações de equidades, abafadas na superficialidade de relações midiáticas ou quando no muito em meros segundos de contatos fortuitos das insuportáveis convenções que por si mesmas, nos impedem de realçarmos nossos medos frente a diferenças que fazem despontar as muitas “personas” desse contínuo teatro de aparências.


[1] CORDON, Juan M. Navarro; MARTINEZ, Tomas Calvo. História da filosofia. Rio de Janeiro: Edições 70, 1983, p. 27.  (1º Volume).

[2] BOFF, Leonardo. O Ethos Mundial.

[3] ARISTÓTELES. Metafisica. Cap.1

Sobre o autor
Jerry Fernandes de Souza

Graduando do 8º período de Filosofia - Universidade Federal de Juiz de Fora - MG.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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