Participação dos Estados em organizações internacionais e limitação da soberania nacional:

02/03/2016 às 11:48
Leia nesta página:

O autor apresenta elementos jurídicos para melhor reflexão por parte do leitor acerca de eventual limitação na soberania nacional que podem sofrer os Estados quando tomam parte em organismos internacionais.

1. INTRODUÇÃO

As organizações internacionais são criadas e compostas por Estados [1] por meio de tratado (geralmente denominado “Carta”), que lhes dotam de aparelho jurídico-institucional com vistas a melhor alcançar os objetivos comuns de seus membros. Com vistas à consecução desses objetivos, os Estados atribuem competências às organizações internacionais, algumas das quais impositivas, a depender do estabelecido na Carta constitutiva da organização. Nesse caso, os Estados estarão obrigados a acatar as decisões emanadas da organização internacional, ainda que tenham sido contra ou não tenham participado da elaboração da referida norma. Nesse contexto, cabe a indagação: a participação dos Estados como membros de Organizações Internacionais limita ou não a sua soberania? É o que se pretende analisar neste artigo.

 

2. AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS VOLTAM-SE À POTENCIALIZAÇÃO DE BENEFÍCIOS PARA OS ESTADOS

As Organizações Internacionais constituem uma das grandes expressões da soberania dos Estados, uma vez que são instrumentos voltados ao melhor atendimento de seus interesses. Com efeito, a criação das organizações internacionais responde à percepção por parte dos Estados da existência de interesses comuns, que dificilmente seriam atendidos caso agissem sozinhos na arena internacional. Determinados temas – como, por exemplo, o comércio internacional – demandam o estabelecimento de entidades que possam articular os esforços dos Estados com vistas a atingir a determinados fins específicos. Dessa perspectiva, ainda que determinada organização internacional venha a tomar alguma medida de caráter obrigatório para seus membros [2], e ainda que essas medidas venham de encontro ao interesse imediato de alguns deles, tem-se que aquela decisão é benéfica à comunidade de Estados-partes como um todo, e, logo, de algum modo benéfica àquele Estado cuja soberania foi aparentemente limitada.

Ao tomar parte em determinada organização internacional, o Estado estará exercendo a faculdade soberana de engajar-se internacionalmente, ainda que o preço para isso seja a autolimitação internacional. Ou seja, ao participar de organizações internacionais – o que sempre traz obrigações para os Estados-partes – não significa que o Estado estará renunciando sua soberania. Muito pelo contrário, o que o Estado signatário estará fazendo é reafirmá-la, ainda que, com sua participação na organização internacional, venha a limitar sua liberdade de atuação internacional.

Nesse sentido, por exemplo, aponta-se trecho de caso emblemático (Caso S.S.Wiblemdon) enfrentado pela Corte Permanente de Justiça Internacional, para quem, em 1923, não havia dúvidas de que toda convenção, ao criar obrigações para os seus signatários, acaba por restringir os direitos soberanos dos Estados, na medida em determina a maneira como alguns desse direitos serão exercidos. Mas a CPJI não deixou de reconhecer que esse engajamento seria uma manifestação da própria soberania estatal:

“No doubt any convention creating an obligation of this kind places a restriction upon the exercise of the sovereign rights of the State, in the sense that it requires them to be exercised in a certain way. But the right of entering into international engagements is an attribute of State sovereignty” [3]

 

3. AS DECISÕES DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS SÓ SÃO VINCULANTES PARA OS ESTADOS QUE VOLUNTARIAMENTE SE COMPROMETERAM A SEGUIR SUAS DECISÕES

Quando os Estados criam Organizações internacionais, delegando-as poderes para gerir determinado assunto de seu interesse, eles estarão, de antemão e voluntariamente, aceitando limitações à sua atuação no cenário internacional. Por possuírem personalidades jurídicas próprias e por serem constituídas para atingir um determinado interesse comum, as organizações podem, eventualmente, tomar decisões que afrontem o interesse de algum membro. Isso não quer dizer, porém, que as organizações internacionais sejam entidades soberanas, nem que esse Estado tenha tido a sua soberania aviltada. Isso porque, ao aderirem a uma organização internacional, os Estados estão, voluntariamente (insiste-se), comprometendo-se a acatar as decisões dessa organização, ainda que essas decisões vão de encontro a algum interesse pontual. Porém, esse compromisso é sempre voluntário. Tanto assim que, entendendo que aquela organização, nos moldes em que tenha sido criada, não mais atende a seus interesses, o Estado insatisfeito poderá a qualquer momento retirar-se dela, o que bem denota a inteireza de sua soberania. Enfim, as decisões das organizações só são vinculantes para os Estados na medida em que estes tenham prévia e expressamente delegado poder àquelas organizações de emitir decisões e se comprometido a acatá-las.

Esse equilíbrio entre preservação da soberania e autolimitação pode ser bem vista em inúmeros casos. A título de exemplo, cite-se o Caso China – Medidas relativas à Exportação de Terras Raras, Tungstênio e Molibdênio (2012), na Organização Mundial do Comércio. Como membro daquela organização, o país comprometeu-se a acatar suas regras e decisões dos painéis de seu sistema de solução de controvérsias. Nesse contexto, viu-se parte em painel daquela organização, em que se discutiu a adoção por parte da China de cotas de exportação de terras-raras, tungstênio e molibdênio, comportamento que ia de encontro às obrigações assumidas pelo país junto à OMC [4]. A China, entre outros argumentos, defendeu-se suscitando o princípio da soberania sobre os recursos naturais, reconhecido princípio de Direito Internacional Público. E essa soberania não deixou de ser reconhecida pelo painel:

“The Panel recognizes the permanent sovereignty that every WTO Member has, as a matter of fundamental principle, over its own natural resources”.

No entanto, ainda que sem desconhecer essa soberania, o painel também observou que a China não tinha o direito de controlar a distribuição com objetivos econômicos, já que tal comportamento afrontaria as regras da organização à qual o país tinha se associado:

“no WTO Member has, under WTO law, the right to dictate or control the allocation or distribution of rare earth resources to achieve an economic objective”.

Enfim, conforme se depreende da decisão, a China não perdeu a sua soberania com seu ingresso na OMC. Muito pelo contrário, exerceu-a ao aderir à organização. Apenas que, ao aderir, voluntariamente, o país passou a sujeitar-se às regras da Organização para o comércio internacional.

 

4. AS LIMITAÇÕES À SOBERANIA ESTATAL NÃO SE PRESUMEM

As autolimitações que os Estados se impõem ao tomar parte em organizações internacionais jamais poderão ser presumidas. Com efeito, em razão da ausência de uma entidade jurídica superior aos Estados no contexto internacional (pois, como visto acima, as organizações internacionais não são soberanas), os Estados não podem contrair obrigações jurídicas internacionais – restringindo sua liberdade de atuação internacional –, senão por meio da manifestação livre e expressa de sua vontade de contrair aquelas obrigações. As obrigações dos estados no plano internacional não se presumem, portanto. Não é outro o sentido da decisão da Corte Permanente de Justiça Internacional, no Caso Lotus, que, em 1927, asseverou que:

 “International law governs relations between independent States. The rules of Law binding upon States therefore emanate from their own free will as expressed in conventions or by usages generally accepted as expressing principles of law and established in order or regulate the relations between these co-existing independent communities or with a view to the achievement of common aims. Restrictions upon the independence of States cannot therefore be presumed.” [5]

 

5. OS ESTADOS PODEM, A QUALQUER MOMENTO, REMODELAR A ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL, DELA RETIRAR-SE OU, EM ÚLTIMA INSTÂNCIA, DESFAZÊ-LA

Os Estados não apenas criam, mas igualmente estabelecem quais serão as capacidades institucionais e as competências das organizações internacionais. As organizações internacionais não têm poder irrestrito de agir, devendo atuar nos exatos limites traçados pelos Estados na carta constitutiva da organização.

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O estabelecimento e a definição das competências de uma organização internacional são feitos através de tratados – geralmente denominados cartas ou estatutos. Sendo definidas por tratado, essas competências podem ser alteradas a qualquer momento (desde que haja concordância entre seus Estados-membros). Caso os Estados julguem que exageraram na concessão de poderes a uma organização internacional, eles poderão restringir esses poderes através de emendas ao tratado constitutivo da organização. Caso um Estado queira remodelar as competências de uma organização, mas os demais Estados não aceitem, aquele Estado insatisfeito poderá retirar-se da organização. Por fim, caso se chegue ao consenso de que a organização internacional criada não cumpre mais as finalidades que se pretendiam buscar com sua criação, os Estados-membros dessa organização podem, mesmo, desfazê-la. Todas essas possibilidades parecem bem demonstrar que, ainda que se comprometendo a seguir as regras e decisões emanadas das organizações internacionais de que venha a fazer parte, as soberanias estatais permanecem intactas.

 

6. NEM TODAS AS ORGANIZAÇÕES TÊM SUAS DECISÕES AUTOMATICAMENTE APLICADAS NOS ESTADOS

Há organizações cujas decisões não são automaticamente aplicadas nos Estados, devendo antes ser incorporadas aos seus ordenamentos jurídicos. Nesses casos, há menos espaço para dúvidas quanto à manutenção da soberania dos Estados-partes dessas organizações. Tal é o caso do MERCOSUL, que se baseia em estrutura tipicamente intergovernamental (e não supranacional, como a União europeia em determinados assuntos), pela qual as decisões tomadas no âmbito do bloco regional dependem de sua incorporação pelos ordenamentos jurídicos dos Estados mercosulinos. Enquanto, na União Europeia, as normas adotadas pelo bloco são imediatamente aplicáveis nos seus Estados-membros, no MERCOSUL, as decisões do bloco devem ser internalizadas, o que pode, em última instância, nunca acontecer. Nesse sentido, é o entendimento do STF, para quem:

“a inexistência de uma cláusula geral de recepção plena torna inviável, no sistema de direito constitucional positivo vigente no Brasil, a aplicabilidade imediata das normas convencionais, inclusive daquelas consubstanciadas em atos, acordos, protocolos ou tratados celebrados no âmbito do MERCOSUL, razão pela qual – como precedentemente enfatizado – não se revela invocáveis, na prática jurídica brasileira, nem o princípio do efeito direto, nem o postulado da aplicabilidade imediata dos pactos internacionais.” [6]

 

7. CONCLUSÕES

À luz de todo exposto, é possível afirmar que a participação em organizações internacionais não limita a soberania do Estados, apenas constitui uma limitação voluntária, por considerar essa limitação de algum modo benéfica, na sua atuação no plano internacional.

Ao tomar parte em uma organização internacional, os Estados estarão apenas limitando sua atuação na sociedade internacional, sua margem de manobra, mas jamais estarão abrindo mão de suas soberanias. Com efeito, as organizações internacionais constituem instrumentos voltados a atingir os interesses dos Estados, e suas regras e decisões, em regra, só são vinculantes aos Estados-membros na medida em que estes tenham manifestado expressamente o compromisso de acatá-las. Não por outra razão, as limitações à atuação dos Estados internacionalmente não podem se presumidas. Ademais, os Estados podem a qualquer momento retirar-se das organizações internacionais de que fazem parte, ou, em última instância, desconstituí-las. Registre-se, por fim, que nem todas as decisões de organizações internacionais são automaticamente aplicadas no interior de seus Estados-partes, como bem atesta a estrutura intergovernamental do MERCOSUL.

 

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Não há impedimentos para que um organismo internacional faça parte de outro. Nesse sentido, PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E PRIVADO. 2ª Ed. Salvado: JusPODVM, p.208.

[2] Desde que previsto na Carta constitutiva da organização internacional.

[3] Sentença do caso Wimbledon (1923), da CPJI. Disponível em: http://www.icj-cij.org, Série A, Nº 1, p.25. Acesso em: 16/9/2015.

[4] Organização Mundial do Comércio. Caso China – Medidas relativas à Exportação de Terras Raras, Tungstênio e Molibdênio (2012). Disponível em: https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/431_432_433r_e.pdf. Acesso em 17/9/2015.

[5] Sentença do caso Lotus (1927), da CPJI. Disponível em: http://www.icj-cij.org, Série A, Nº 10, p.18. Acesso em: 16/9/2015.

[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, CR-AgR 8.279. Relator: Ministro Celso de Mello, 17/6/1998. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=324396. Acesso em: 16/9/2015

Sobre o autor
Cosmo Ferreira Filho

Diplomata, Graduando em Direito - Universidade de Brasília (UnB)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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