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Conceito de pessoa na trajetória filosófica e jurídica

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02/03/2016 às 12:30

Resumo:


  • O conceito de pessoa é um dos mais relevantes para o direito ocidental, porém são raros os estudos jurídicos que se aprofundam na sua elucidação histórica e teórica.

  • Grande parte dos estudiosos considera a noção de pessoa como inata, mas é essencial investigar adequadamente esse conceito para resolver dilemas no campo do direito contemporâneo e proteger juridicamente o indivíduo.

  • O conceito de pessoa é complexo e está sujeito a um esvaziamento semântico ao longo do tempo, sendo carregado de vários significados devido às formulações jurídicas, políticas e filosóficas que foram se desenvolvendo ao longo da história.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Referências

DE ALMEIDA, Rogério Tabet. Evolução histórica do conceito de pessoa - enquanto categoria ontológica. Disponível em: https://faa.edu.br/revistas/docs/RID/2013/RID_2013_16.pdf Acesso em 22.02.2016.

ASCENSÃO, José Oliveira. A dignidade da pessoa e o fundamento dos direitos humanos. Revista do Mestrado em Direito. vol. 8, n.2. São Paulo, Osasco, 2008.

COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2005.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa, Ano 36. Brasília. Jan/Mar de 1999.

REBOUÇAS, Marcus Vinícius Parente; PARENTE, Analice Franco Gomes. A Construção Histórica do Conceito de Pessoa Humana. Disponível em: https://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=066d47ae0c1f736b Acesso em 22.02.2016.

REALE, Miguel. Introdução à filosofia. São Paulo: Saraiva, 1989.

SARLET, Ingo. Os direitos fundamentais, a reforma do judiciário e os tratos internacionais de direitos humanos: notas em torno dos §§2º e 3º do art. 5º da CF/1988. Juris Plenum Ouro. Caxias do Sul: Plenum, n.14, jun.,/ago, 2010.

STANCIOLI, Brunello Souza. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade: ou de como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.


Notas

[1 Freud sempre foi contra a ideia de um eu lógico, fixo e estável. O Eu não é algo unitário, firme, seguro e autônomo, diferente de tudo mais. O que chamamos de nossa consciência é continuado para dentro, sem qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental inconsciente denominado “Id”, região dos impulsos, afetos e desejos. Essa nova instância descoberta pela psicanálise tornou questionável a própria noção do que entendemos por eu. Para Freud, é como se o indivíduo existisse em duas dimensões: um lado consciente e outro inconsciente. “A psicanálise não vê na consciência a essência do psíquico, mas somente uma qualidade do psíquico, que pode somar-se a outras ou faltar em absoluto (…). Ser consciente é, em primeiro lugar, um termo puramente descritivo que se baseia na percepção mais imediata e segura. A experiência nos mostra logo que um elemento psíquico (por exemplo, uma percepção não é, em geral, duradouramente consciente. Pelo contrário, a consciência é um estado eminentemente transitório”.

[2 O século XX foi reconhecido como o século do trabalho. Pois o trabalho tornou-se seu aspecto central. Deixou de estar submetido aos tempos da natureza e às variáveis climáticas e, passou então, ele próprio, a reger o tempo dos homens. Deixou de ser apenas o meio de subsistência, para ser elemento constitutivo de identidade. Por essa razão, o século XX cristalizou mudanças radicais que começaram duzentos anos antes, quando se consagrou que o trabalho é o criador permanente de riquezas e nele indivíduos foram transformados em trabalhadores. Também é o século da polarização ideológica e de mudanças radicais no mundo do trabalho. Enfim, o século XX foi fundamental para a definição hierárquica da pessoa.

[3 O século IV começa com a grande disputa trinitária, quando surgiram grandes heresias orientais sobre a questão cristológica. Ário foi o promotor da primeira grande disputa. Desenvolveu uma teologia trinitária subordinacionista, segundo a qual, Deus, único e indivisível, não pode compartilhar sua essência (ousía) com outra pessoa, e por isso o Filho não pode ser da mesma substância que o Pai. Para Ário, Deus é princípio (arché) e Cristo, o Logotipos, sendo engendrado, a primeira e superior das criaturas, criado fora do tempo, de absoluta perfeição, mas não compartilhando nem da eternidade nem da essência do Pai. O Espírito é a primeira criatura engendrada pelo Filho. Desse modo, essa vertente discordava da ordem de hierarquia entre as três entidades divinas, que formam a Trindade.

[4 A disputa sobre a natureza do Cristo enfrentava duas visões distintas sobre a alma humana, uma visão platônica sobre as três classes de almas encerradas em um corpo, e uma visão aristotélica segundo a qual a alma é a substância do corpo. Estes dois pontos de vista permitiam interpretar a encarnação do Logotipos de duas maneiras distintas: a primeira uma cristologia descendente, em que o Logotipos se faz carne (Lógos-sarx); e a segunda uma cristologia ascendente, onde o homem é assumido pelo Logotipos (Lógos-ánthropos).

A Escola da Alexandria assumiu a cristologia descendente, que finalmente acabou se impondo, enquanto que a Escola da Antioquia, com o Teodoro da Mopsuéstia à cabeça, mantinha que a união entre o Logotipos e homem é uma conjunção (sináfeia), o que deixava claro que não havia mescla de naturezas. No ano 428, o imperador Teodosio II nomeia ao Nestório Patriarca de Constantinopla. Nestório, orador ardente, combateu do púlpito a popular concepção da Maria como "mãe de Deus" (theotocos); da teologia antioquena, Maria só podia ser mãe de Cristo, não do Logotipos que lhe é anterior. Cirilo de Alexandria, apoiando-se em teses próximas ao apolinarismo, mantinha que Cristo tinha uma única natureza, porém também tendo corpo e alma humanos - tese que conseguiu se impor e predominar no Concílio de Éfeso do ano 431, o que custou a condenação e deposição de Nestório.

[5 Na Idade Média, bem no seio da Igreja, devido sua influência e força, surgiu a necessidade de responder as exigências da fé. A Europa comungava da fé cristã, em sua absoluta maioria, e assim, um modelo de vida e de ensino se fazia imperioso, surgiu dessa forma a Escolástica ou escolasticismo, uma linha dentro da filosofia medieval de acentos notadamente cristãos, que deve o seu nome às artes ensinadas pelos escolásticos nas Escolas medievais. Tais artes podiam ser divididas em trivium (gramática, retórica e dialética) e quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Percebe-se que a educação, a cultura e a filosofia que até o início da idade das trevas possuíam traços marcadamente clássicos e helenísticos, sofreram influências da cultura judaico-cristã ao longo dos séculos posteriores à entrada do cristianismo no Império Romano. Para entender a Escolástica é preciso tentar responder ao questionamento: Como conciliar a fé e a razão? Tal questão principal é que irá atravessar todo o período de pensamento escolástico na busca de harmonizar as duas esferas (razão e fé).

O pensamento de Agostinho defenderá uma subordinação maior da razão em relação à fé, por acreditar que esta (a fé) venha com mais sucesso restaurar a condição decaída da razão humana no seu retorno às origens divinas. Por outro lado, Tomás de Aquino defenderá a autonomia da razão na busca e obtenção de respostas (por influência do aristotelismo). Entretanto, em nenhum momento Aquino negará a premissa da subordinação da razão à fé.

[6 O modalismo foi uma das heresias do século III, seus representantes são Noeto, Preassea e Sabellio que postulavam o entendimento que Deus é um só através de diversos modos de manifestação. O Filho é o Pai, enquanto que ele se manifesta em nós. Deus nele mesmo é apenas um só. Enfim era doutrina cristã que negava a existência de três pessoas em Deus, subordinando Jesus Cristo e o Espírito Santo a Deus.

[7 Tertuliano talvez fosse mais afamado por suas declarações paradoxais ou aparentemente contraditórias, tais como estas: "Deus é então especialmente grande quando ele é pequeno". Deve-se crer de todos os modos [na morte do Filho de Deus], porque ela é absurda".

O paradoxo de Tertuliano envolve mais do que as suas declarações. Sua contribuição principal foi uma teoria sobre a qual os estudiosos posteriores elaboraram a doutrina da Trindade. Para Tertuliano, a questão das relações entre a fé e a filosofia nem sequer se colocavam, pois entre ambas nada existia de comum. A filosofia era vista como adversária da fé, e os filósofos antigos como patriarcas dos hereges.

Para ele, de facto, fé e razão opõem-se, e podemos encontrar na filosofia a origem de todos os desvios da fé. No entanto, é forçado a reconhecer que algumas vezes os filósofos pensaram como os cristãos, e denuncia algumas influências de correntes filosóficas antigas, nomeadamente do Estoicismo.

É bem conhecida a frase "credo quia absurdum". Apesar de ela não se encontrar nos escritos de Tertuliano, mas apenas algumas semelhantes, ela condensa bem o seu pensamento acerca da razão. Note-se que o seu significado é não apenas "creio embora seja absurdo", mas sim "creio porque é absurdo". A verdadeira fé tem de se opor à razão.

[8 Dentre os pensadores cristãos que promoveram a difusão das ideias de Aristóteles no Ocidente merece destaque Alberto Magno (1207-1280) que procurou inserir a razão aristotélica no conhecimento cristão medieval e, com isso, apontar a importância de se conhecer as coisas por intermédio da experimentação e do uso da razão. Em linhas gerais, a universidade medieval se caracterizava por ser uma corporação formada por mestres e alunos (universitas magistrorum) que tinham como ofício a produção e a transmissão do conhecimento de determinadas ciências, tais como as Artes, a Teologia, a Medicina e o Direito.

[9 O desvendamento do enigma que é o homem, magnum miraculum, Santo Agostinho lhe atribuiu um status de importância do qual abstraiu inúmeras titulações como milagre, primazia, maravilha, dignidade, grandeza, quia summae naturae.

O seu conceito de pessoa correspondia ao homem total. Que o corpo se une à alma para forma e constituir o homem total e completo. O termo pessoa aqui não quer representar outro que não homem, e ambos têm o mesmo significado. A essência da pessoa era garantir as características pessoais que possibilitam a virtude, levando à formação da individualidade. Entenda-se a virtude como a eficácia do papel da alma, é a substância dotada de razão, apta a reger um corpo. Nesse sentido se distanciou de Platão que havia dividido alma e corpo. Pois na definição agostiniana a alma não está dentro de um corpo, mas está encarnada em um corpo.

[10 Para Agostinho, o homem deve ser compreendido como um ser composto, ou seja, formado por um corpo e uma alma, sendo esta a sua parte superior. Apesar de ser o corpo a parte inferior, em Agostinho só merece o nome de homem quando estão juntos os dois elementos, pois o homem não é só alma e nem só o corpo.

Apesar de se acentuar a unidade dos compostos, há grande diferença entre os dois, pois a lama recebeu o corpo como servo, portanto, o homem é uma lama racional que se utiliza de um corpo material e mortal.

Para o Bispo de Hipona, o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, mas esta imagem e semelhança no homem, não se referem apenas ao Verbo, pois este é da mesma essência que o Pai, ou seja, a imagem e semelhança de um implicam também a do outro. Portanto, a alma humana é o reflexo e a imagem de toda a Trindade.

[11 Na reflexão antropológica de Santo Tomás de Aquino há a definição do homem como animal racional que somente pode ser denominado homem quando entendido em sua totalidade, ou seja, o homem é constituído por uma alma e por um corpo, traduzindo uma união intrínseca de espírito e matéria. Nenhum dos elementos separadamente pode ser chamado de homem.

Em síntese, no pensamento tomasiano, o homem pelo seu espírito é semelhante a Deus. E, por sua própria natureza é ser espiritual, racional e também por natureza um animal social e político, diferindo dos animais.

[12 Para o pensador Boaventura Bagnoregio (1217-1274) era necessário ir além da definição do filósofo romano Boécio (480-524) para o qual a pessoa é uma substância individual de natureza racional. Consoante com o Doctor Seraphicus, o conceito de relação parece definir com maior profundidade a pessoa, por se tratar de um elemento constitutivo essencial. A pessoa se define pela substância ou pela relação. Noutros termos, na pessoa a relação não é simplesmente algo acidental, mas estrutural, e, portanto, inerente a sua própria natureza.

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[13 A propósito, a aposta de Pascal foi uma proposta argumentativa de filosofia apologética criada pelo filósofo, matemático e físico francês do século XVII. Esta postula que há mais vantagem a suposição de existência de Deus do que pelo ateísmo e, que uma pessoa racional deveria pautar sua existência como se Deus existisse, mesmo que a veracidade da questão não possa ser conhecida de fato. Pascal formulou a questão em um contexto cristão e, foi publicado no seu livro póstumo Pensées (Pensamentos). Historicamente, foi um trabalho pioneiro no campo da teoria das probabilidades e marcou o primeiro uso formal da teoria da decisão, antecipou as filosofias futuras como existencialismo, pragmatismo e voluntarismo.

Segundo Pascal, o homem é um ser miserável, um “nada do ponto de vista do infinito universo, um tudo do ponto de vista do nada, isto é, um meio-termo entre o nada e o tudo”. Ele é incapaz de atingir a verdade, pois a razão humana é constantemente enganada pela imaginação ou outras “potências enganadoras”. Sua única esperança é Deus: ele tem tudo a ganhar apostando na existência Dele. É o famoso argumento da aposta.

[14 A expressão "pessoa cartesiana" é utilizada para caracterizar uma pessoa inflexível que pensa e age sempre da mesma forma. A mente cartesiana é egocêntrica e quando pensa no outro, sua avaliação é sempre sobre a vantagem que poderá obter da situação.

O dualismo cartesiano ou psicofísico, ou ainda, a dicotomia corpo-consciência é conceito segundo o qual o ser humano é um ser duplo, composto de uma substância pensante e uma substância extensa. Isso porque o corpo é uma realidade física e fisiológica e, como tal, possui massa, extensão no espaço e movimento. Como também desenvolve atividades de alimentação, digestão e, etc, sempre sujeito às leis deterministas da natureza, enquanto os fenômenos mentais não possuem a extensão e nem localização no espaço.

[15 A definição de pessoa por Locke até hoje permeia as discussões no campo da filosofia, um ser pensante, inteligente, dotado de razão e reflexão, e que pode considerar-se a si mesmo como um "eu", ou seja, como o mesmo ser pensante, em diferentes tempos e lugares, põe em destaque as características da autoconsciência e da capacidade de reconhecer-se a si mesmo, como o mesmo eu que era antes, e que essa ação passada foi executada pelo mesmo eu que reflete, agora, sobre ela, no presente.

Locke distingue os conceitos de homem e de pessoa. Para o filósofo, o homem é o organismo biológico, é um corpo. Nascemos homens e podemos nos tornar pessoas. Da bem-sucedida combinação entre o homem e a pessoa, surge o homem moral, o homem que reflete sobre si, que se reconhece como um eu no tempo e no espaço, que é capaz de perceber-se como responsável por suas ações passadas e de refletir sobre suas ações futuras.

[16 “O ser humano está destinado, por sua razão, a estar numa sociedade com seres humanos e a se cultivar, civilizar e moralizar nela por meio das artes e das ciências”. A tese central da Fundamentação da Metafísica dos Costumes orbita em torno da liberdade instalada na subjetividade humana. Por entender todo ser humano como um ser de liberdade, Kant o desenha como um fim em si mesmo e prende todas as ramificações morais e filosóficas (essencialistas e existencialistas) em um único argumento, a saber: a pessoa humana é um ser de dignidade. Impossível negá-lo, isso seria renunciar à própria humanidade e dessignificar a própria existência significada enquanto essencialmente humana. Ora, a tradição desde Agostinho de Hipona já asseverava: é melhor saber que se vive do que simplesmente viver.

[17 Pelo exposto, em Kant, o que caracteriza a pessoa humana, tanto no aspecto prático quanto no pragmático, é a capacidade de agir livremente, ou seja, o homem é o único ser na natureza capaz de estabelecer um fim para si e ao mesmo tempo fazer da felicidade de outrem o seu próprio fim.

[18 Nesse novo arquétipo civilizatório averba-se a primazia material dos valores espirituais da contemporaneidade, o que endossa a visão pós-positivista onde dogmaticamente a pessoa humana, por sua dignidade imanente, é reconhecida como realidade axiológica e teleológica fundamental de per si, o que justifica a irradiação do princípio da dignidade humana por todo o corpus juris do Estado atual. Nas lições de Ingo Sarlet ainda temos in litteris: (...) o reconhecimento e proteção da dignidade da pessoa pelo Direito resulta justamente de toda uma evolução do pensamento a respeito do que significa este ser humano e de que é a compreensão do que é ser pessoa e de quais os valores que lhe são inerentes que acaba por influenciar ou mesmo determinar o modo pelo qual o Direito reconhece e protege esta dignidade".

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Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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