A ampla defesa e o contraditório na investigação preliminar após a Lei 13245/2016

08/03/2016 às 10:58
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Debate sobre as mudanças introduzidas pela Lei 13245/2016, que alterou o Art. 7º da Lei 8906/1994, e seus reflexos práticos no Inquérito Policial e Auto de Prisão em Flagrante.

 No dia 12 de janeiro de 2016, entrou em vigor a lei 13245/2016, que alterou o artigo 7º da Lei 8906/1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil).
A Lei 13245/2016 modificou o inciso XIV e incluiu o inciso XXI, alínea “a” e parágrafos 10, 11 e 12, ao artigo 7º, da Lei 8906/1994, passando a ter a seguinte redação:
“Art. 7o  São direitos do advogado:
(...)
XIV - examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital;
XXI - assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração:
a) apresentar razões e quesitos;
b) (VETADO).
§ 10.  Nos autos sujeitos a sigilo, deve o advogado apresentar procuração para o exercício dos direitos de que trata o inciso XIV.
§ 11.  No caso previsto no inciso XIV, a autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências.
§ 12.  A inobservância aos direitos estabelecidos no inciso XIV, o fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente.” (NR).
 

 Assim, diante desta mudança legislativa, haveria agora ampla defesa e contraditório nos procedimentos investigatórios (inquérito policial e ministerial)? Em caso positivo, como isso seria feito na prática?
Nesse contexto, o presente artigo tem o objetivo de discutir a referida mudança legislativa e apresentar soluções para seu funcionamento na prática.


1 NATUREZA JURÍDICA DO INQUÉRITO POLICIAL

Muito se discute sobre a aplicação dos princípios da ampla defesa e contraditório em procedimentos investigatórios. A doutrina e jurisprudência nacionais entendem, de forma amplamente majoritária, que os procedimentos investigatórios são inquisitórios, não se aplicando a ampla defesa e o contraditório. De acordo com as lições de Renato Brasileiro de Lima (2013. p.83):

“Isso porque se trata de mero procedimento de natureza administrativa e não de processo judicial ou administrativo, já que dele não resulta a imposição de nenhuma sanção. Tal característica está diretamente relacionada à busca da eficácia das diligências investigatórias lavadas a efeito no curso do inquérito policial. Deveras, fossem os atos investigatórios precedidos de prévia comunicação à parte contrária, seria inviável a localização de fontes de prova acerca do delito, em verdadeiro obstáculo à boa administração do aparato policial. Funciona o elemento surpresa, portanto, como importante traço peculiar do inquérito policial”.

Embora alguns doutrinadores, como Marta Saad defendam que a ampla defesa deve estar sempre presente, mesmo nas investigações preliminares, trata-se de posição sem abrigo nos Tribunais Superiores. A referida autora defende sua tese através dos seguintes argumentos (2004, p.221-222):

 “Se não se mostra apropriado falar em contraditório no curso do inquérito policial, seja porque não há acusação formal, seja porque, na opinião de alguns sequer há procedimento, não se pode afirmar que não se admite o exercício do direito de defesa, porque esta tem lugar ‘em todos os crimes e em qualquer tempo, e estado da causa e se trata de oposição ou resistência à imputação informal, pela ocorrência de lesão ou ameaça de lesão”.

2   MUDANÇAS INTRODUZIDAS PELA LEI 13245/2016

Nessa linha de pensamento, embora já existam vozes defendendo uma interpretação ampliativa da nova lei, no sentido de conferir aos advogados o direito subjetivo de participar ativamente das investigações policiais e da lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, acompanhando todos os atos e oferecendo perguntas durante as oitivas realizadas pelo Delegado, essa não é a melhor interpretação a ser extraída das normas em análise, pelos seguintes motivos:

1. Fere o princípio da razoabilidade o fato de uma alteração tão significativa no processo penal brasileiro ocorrer através de uma norma especial (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil) e não através do Código de Processo Penal, onde estão dispostas de forma detalhada as normas referentes ao inquérito policial.
Portanto, se o Legislador desejava alterar normas de processo penal deveria tê-lo feito através de modificação do próprio Código de Processo Penal e não através de uma lei especial voltada, apenas, a certa categoria profissional.

2. A aplicação irrestrita do contraditório e da ampla defesa nos procedimentos preliminares inviabilizaria a própria finalidade da investigação preliminar, pois, certamente, com a atuação do advogado, acompanhando e formulando perguntas às testemunhas e às vítimas, o inquérito policial (e demais procedimentos preliminares) perderia a sua principal ferramenta: a surpresa.

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O elemento surpresa é, sem dúvida, ínsito ao trabalho de investigação. Por conseguinte, avisar previamente (contraditório) e oportunizar a defesa em cada diligência seria, por óbvio, anunciar ao investigado todos os passos da polícia, possibilitando a destruição de fontes de prova essenciais à elucidação do crime.

3.A expressão “assistir a seus clientes” significa que o advogado tem direito a acompanhar os atos em que o investigado está presente (declarações, interrogatório, acareações, reconhecimentos, dentre outros), não podendo o Delegado impedir a participação do defensor.      

  Porém, apesar de possível a presença do advogado, esta continua não sendo indispensável à realização dos atos, ou seja, caso o investigado não deseje ou não possua advogado, não haverá qualquer ilegalidade na feitura do seu interrogatório sem o acompanhamento de um defensor. Portanto, ainda está em pelo vigor a norma do artigo 306, parágrafo 1º do Código de Processo Penal “Dentro em 24h (vinte e quatro horas) depois da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.”

4.A palavra “quesitos” refere-se à perícia e não a eventuais perguntas formuladas às testemunhas e vítimas durante as inquirições presididas pela autoridade policial. Assim, a Lei 13245/2016, ao dar ao advogado a faculdade de apresentar quesitos na fase inquisitorial, complementou o artigo 159, parágrafo 3º do Código de Processo Penal, coadunando-se com o devido processo legal, uma vez que estão em baila provas pré-constituídas e, muitas vezes, irrepetíveis. Aliás, esse já era o entendimento de Guilherme de Souza Nucci (2015, p.366), antes mesmo do advento da nova lei:

“É evidente que durante a investigação policial, o indiciado não é considerado parte, nem tem direto a produção de prova, pois o procedimento é inquisitivo. Mas, por outro lado, não se deve perder de vista que muitas provas são pré-constituídas, isto é, não são realizadas novamente durante a instrução judicial, tornando-se definitivas. Neste caso, não se poderia evitar que o indiciado participasse da sua produção, sem ferir o direito ao contraditório e a ampla defesa. Defendemos, pois, que o indiciado, por seu defensor, pode apresentar quesitos, na fase extrajudicial, quando se tratar de prova pericial pré-constituída”.

CONCLUSÃO:

Diante de tudo que foi apresentado, conclui-se que a Lei 13245/2016, que alterou o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8906/1994), não tornou o inquérito policial contraditório, afastando sua natureza inquisitiva.
Na verdade, a alteração legislativa apenas veio regular o que já vinha sendo feito rotineiramente nas delegacias. Assim, continua não assistindo direito ao advogado de participar das inquirições de testemunhas e vítimas, muito menos de formular perguntas (mesmo durante a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante).

Da mesma sorte, a novel lei não trouxe a obrigação ao Delegado de intimar previamente o defensor do suspeito/indiciado para a prática dos atos da investigação (depoimentos, interrogatórios, reconhecimentos, reconstituições, etc.), uma vez que não há estrutura dentro das Delegacias para esse fim e, principalmente, porque essa obrigação frustraria, sem dúvida, o trabalho policial.

O principal mister da polícia é identificar a autoria e a materialidade de um crime, dando a resposta exigida pela sociedade aquele que infringe as leis e demonstra não saber conviver em sociedade. Durante a investigação o Delegado de Polícia é o responsável por assegurar as garantias e direitos fundamentais constitucionais de todos os envolvidos, vítimas, suspeitos e testemunhas, contudo, sem nunca esquecer que o trabalho de investigar não pode ser público, não pode ser aberto, não pode ser conhecido, não pode ser anunciado, sob pena de restar frustrado o escopo principal da investigação, conforme retro mencionado: identificar o autor e localizar elementos de informação que representem a materialidade do delito.


BIBLIOGRAFIA:
SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2004.
BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Curso de Processo Penal. Niterói-RJ, Editora Impetus, 2013.
NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de Processo Penal e Execução Penal, 12ª Edição, Rio de janeiro, Editora Forense, 2015.
Constituição da República Federativa do Brasil, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm, acesso em 05.03.2016.
Lei 3689/1941, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm, acesso em 05.03.2016.
Lei 8906/1994, disponível em http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8906.htm, acesso em 05.03.2016.
Lei 13245/2016, disponível em http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13245.htm#art1, acesso em 05.03.2016.
 

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Sobre o autor
Renata Malafaia Vianna

Delegada de Policia

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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