Uma das restrições editalícias mais polêmicas e que tem sido tema de diversas lides é,
inquestionavelmente, a que se refere à exclusão sumária de candidato em concurso público por
constar seu nome em ‘cadastros de restrição ao crédito’, tais como os conhecidos SPC e/ou
SERASA, de maneira generalizada. Trata-.se, muitas vezes, de uma restrição imposta à própria
participação em si do candidato nas etapas do concurso; noutras, no ingresso ao cargo, após a
aprovação em todas as etapas.
No que se refere ao primeiro caso, ou seja, ao ato que impede um cidadão de
‘simplesmente concorrer a determinado cargo público’, por via de concurso, seja ele qual for,
configura ainda mais gravoso o afronto à legalidade, pois conforme já sabido e relatado neste
trabalho, o momento legal de se exigir os preenchimentos dos requisitos de habilitação contidos
no edital é o do ato da posse, e não o da inscrição. É de se registrar que este entendimento tem
sido cada vez mais ratificado pelos Tribunais, os quais têm classificado como ilegal o ato de
exigir tais cumprimentos editalícios já no momento da inscrição do concurso pelo candidato ao
pretenso cargo público.
Já no que tange à segunda hipótese, que se refere a candidato regularmente aprovado
em concurso público em todas as etapas, mas cuja exclusão antecede a posse por motivo de
investigação social e constatação de que seu nome consta em algum cadastro de restrição ao
crédito, imposição esta condita no respectivo edital do concurso, também entendemos que
persiste a ilegalidade na restrição taxativa, todavia, outros argumentos pendem para tal
constatação.
Não é à toa que diferentemente do particular, seja este pessoa física ou jurídica, a
Administração Pública deve observar, na prática de seus atos, vários princípios que a regem e
que a impõem a postura de preponderância diante do particular, tendo sempre como foco o
interesse público, sob pena de não observar, dentre outros princípios, o da impessoalidade.
Noutras palavras, não existe a Administração Pública para a realização de seus próprios
interesses, mas tão somente para o alcance do interesse público, daí a sua obrigação de observar
os princípios que a regem e os quais controlam e limitam o seu poder, a fim de evitar excessos
ou desvios no que alude ao interesse colimado.
Ademais, diante da complexidade que envolve a Administração Pública, haja vista o
leque de interesses que esta engloba mediante a sociedade, não há que se questionar que o fato
de generalizar seus atos, repetidamente e sem levar em conta especificidades, equivaleria a um
verdadeiro ‘abismo jurídico’. Felizmente, a própria evolução do Direito e as decisões que
emanam dos nossos Tribunais se incumbem de atualizar a aplicação da lei, coibindo que atos
desprovidos de flexibilidade e cuja rigidez das leis o tornaram injustos ou ilegais sejam evitados
ou invalidados.
No caso em foco, em que um candidato ao ingresso em cargo público é excluído
e considerado reprovado por ter, à época da posse, seu nome inscrito em cadastros de
restrição ao crédito, se nos parece esculpido de total falta de razoabilidade por parte do
administrador, característica esta que esboça o Princípio da Razoabilidade, dando-lhe a
conseqüente configuração da ilegalidade.
Pecará o administrador, se na prática de seus atos e imbuído do poder que detém, agir
de maneira indiscriminada e reprovar todo e qualquer candidato que tiver seu “nome sujo”,
conforme o termo vulgarmente utilizado, constatado por meio de certidões que são exigidas no
edital do certame. A este propósito, há que se distinguir, e aqui entra o dever do administrador
de aplicar o princípio da razoabilidade, entre o devedor contumaz que reiteradamente deixa de
cumprir suas obrigações e compromissos os quais assumiu, mesmo sabedor de que não detém
recursos para honrá-los, e que muitas vezes já se configura um verdadeiro estelionatário; e
aquele outro devedor que, independentemente de sua vontade e/ou por razões momentâneas
deixou de honrar alguns pagamentos, talvez pelo próprio fato de encontrar barreiras no
mercado de trabalho, e por isso mesmo, ter se empenhado e obtido uma difícil aprovação em
um emprego público. Ou seja, desclassificar este candidato, seja no ato da inscrição ou no ato
da posse, seria uma maneira abusiva e totalmente infundada por parte do administrador, que
ignorou a sua obrigação de observar os princípios que regem a Administração Pública,
sobretudo o da razoabilidade.
Vejamos uma recente decisão, proferida pelo Conselho Especial do TJDFT em 24 de
março de 2015, que permitiu que uma candidata eliminada do concurso para Técnico
Penitenciário, na fase de Sindicância e Vida Pregressa, continuasse participando da seleção. Por
unanimidade dos votos, o Conselho Especial do Tribunal de Justiça do DF confirmou a liminar
proferida no mandado de segurança ajuizado pela impetrante no sentido de anular o ato que a
eliminou do concurso por ter restrição cadastral, vejamos:
“ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA.
CONCURSO PÚBLICO. TÉCNICO PENITENCIÁRIO.
PRELIMINAR DE INADEQUAÇÃO DA VIA. AUSÊNCIA DE
DIREITO LÍQUIDO E CERTO. NÃO ACOLHIMENTO.
SINDICÂNCIA DA VIDA PREGRESSA E INVESTIGAÇÃO
SOCIAL. DÍVIDAS E CHEQUES SEM FUNDOS. NÃO
CARACTERIZAÇÃO DE INIDONEIDADE OU AUSÊNCIA
DE CONDUTA ILIBADA. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA
PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE.
SEGURANÇA CONCEDIDA.
Se os documentos que acompanham a inicial são suficientes
para demonstrar a suposta ilegalidade, não há falar-se em
ausência de prova pré-constituída ou de direito líquido e
certo, razão pela qual admissível o presente mandamus.
Embora lícita a fase do concurso de Técnico Penitenciário
denominada Sindicância de Vida Pregressa e Investigação
Social, a Administração deve ter sempre em conta os
princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, bem
como observância a todo o sistema de garantias
constitucionais, a fim de evitar larga margem ao arbítrio que
as avaliações subjetivas propiciam.
Fundando-se o ato administrativo impugnado na emissão,
pela impetrante, de cheques sem a devida provisão de fundos,
indiscutível a violação aos princípios da proporcionalidade e
da razoabilidade, pois tal fato, por si só, sem a devida
apuração de todas as circunstâncias que levaram a candidata
a assunção de tais dívidas, não é capaz de denotar que
possuía inidoneidade moral ou tenha condutas não
ilibadas”.(20080020154146MSG, Relator CARMELITA
BRASIL, Conselho Especial, julgado em 24/03/2015)
A candidata aprovada no concurso público para o cargo de Técnico Penitenciário foi
contraindicada na fase de Sindicância e Vida Pregressa, tendo em vista inscrição nos órgãos de
proteção ao crédito. Por conta disso, impetrou ação na Justiça contra o ato que a excluiu do
concurso na referida fase. O concurso cujo edital foi lançado em novembro de 2007 era
composto de duas etapas, sendo que a primeira subdividia-se em quatro fases: 1) prova
objetiva; 2) prova de aptidão física; 3) sindicância de vida pregressa e investigação social; 4)
avaliação psicológica. A segunda etapa compreendia o Curso de Formação Profissional.
Embora tendo sido aprovada nas duas primeiras fases da primeira etapa , a candidata fora
contraindicada na terceira etapa por haver 11 registros de cheques sem fundos em seu nome no
ano de 2005.
Ocorre que, para o Distrito Federal, a emissão de cheque sem fundos denota
descontrole financeiro, atentando contra a ordem pública e configurando ilícito penal. Deste
modo, a autoridade coatora impetrada, Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal,
prestou informações e sustentou que o candidato deve ter idoneidade moral inatacável, sendo
esse o requisito exigido no edital regulador do certame, bem como na Lei Distrital nº
3669/2005, que criou a carreira de atividades penitenciárias.
Porém, ao proferir o voto, a relatora discordou da posição do Distrito Federal no
sentido de que a autora costumeiramente emitia cheques sem fundos, já que as cártulas que
ensejou a inscrição datam de 2005, momento em que se encontrava desempregada. "Não
observo que a impetrante tentou locupletar-se", sustenta a relatora no voto.
Ainda no julgamento, a desembargadora disse que a administração não deu
oportunidade para a candidata explicar como adquiriu as dívidas, considerando-a inidônea de
pronto. "Tais fatos não têm o condão de abalar a moral ou tirar a idoneidade do candidato",
assegurou no voto.
Neste sentido, vejamos também a seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul, em processo no qual estava objetivando a autora permissão para
freqüentar curso de formação, sob a alegação de que tendo prestado concurso público para o
cargo de Escrivão de Polícia e obtido classificação que a habilitava a prosseguir no certame, foi
dele eliminada por estar seu nome inscrito no cadastro da SERASA (instituição de proteção ao
crédito):
CONCURSO PÚBLICO. Candidata alijada de concurso
público para o provimento do cargo de Escrivã de Polícia
ante o argumento de estar inscrita no SERASA por
compromissos pecuniários assumidos e não adimplidos.
Emissão de cheques sem provisão de fundos.
Justificativas apresentadas que demonstraram
incapacidade temporária para a solução das dívidas,
inclusive com grave problema de doença familiar.
Interpretação do edital do concurso, que se erige como lei
para todos os partícipes. Incidência, na espécie, dos
princípios constitucionais da proporcionalidade e da
razoabilidade ao efeito de arrostar a decisão
administrativa impeditiva de prosseguir no certame.
Precedente desta Corte. SENTENÇA DE
IMPROCEDÊNCIA. PROVIMENTO DO RECURSO DE
APELAÇÃO. (AC N 70002436368. 3ª CÂMARA CÍVEL
TJRS, REL. DES. AUGUSTO OTÁVIO STERN)
Reportando-nos à defesa do candidato, não restam dúvidas de que este deverá se valer
do pré-citado princípio da razoabilidade1, o qual se furtou de observar o administrador quando
da exclusão daquele do certame público, e intentar uma ação de conhecimento e mandado de
segurança para conter o abuso da autoridade e reaver o seu direito de ser nomeado e tomar
posse do cargo público.
Vejamos, ainda, um trecho do voto do Desembargador Otavio Augusto Stern,
na supra-mencionada Apelação Cível, que demonstra com exatidão a injustiça deste
tipo de restrição: “Aceitar tal argumentação implicaria em deixar ao desamparo total
aqueles que mais necessitam, jogando-os em uma petição de princípio: porque está
desempregado e precisa sobreviver, contrai dívidas; se possui dívidas não pode
assumir um emprego (no caso, público), permanecendo desempregado e contraindo
dívidas…”.
Aproveitando a oportunidade para transcrever outra decisão proferida pela
egrégia Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul , em
processo análogo, no qual a Administração estava determinada a alijar a demandante do
1 O Princípio da Razoabilidade, que também é chamado de Princípio da Vedação do Excesso, tem por
escopo adequar e compatibilizar meios e fins para que se evite, por parte do administrador público,
restrições, excessos ou abusos perante o administrado, já que este tem seu direito assegurado
constitucionalmente de ser tratado de forma impessoal pela Administração Pública, e com a devida
razoabilidade que exige cada caso.
Inobstante, existe tal princípio para delimitar a própria atuação do administrador, pois não é raro ver-se
publicamente aquele que age em nome da Administração Pública, tomando-lhe as vezes, agindo de
acordo com seus interesses e valores pessoais e ignorando o interesse público. Não é demais também
lembrar que a razoabilidade está intimamente ligada às reais necessidades da coletividade e à legalidade e
à economicidade públicas.
certame para Escrivão de Polícia, após aprovação na fase objetiva e na de capacitação
técnica, sob o fundamento de que reprovada na Fase Moral e Social da Sindicância da
Vida Pregressa (fase de caráter eliminatório segundo o Edital). Em face da existência de
cheques sem a devida provisão de fundos e conseqüente cadastro no SERASA, o
Conselho Superior de Polícia concluiu pela inaptidão da concorrente, sendo que o
Estado fundamenta sua defesa no poder discricionário da Administração:
“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO.
CONCURSO PÚBLICO. CONCURSO PARA
INGRESSO NA CARREIRA DE ESCRIVÃO DE
POLÍCIA, 1ª TURMA DE NÍVEL SUPERIOR. EDITAL
N.º 029-98. APROVAÇÃO NAS TRÊS ETAPAS DO
CERTAME. SINDICÂNCIA DA VIDA PREGRESSA.
DÍVIDAS. IMPEDIMENTO DE FREQÜENTAR O
CURSO DE FORMAÇÃO. MANDADO DE
SEGURANÇA. DEFERIMENTO DE LIMINAR.
MÉRITO PELA DENEGAÇÃO NA ORIGEM.
PROVIMENTO. APELAÇÃO PROVIDA. CONCESSÃO
DA ORDEM. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70001495092,
QUARTA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO RS, RELATOR: DES. WELLINGTON PACHECO
BARROS)
Veja-se que tal aspecto concernente ao abuso de autoridade fora bem salientado pelo
eminente Desembargador Wellington Pacho Barros, na decisão supra referida, cujo
trecho reproduz-se a seguir:
“(...) a discricionariedade da Administração na análise da
vida pregressa do candidato não pode ir ao ponto que foi.
“E o fato de constar essa exigência nos artigos 6º, § 3º, e 11,
da Lei n.º 10.728-96 e artigo 31 do Decreto n.º 37.419-97 não
faz da Administração a julgadora do que seja ou não mácula
para vedar o acesso aos cargos públicos. (...) A situação
poderia ser diversa se o fato de o impetrante ter dívidas
estivesse elencado na lei como fato impeditivo ao acesso dos
cargos públicos. E não está, como se pode comprovar pelo seu
exame, às fls. 83-98 e, especialmente, à fl. 94, sobre a
sindicância da vida pregressa.”
Nesse mesmo sentido se deu o (brilhante) parecer ministerial exarado pelo Procurador
de Justiça, DR. JOÃO BATISTA MARQUES TOVO que oficiou no processo, “infra”
reproduzido sob aplausos , verbis:
“(...). 3. Alijado do concurso para o cargo de Escrivão de
Polícia em razão da sindicância sobre a vida pregressa por
decisão do Conselho Superior de Polícia, o recorrente
impetrou o presente mandado de segurança visando garantir o
seu alegado direito de acesso ao curso e ao cargo.
Malsucedido, recorre insistindo em seus argumentos.
4. Na sindicância realizada sobre a vida pregressa do
candidato, foi constatado pelo Conselho Superior de Polícia o
seguinte: “restou demonstrado que o mesmo apresenta
antecedente policial, por violação de domicílio, títulos
protestados, atingindo a cifra superior a R$13.000,00,
pendências bancárias da ordem de R$727,27, cheques sem
fundos, em números e valores não perfeitamente definidos,
fatos que omitiu no questionário específico.” (v. fl. 165). No
que tange ao antecedente policial, restou claro que o autor é
inocente, tendo em vista as certidões por ele juntadas (v. fls.
130 à 141). Ademais, não existe processo contra o autor por
violação de domicílio (v. fl. 19). No que tange aos títulos
protestados, o fato de ser o autor obrigado por dívida vencida,
que inclusive foi posteriormente renegociada, não é motivo de
reprovação em prova de capacitação moral, pois esta é a
situação de milhares de brasileiros honestos, que não
conseguem quitar suas dívidas face a usura instalada no país
pelas instituições de crédito e assemelhados. Portanto, o fato
do autor contrair dívidas não é motivo para ser excluído do
certame por falta de capacidade moral. Ademais, ficou
comprovado que o não pagamento dos compromissos
assumidos foi devido à demissão ocorrida em 11-8-1998 (v. fl.
38), o que é perfeitamente explicável, tendo em vista o abalo
que causa nas vidas das pessoas a perda de um emprego. O
fato do autor possuir dívidas não é indicativo de falta de
“capacidade” moral. (...)
“5. A Constituição Federal prevê em seu artigo 37, inciso I, o
direito de acesso aos cargos públicos: “os cargos, empregos e
funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham
os requisitos estabelecidos em lei...” Já no inciso II do mesmo
artigo, está expresso a forma de acesso aos cargos públicos:
“a investidura em cargo ou emprego público depende de
aprovação prévia em concurso publico de provas e títulos, de
acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou
emprego, na forma prevista em lei...“. No artigo 5º, § XXXV,
está disposto que “a lei não excluirá da apreciação do poder
judiciário lesão ou ameaça a direito.” Dos artigos
mencionados, concluímos que o autor preencheu os requisitos
estabelecidos em lei para o ingresso ao cargo público. O
critério para a sua eliminação foi sua conduta moral,
considerada inadequada para o cargo, consubstanciada nas
dívidas contraídas após a demissão de seu antigo emprego.
Em dizer que é imoral conduta que, segundo o senso comum e
o princípio da razoabilidade, não o é, a Administração está
indo muito além em sua reconhecida discricionariedade.
Consagrado o seu entendimento teremos concretamente a
violação do direito de acesso aos cargos públicos e a violação
de um direito social basilar em nossa sociedade: o direito ao
trabalho.
6. Isto posto, a manifestação do Ministério Público de segundo
grau vai no sentido de que seja provido o recurso,
concedendo-se a ordem. (...)”
Neste sentido também a decisão da Quarta Câmara Cível do TJRS , na apelação cível
n.º 596009126:
“Concurso Público. Policia Civil. Candidato que já é policial
militar reprovado na prova de capacitação moral. Em
principio, tem o Estado o direito-dever de auscultar a vida
pregressa dos candidatos a concurso público, a fim de avaliá-
los moralmente. Todavia, se o candidato já é soldado PM,
sendo irrepreensível a sua ficha funcional, revela-se
discriminatória a decisão que o reprovou por meros débitos no
SPC. Ação procedente. Sentença mantida. Apelo desprovido,
prejudicado o reexame necessário. (TJRGS. APC 596009126,
4ª Câmara Cível, Rel. Des. Ramon Georg Von Berg. J. 03-04-
96. Origem: Porto Alegre).