O susto, a pedra e o caminho: comoriência e sucessão

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Discute-se o instituto da comoriência atrelado aos impedimentos de acesso à herança e descendência como excrescência indesejável.

Faltando pouco tempo para concluir o curso de Direito, tomei verdadeiro susto na primeira aula da disciplina de Direito das Sucessões. Isto porque, enquanto vários ramos do direito sofreram avanços significativos nos últimos anos, para se adequarem às mudanças de nossa época, o instituto da comoriência (artigo 8º do Código Civil /2002), atrelado aos impedimentos de acesso à herança e à descendência, permanece misteriosamente preso à antiguidade.

Em que pese o fato de a explicação do professor ter sido instigante o suficiente para despertar meu interesse de pesquisadora, trata-se de uma situação descabida.  Essa união “espúria”, não faz nenhum sentido, pelo menos para a grande maioria da população brasileira. Quiçá, para os possuidores de grandes fortunas, acumuladas apenas em solo nacional.  Meu argumento é simples.

Entre os doutrinadores, parece prevalecer a ideia de que o “direito de representação” implica a atuação do herdeiro em nome próprio e/ou a sucessão se dar, necessariamente, para aquele que ocupa situação de primeiro grau na linhagem. 

Nesta perspectiva, vale lembrar que o conceito de representação – como, inclusive está sinalizado na Constituição de 1988 - é muito mais amplo, podendo ser representante quem não possui qualquer vínculo de parentesco com o representado. Na mesma linha de pensamento, o Código Civil/2002 também explica a relação entre mandante e mandatário.

A morte não quebra a linha de descendência, tampouco implica que deva ser exercida pelo herdeiro de primeiro grau. Sobretudo porque o critério para o descendente herdar é de que esteja vivo, podendo a busca percorrer toda a linhagem construída pelo morto.

Não tem defesa lógica, por exemplo, a companheira de um herdeiro poder acessar patrimônio e bens “indiretamente”, se um herdeiro em linha direta, seja em qualquer grau de parentesco, não puder fazê-lo. Também é incoerente com os princípios da livre iniciativa, tão festejados no país, considerando que, em última instância, se a comoriência impedir a sucessão a herança jacente se impõe.

A Antropologia historicamente tem desenvolvido estudos sobre o parentesco que poderão contribuir para que o Judiciário possa posicionar-se, na ação de Repercussão Geral 1541353/RJ em trâmite e muitos juízes têm decidido na direção de não dificultar o direito à sucessão. As populações negras e indígenas brasileiras têm lições a dar sobre as relações sanguíneas, materiais e imateriais, que unem mortos e vivos e são inquebrantáveis.

A abertura promovida pelo Judiciário, no tocante à união homoafetiva, à paternidade socioafetiva, à adoção, à inseminação artificial post mortem, em síntese, à promoção da família, permitiu que temas controversos passassem a ser tratados no âmbito da realidade histórica e concreta.  Seria um contrassenso que uma ficção do passado remoto continuasse a nos incomodar. Uma excrescência dispensável.

Assim como,  por exemplo, na vigência do Estatuto da Criança (ECA, 1990), ter sido proposto Projeto de Lei em 2008 para a implementação do parto anônimo, reeditando a “roda dos desvalidos”, mantidos pelas Casas de Misericórdia do período colonial, que foi arquivado por inconstitucionalidade e/ou injuridicidade em 2011.

Afinal, no ECA é prevista a possibilidade de a mãe entregar o filho em adoção, sem incorrer em crime ou qualquer tipo de responsabilidade civil. Os dados da família biológica são levados ao processo judicial de adoção, permitindo que, no futuro, o filho possa ter acesso a eles. Dessa forma é possível examinar um dos mais severos impedimentos para o casamento, no momento da habilitação: a proibição de ascendente casar com descendente, de irmão casar com irmã e vice-versa, desconsiderando a interdição imposta por incesto, previsto no artigo 1.521, incisos I e IV do Código Civil/2002.

Finalizando,  em conformidade com o artigo 1.596 do Código Civil de 2002:

Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas discriminatórias relativas à filiação. Tanto os filhos consanguíneos como os socioafetivos têm os mesmos diretos e deveres, possuem a mesma capacidade sucessória e ocupam a mesma posição de herdeiros necessários (grifo meu)

Por sua vez, Caio Mário da Silva Pereira afirma que, “existe um direito ao nome civil, direito de natureza pessoa e não-patrimonial, participando com o estado, de que é forma e expressão do caráter integrativo da personalidade, ao mesmo tempo que envolve um interesse social (2006, p. 244). Mais adiante:

O mais importante dos efeitos do reconhecimento é a atribuição do filho ao direito sucessório; é a capacidade por ele adquirida para herdar ab instato do pai e dos parentes deste (...) quaisquer filhos, inclusive os que na linguagem das Ordenações eram considerados de ‘danado coito’, ou simplesmente, ‘espúrios’ herdarão, em igualdade de condições com os havidos das relações de casamento (2006, p.335).

O Código Civil de 2002 merece ser submetido a um pente-fino: revisto com urgência para regularizar o que nas leis foi omitido, oferecer coerência a artigos de iguais e diferentes leis e preencher lacunas para explicitar combinações. Caso contrário, que não se reclame do “ativismo” do Judiciário

Sobre a autora
Ana Lúcia Eduardo Farah Valente

Titular da UnB. Pós-Doutorado em Antropologia da Educação (Bélgica). Pós- Doutorado em Economia UnB. Graduada, Mestre e Doutora pela USP.

Informações sobre o texto

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