A constitucionalidade do Regime Especial de Fiscalização do Rio Grande do Sul

Devedores contumazes do ICMS e a Lei Estadual nº 13.711/11

30/03/2016 às 14:34
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Trata-se de uma análise do Regime de Fiscalização instituído pelo Rio Grande do Sul, através da Lei nº 13.711/11 e Decreto nº 48.494/11, na qual participei do grupo que construiu a minuta do decreto e, posteriormente, fui aplicador dos comandos legais.

                                               REGIME ESPECIAL DE FISCALIZAÇÃO

Os Estados da Federação passam por uma crise nas finanças e buscam, cada vez mais, alternativas para equilibrar suas contas deficitárias. O enxugamento da máquina, no caso do Rio Grande do Sul, parece ser insuficiente para fazer frente às despesas legais obrigatórias.

Diante deste contexto é preciso uma união de esforços. Também é o momento para rever algumas posições jurídicas, no nosso entender lesivas à sociedade. Em recente artigo, publicado em revistas especializadas e no site do SINDIFISCO-RS, fizemos uma abordagem técnica e jurídica sobre a falência dos instrumentos legais administrativos capazes de neutralizar a prática crescente de sonegação dos chamados devedores contumazes[1]. O entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante acerca da matéria, em seu aspecto criminal, foi questionado por elementos técnicos e argumentos jurídicos, buscando-se uma nova interpretação ao tipo penal delineado pelo art.2º, II, da Lei 8.137/90[2], no sentido de demonstrar a tipicidade da conduta do inadimplente contumaz de impostos.

A Administração Tributária, além de ter tolhidas as tentativas de punir criminalmente os contribuintes declaradamente devedores, tem enfrentado problemas quanto à manutenção destes contribuintes em Regime Especial de Fiscalização – REF, uma vez que os Tribunais são reticentes em sua aplicação e constitucionalidade. Farei, aqui, uma breve análise do Regime instituído pelo Rio Grande do Sul, através da Lei nº 13.711/11 e regulamentado pelo Decreto nº 48.494/11, na qualidade de participante do grupo que construiu a minuta do decreto e, posteriormente, aplicador dos seus comandos legais.

O REF teve sua inconstitucionalidade arguida pelo Partido Social Liberal na ação direta de inconstitucionalidade nº 4.854, através do escritório de advocacia Larcerda & Lacerda Advogados. Em suas alegações, os demandantes afirmam violação do REF a artigos da Constituição Federal e que tal regime afrontaria três súmulas do Supremo Tribunal Federal, de nº(s) 70, 323 e 547, porque seria uma maneira obliqua de cobrar tributos.

O Órgão Pleno do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em duas oportunidades, declarou a constitucionalidade do REF, a primeira em julho de 2012, no incidente de inconstitucionalidade nº 70048229124, por ampla maioria e a segunda, em junho de 2015, na ação de nº 70057809915, sendo que dos 25 (vinte e cinco) Desembargadores do órgão, apenas dois foram contrários à aplicação de forma vinculante da primeira decisão. Os demais reconheceram plenamente válida a Legislação que instituiu tal Regime Especial.

A Jurisprudência pátria vem modificando seu entendimento, principalmente o Superior Tribunal de Justiça – STJ, acerca da possibilidade de inclusão em REF de contribuintes devedores reincidentes de impostos. O Supremo Tribunal Federal, apesar de apresentar vários julgados contrários a Regimes Especiais instituídos por Estados da Federação, vem sinalizando com a possibilidade de um novo entendimento sobre a questão. Neste sentido, citamos parte do recurso extraordinário nº 627.543, que julgou a constitucionalidade da exigência de inexistência de débitos exequíveis para enquadramento de empresas no Simples Nacional – SN:

[…] Admitir o ingresso no programa daquele que não possui regularidade fiscal (lato sensu) e que já adiantou para o Fisco que não pretende sequer parcelar o débito, ou mesmo buscar outra forma de suspensão do crédito tributário de que trata o art. 151 do CTN, é incutir no contribuinte que se sacrificou para honrar seus compromissos a sensação de que o dever de pagar seus tributos é débil e inconveniente, na medida em que adimplentes e inadimplentes recebem o mesmo tratamento jurídico. […].”

O mesmo STF, em outro julgamento, reconheceu como constitucional medida muito mais drástica que o REF, ou seja, o cancelamento de uma inscrição de um contribuinte devedor contumaz da União, medida prevista em um decreto federal, conforme julgamento proferido no recurso extraordinário nº 550.769, de maio de 2013.

Adentrando no aspecto prático do REF, instituído no RS, acabamos restritos a três incisos do artigo 4º, do decreto nº 48.494/11. Apenas estes três dispositivos são suficientes para estancar a inadimplência contumaz dos devedores do ICMS e, em razão disso, são estes incisos que analisaremos e demonstraremos estarem em consonância com a Constituição Federal e a própria legislação tributária e jurisprudência dos Tribunais Superiores. Os demais artigos e incisos são dispensáveis, não utilizados na prática ou apenas servem para reforçar medidas já institucionalizadas e aplicadas há um bom tempo pela Administração Tributária. Eis o artigo 4º:

Art.4º O contribuinte submetido ao REF ficará sujeito às seguintes medidas:

I - perda dos sistemas especiais de pagamento do ICMS previstos no RICMS, Livro I, art. 50;

II - pagamento na ocorrência do fato gerador, exceto nas saídas de estabelecimento varejista, do débito próprio e, quando for o caso, de responsabilidade por substituição tributária, conforme previsto no RICMS, Livro I, art. 46, I, "f";

NOTA 01 - As Notas Fiscais emitidas com destaque do imposto deverão conter a informação: "Contribuinte submetido à REF com vencimento do ICMS no fato gerador; o crédito fiscal somente é permitido mediante comprovante de arrecadação.".

NOTA 02 - A guia de recolhimento ou o comprovante do pagamento do ICMS próprio e do de substituição tributária deverá acompanhar as mercadorias, juntamente com o documento fiscal próprio, para fins de trânsito e, quando for o caso, de aproveitamento de crédito fiscal pelo destinatário.

NOTA 03 - O contribuinte com saldo credor apurado no mês anterior poderá compensá-lo com o imposto destacado no documento fiscal.

III - suspensão do diferimento do pagamento do imposto, conforme previsto no RICMS, Livro III, art. 1º, § 4º;”

Os Incisos I e II nada mais são que uma mudança do prazo de pagamento dos impostos, que passa a ser no fato gerador da operação. Não é matéria objeto de reserva legal, sendo os prazos de pagamento instituídos e alterados por decreto, para várias operações e mercadorias, autorização prevista na Lei do ICMS, nº 8.820/89, em seu artigo 24. Discussão a respeito desta medida já foi fulminada dentro do Tribunal de Justiça e nos Tribunais Superiores, inclusive no STF, neste sentido citamos os recursos extraordinários nºs 195.218/MG, 172.394/SP e 140.669/PE.

nota 01 foi instituída com o objetivo de preservar o cliente do contribuinte em REF, dando publicidade na nota fiscal da necessidade de pagamento no fato gerador e arquivamento da guia de pagamento pelo cliente. Tal publicidade, na prática, é até dispensável, uma vez que a lista dos REFs vai para o site da Fazenda. Os devedores contumazes em REF contestam esta “exposição”, porém, tal irresignação é contraditória em si mesma, já que tais contribuintes sempre figuraram no site da Fazenda como devedores na lista de inscritos em dívida ativa, inclusive com CNPJ e nome divulgados na internet.  

Não há inovação alguma nesta publicitação. Os Tribunais e o próprio CNJ reconhecem e recomendam o protesto de dívidas, medida amplamente utilizada na Justiça Trabalhista, com relação nominal dos seus devedores. O setor privado e diversos órgãos públicos, como o Ministério da Fazenda, que divulgou recentemente a lista de seus 500 maiores devedores, adotam esta medida. Fica o questionamento, seria constitucional e proporcional divulgar nominalmente os salários dos servidores públicos e não a relação de devedores contumazes do erário, que distorcem o mercado concorrencial e se apropriam do imposto que cobram do seu cliente?

 O Transporte com a guia de pagamento, nota 02, é obrigação acessória prevista em regulamento sempre que o transporte se dá com operações sujeitas ao pagamento no fato gerador, pois torna possível a fiscalização e o fiel cumprimento da obrigação principal. Novamente, nada de inovação no decreto que instituiu o REF. A nota 3 não é objeto de qualquer contestação, eis que reafirma o princípio constitucional da não cumulatividade.

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inciso III trata da suspensão do diferimento, instituído pelo Estado, com autorização em Lei, nos termos do §6, “a”, do art.31, da Lei 8.820/89, ou seja, apesar de poucas aplicações práticas dentro do REF, é medida perfeitamente constitucional. Neste sentido colacionamos julgados do STF, entre eles a ADI nº 2.056/MS e Eresp nº 1.119.205/MG.

Como os demais artigos e incisos de tal decreto não são de aplicação prática na fiscalização dos contumazes, em praticamente nada afetaria sua supressão do decreto. O que afirmamos com isto é que as alegações de inconstitucionalidade não se sustentam, para isto basta analisar cada inciso do artigo 4º, do decreto nº 48.494/11 que veremos que todos já foram objeto de análise no STF e declarados constitucionais em diferentes julgados. Não há inovação e sim, utilização de forma conjunta, para casos extremos de sonegação, desvio concorrencial e enriquecimento ilícito, planejados dolosamente contra o erário.

Por mais estranho que pareça, temos casos de contribuintes que optaram por continuar no REF mesmo após deixarem de serem devedores contumazes. O motivo alegado foi de que, assim, suas dívidas não cresceriam, ou seja, fatos como este só reafirmam ser o REF medida proporcional, justa e, seu regular cumprimento, não afeta em absolutamente nada o contribuinte. A empresa que passa a recolher pelas novas operações é tratada como qualquer outro contribuinte, não precisa regularizar o passado para sair do REF e não há interesse algum do Fisco em interferir em suas operações, pelo contrário, constrói-se um ambiente favorável a continuidade da atividade empresarial, desta vez, com a colaboração de todos.


[1] LEI 13.711/11 [...] Art. 2º O contribuinte será considerado como devedor contumaz e ficará submetido a Regime Especial de Fiscalização, conforme disposto em regulamento, quando qualquer de seus estabelecimentos situados no Estado, sistematicamente, deixar de recolher o ICMS devido nos prazos previstos no Regulamento do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - RICMS.

§ 1º Para efeitos deste artigo, considera-se como devedor contumaz o contribuinte que:

I - deixa de recolher o ICMS declarado em Guia de Informação de Apuração do ICMS - GIA -, em oito meses de apuração dos impostos dos últimos doze meses anteriores ao corrente: [...].

[2] LEI Nº 8.137, DE 27 DE DEZEMBRO DE 1990.  Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. [...]  

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:   [...]    II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; [...].

Sobre o autor
Ricardo Fiorin

Auditor Fiscal no Estado do Rio Grande do Sul

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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