Kit boa-fé x Glosa de créditos de ICMS pela entrada de mercadorias provenientes de documentação posteriormente declarada inidônea

04/04/2016 às 09:32
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O presente estudo busca assegurar ao contribuinte seu direito de tomar créditos de ICMS pela entrada de mercadorias oriundas de documentação posteriormente declarada inidônea, com base na súmula 509 do Superior Tribunal de Justiça e recentes julgados.

INTRODUÇÃO

O ICMS - imposto sobre circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação - encontra-se previsto na Constituição Federal de 1988 (artigo 155, inciso II), é um tributo de competência dos Estados e do Distrito Federal, e é não-cumulativo, ou seja, deve haver a compensação (creditamento) do valor devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal (art. 155, §2º, inciso I, da CF).

O princípio da não-cumulatividade, ao qual o ICMS se sujeita, permite ao contribuinte adquirente de mercadoria cujo imposto tenha sido cobrado na operação anterior, tomar crédito do montante cobrado (ICMS x alíquota da operação anterior destacada na Nota Fiscal). O contribuinte terá direito a tomar crédito dentro do prazo de 05 anos, contados a partir da emissão do documento fiscal de compra e venda.

Pois bem, mas o que ocorre quando os créditos já tomados pelo contribuinte são tidos como indevidos pela Fazenda Estadual, sob o argumento de que a documentação é inidônea (‘Nota Fria’) com base em declaração de situação irregular da empresa emitente das notas fiscais publicada posteriormente à operação de compra e venda já realizada?  A resposta é simples, a Fazenda lavrará um auto de infração e imposição de multa (AIIM) objetivando a glosa (anulação) dos créditos tomados. 

Mas, neste contexto, quem está com a razão, o Fisco Estadual autuante ou o contribuinte autuado?

Para responder a esta pergunta, primeiramente se faz necessário expor os principais argumentos do contribuinte e da Fazenda, bem como o atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e suas consequências, o que será feito nos tópicos a seguir.


O CRÉDITO É OU NÃO DEVIDO? PRINCIPAIS ARGUMENTOS DO CONTRIBUINTE E DA FAZENDA ESTADUAL

É certo que tanto o contribuinte como a Fazenda Estadual possuem, em seu favor, inúmeras teses e argumentos a cerca do creditamento de ICMS proveniente de documentação posteriormente declarada inidônea, sendo que o contribuinte defende firmemente que os créditos são devidos, e o Estado, em interesse aos cofres públicos, finca posicionamento totalmente contrário como de costume.

Assim, relacionam-se abaixo os argumentos mais relevantes (alguns nem tanto) de ambas as partes.

O primeiro argumento do contribuinte, o qual, diga-se de passagem, entendo ser o mais interessante de todos, dispõe que a declaração de inidoneidade que foi publicada em momento posterior ao da compra e venda (emissão das notas fiscais), não produz efeitos no pretérito, uma vez que seus efeitos passariam a valer única e exclusivamente a partir da data de sua publicação (efeitos “ex-nunc”), não podendo retroagir e atingir o negócio jurídico já realizado, respeitando assim o princípio da publicidade (art. 5°, inciso LX e art. 37, ambos da Lei Maior).

Por outro lado, a Fazenda Estadual contrapõe tal argumento alegando que a declaração de inidoneidade trata-se de um ato declaratório, ou seja, tem como objetivo justamente apontar eventual fraude cometida no passado, sendo que seria impossível apontar fraude praticada no futuro, assim, seus efeitos devem retroagir no tempo até a data em que a empresa emitente das notas foi declarada em situação irregular (efeitos “ex-tunc”) e atingir os créditos, pois indevidos.

O contribuinte apresenta, sob outro prisma, que ao consultar a situação cadastral (SINTEGRA) da empresa vendedora à época dos fatos e verificar que a mesma constava em situação regular, fez a sua parte como contribuinte, uma vez que não cabe a ele o dever de fiscalizar o fornecedor, pois esta função é da Fazenda, conforme princípio da legalidade (art. 5º, inciso II e art. 174, ambos da Constituição), que por sua vez atestou a regularidade da empresa ao disponibilizar a consulta pública da empresa em situação regular.

Em contrapartida, o Fisco rebate tais argumentos expondo que, a situação cadastral da empresa fiscalizada não tem efeitos jurídicos de homologação expressa, o que permite a Fazenda apurar posteriores irregularidades.

Mais uma tese arguida pelo contribuinte é de que este não deveria sofrer qualquer represália do Estado (não deveria ser autuado), eis que os verdadeiros responsáveis pela fraude são os sócios da empresa emitente das notas fiscais, sendo que o contribuinte agiu nos termos da lei e tomou créditos de maneira regular.

No entanto, a Fazenda contesta este argumento mencionando que as NFs foram emitidas por empresa irregular, portanto, incapaz de gerar crédito devido, e por isso deve ser glosado.

Outro argumento trazido pelo contribuinte é o fato de que o imposto foi devidamente pago por ele na operação anterior, sendo assim, está autorizada a tomada de crédito de acordo com o princípio da não-cumulatividade do ICMS (art. 155, §2º, inciso I, da CF).

Todavia, a Fazenda contrapõe esta premissa, sob o entendimento de que o pagamento em si não torna a empresa (emitente das notas) irregular em regular, tampouco os documentos inidôneos e idôneos, portanto, o crédito permanece indevido.

Por último, o contribuinte informa que agiu de boa-fé, e que adotou todas as medidas cabíveis à época dos fatos, razão pela qual o crédito de ICMS não deve ser glosado, pois tal ato fatalmente violaria o princípio da segurança jurídica (art. 5º, inciso XXXVI, da Carta Magna).

Mas a Fazenda Estadual também se opõe com relação a este ponto, afirmando que a responsabilidade por infrações tributárias independe de intenção, uma vez que é objetiva (exegese do artigo 136 do Código Tributário Nacional). Portanto, a boa-fé ou a má-fé são irrelevantes quanto ao crédito tributário.

Isto posto, após verificar os principais pontos arguidos por ambas as partes, pergunto a você, qual o seu posicionamento sobre o tema? Importante destacar que ainda existem outras teses e argumentos utilizados, tanto pelo contribuinte quanto pela Fazenda, mas que não serão abordados neste artigo.


ATUAL POSICIONAMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Com o objetivo de pacificar esse tema e extinguir (ou ao menos reduzir) o conflito existente entre contribuinte e Fazenda Estadual, o Superior Tribunal de Justiça adotou o seguinte posicionamento, ao julgar (sob a égide dos recursos representativos de controvérsia – art. 543C do CPC de 1973) o Recurso Especial n° 1148444/MG:

EMENTA

“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. CRÉDITOS DE ICMS. APROVEITAMENTO (PRINCÍPIO DA NÃO CUMULATIVIDADE). NOTAS FISCAIS POSTERIORMENTE DECLARADAS INIDÔNEAS. ADQUIRENTE DE BOA-FÉ.

1. O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal (emitida pela empresa vendedora) posteriormente seja declarada inidônea, pode engendrar o aproveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade, uma vez demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, porquanto o ato declaratório da inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação (...)

2. A responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na exigência, no momento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente à assunção da regularidade do alienante, cuja verificação de idoneidade incumbe ao Fisco, razão pela qual não incide, à espécie, o artigo 136, do CTN, segundo o qual "salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato" (norma aplicável, in casu, ao alienante).

(...)

4. A boa-fé do adquirente em relação às notas fiscais declaradas inidôneas após a celebração do negócio jurídico (o qual fora efetivamente realizado), uma vez caracterizada, legitima o aproveitamento dos créditos de ICMS.

(...)” (Relator: Ministro Luiz Fux. Órgão Julgador: 1ª Sessão. D.O.U. 27/04/2010)

Tal entendimento foi, inclusive, convertido em Súmula, abaixo colacionada:

Súmula 509, STJ - "É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda".

Assim, pode-se afirmar que o atual posicionamento do STJ permite que o contribuinte aproveite créditos de ICMS decorrentes de documentação posteriormente declarada inidônea, desde que presentes dois requisitos, quais sejam, (i) a boa-fé; e (ii) a veracidade da compra e venda. Ademais, note que estes requisitos estão diretamente ligados, uma vez que demonstrada a veracidade da operação, restará comprovada a boa-fé do contribuinte.

Desta feita, resta ao contribuinte demonstrar a veracidade da compra e venda por ele realizada para ter seus créditos de ICMS glosados pelo Fisco. A ocorrência ou não das operações será comprovada mediante a apresentação de documentos, não taxados em lei específica até o momento, e que juntos, formam o “kit boa-fé” (assim intitulado por juristas).


KIT BOA-FÉ”

Como o próprio nome sugere, o kit boa-fé objetiva demonstrar a honestidade e a integridade do contribuinte que tomou crédito de ICMS pela entrada de mercadorias provenientes de documentação posteriormente declarada inidônea. O termo surgiu após a edição da Súmula 509 do STJ, e ganhou força pelo fato de conseguir afastar a glosa dos créditos e as multas aplicadas pela Fazenda Estadual.

Mas afinal, qual a documentação necessária para compor o tão valoroso kit boa-fé? Pois bem, embora existam diversos documentos aptos a afastar a glosa dos créditos em questão, seguem relacionados abaixo aqueles tidos como cruciais, dando ‘vida’ ao kit boa-fé, senão vejamos:

I – Declaração de inidoneidade da empresa emitente das Notas Fiscais em data posterior ao negócio jurídico realizado;

II – Comprovação de consulta da situação cadastral (SINTEGRA) da empresa emitente das NFs à época das operações, constando que esta se encontrava em situação regular; 

III – Livros Registro do contribuinte contendo as NFs escrituradas;

IV – Comprovantes de pagamento da operação de compra e venda;

V – Notas Fiscais de saída das mercadorias (no caso de terem sido posteriormente comercializadas);

Quer dizer que a simples apresentação destes documentos é capaz de superar a glosa de créditos de ICMS decorrente da entrada de mercadorias provenientes de documentação posteriormente declarada inidônea? Sim, uma vez que a boa-fé do contribuinte e a veracidade da compra de venda realizada estarão sobejamente comprovadas, respeitando o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (Súmula 509). Este também é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme recentes julgados:

EMENTA

“APELAÇÃO CÍVEL Ação anulatória de débito fiscal Pretensão à anulação de AIIM decorrente de recebimento de mercadorias desacompanhadas de documentação fiscal idônea Notas emitidas por empresa declarada inidônea posteriormente às transações Súmula 509 do STJ Demonstração da realização da operação comercial pelo pagamento do valor Comprovação da boa-fé Jurisprudência pacífica do STJ Demonstração da regularidade dos lançamentos contábeis e do efetivo pagamento pela aquisição das mercadorias Precedentes Sentença que julgou improcedente o pedido reformada Recurso provido.”

(TJSP - Apelação n° 1006830-24.2015.8.26.0071 – 8ª Câmara de Direito Público – Desembargador Relator ANTONIO CELSO FARIA – 16/03/2016) 

EMENTA

“APELAÇÃO AÇÃO ANULATÓRIA APROVEITAMENTO DE CRÉDITOS DE ICMS NOTAS FISCAIS DECLARADAS INIDÔNEAS O creditamento de ICMS relativo à operação comercial efetivamente realizada antes da declaração de inidoneidade da nota fiscal não constitui infração tributária passível de ensejar a lavratura de AIIM presunção de boa-fé do contribuinte corroborada pelo robusto acervo probatório colacionado aos autos inteligência do Enunciado nº 509, da Súmula do Colendo Superior Tribunal de Justiça desconstituição do ato administrativo objeto de impugnação (AIIM nº 4.046.813-6) sentença de improcedência reformada para julgar procedente a demanda inversão dos ônus sucumbenciais. Recurso da empresa-autora provido.”

(TJSP – Apelação n° 1016048-33.2015.8.26.0053 – 4ª Câmara Direito Público – Desembargador Relator PAULO BARCELLOS GATTI – 14/03/2016) 

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Ressalta-se que o contribuinte não necessariamente precisa possuir todos os documentos acima elencados, posto que, não são raras as ocasiões em que a glosa de créditos é afastada pela apresentação de parte desta documentação, e ainda a apresentação de diversos outros documentos (como por exemplo, comprovantes de entrega da mercadoria pela transportadora, controle de estoque etc.). Observe que, embora haja outros meios possíveis para derrubar a glosa dos créditos, o meio mais eficaz é a apresentação do kit boa-fé em sua integralidade.

Assim, é fundamental que o contribuinte guarde consigo a documentação intitulada “kit boa-fé”, pelo prazo mínimo de 05 anos, contados a partir da emissão da Nota Fiscal tida como inidônea, pois, se for autuado pelo Fisco, o contribuinte conseguirá subjugar o Auto de Infração e Imposição de Multa.


CONCLUSÃO

Portanto, apesar de enraizar entendimento no sentido de ser impossível retroagirem os efeitos da declaração de inidoneidade (“ex-nunc)”, afastando assim a autuação fiscal baseada em fato ocorrido anteriormente à sua publicação, é vital que o contribuinte guarde consigo o “kit boa-fé” (ou ao menos parte dele), tendo em vista as recentes decisões dos tribunais de justiça. Assim, se o contribuinte for autuado por suposto creditamento indevido de ICMS decorrente da entrada de mercadorias originárias de documentação posteriormente declarada inidônea pela Fazenda Estadual, este conseguirá demonstrar de maneira incontestável a veracidade das operações realizadas com o fornecedor emitente das ‘Notas Frias’ e, consequentemente, sua boa-fé, afastando a glosa dos créditos e as multas acessórias (exegese da Súmula 509 do Superior Tribunal de Justiça).

Não obstante, é aconselhável que todo contribuinte realize uma eficiente consultoria tributária com profissionais confiáveis, especializados e atualizados com a legislação vigente e atentos às constantes alterações jurisprudenciais para prevenção de autos de infração a serem lavrados. E, em caso de procedimento administrativo e/ou judicial já instaurado, contrate serviços advocatícios de qualidade para remediar a situação.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

- BORGES, Humberto Bonavides; Auditoria de Tributos – IPI, ICMS, ISS; 4ª Edição; 2008; Editora Atlas;

- CARRAZZA, Roque Antônio; ICMS; 17ª Edição; 2015; Editora Malheiros;

- CARVALHO, Paulo de Barros; Curso de Direito Tributário; 2011; Editora Saraiva;

- FERNANDES, Kelly Luciene dos Santos e PIRES, Rebeca Teixeira; ICMS na Prática Operações de A a Z; 3ª Edição, 2014; Editora Cenofisco;

- MACHADO, Hugo de Brito; Curso de Direito Tributário; 2013; Editora Malheiros Editores;

- SABBAG, Eduardo; Manual de Direito Tributário; 5ª Edição; 2013; Editora Saraiva;

- Recurso Especial n° 1148444/MG, Relator: Min. Luiz Fux, 1ª Sessão, STJ, 27/04/2010;

- Apelação n° 1016048-33.2015.8.26.0053, 4ª Câmara Direito Público, TJSP, Desembargador Relator PAULO BARCELLOS GATTI, 14/03/2016;

- Apelação n° 1006830-24.2015.8.26.0071, 8ª Câmara de Direito Público, Desembargador Relator ANTONIO CELSO FARIA, 16/03/2016.

Sobre o autor
Lucas Munhoz Filho

Advogado especialista em Direito Tributário. Formado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo/SP – Autarquia Municipal (2009). Pós-Graduação lato sensu em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo/SP – Autarquia Municipal (2012), com extensão universitária em Planejamento Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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