A análise da importância do princípio da continuidade na prestação do serviço público

Leia nesta página:

A análise da importância do princípio da continuidade na prestação do serviço público

Não é de difícil entendimento a importância que tem o princípio da continuidade no contexto organizacional da Administração Pública, haja vista recair sobre esta a incontestável obrigatoriedade do bom desempenho da atividade administrativa, e sobre a sociedade o direito de receber esta prestação de maneira regular e, a princípio, contínua.

O que ocorre, na realidade, é que a análise da aplicabilidade do princípio da continuidade na prestação do serviço público está intimamente interligada com a simultânea análise de inúmeros fatores que estão dispostos tanto na legislação vigente, como na doutrina e na jurisprudência, e sem a qual se torna inviável o real discernimento das hipóteses em que este princípio é de fato indispensável no serviço público.

Falamos, portanto, em outras palavras, que na prática existem exceções sobre esta regra da continuidade na prestação do serviço público, cujas circunstâncias serão analisadas oportunamente neste estudo.

2. A MANUTENÇÃO DA CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO POR MEIO DA CONCESSAÇÃO E PERMISSÃO

É de se ressaltar, a princípio, que nem sempre a Administração Pública Direta dispõe dos meios necessários para uma prestação adequada do serviço público, bem como de recursos modernos compatíveis com a evolução tecnológica, que cada dia se torna mais freqüente nos grandes centros; ou de recursos que a permita aperfeiçoar este serviço de acordo com as demandas sociais e o aumento do número de usuários, conseqüência não apenas do crescimento demográfico, mas também econômico do país.

Este quadro ilustra a cena em que a Administração Pública Direta se vale dos institutos da concessão e permissão do serviço público, delegando à iniciativa privada a prestação deste serviço e evitando, em conseqüência disso, que ocorra a sua descontinuidade e a conseqüente ocorrência de prejuízos aos membros da sociedade.

Diante do que expomos até aqui, podemos asseverar que é a partir deste contexto da obrigatoriedade da não interrupção do serviço público por parte da Administração Pública que surge, por vezes, a necessidade da sua delegação à iniciativa privada. A partir da delegação, aquela se retira do papel de executora e se insere obrigatoriamente no papel de reguladora e fiscalizadora.

O que não pode, todavia, é a Administração Pública simplesmente delegar seus serviços a terceiros e sair de cena. Sendo ela curadora dos interesses públicos, e por isso mesmo, tendo por obrigação atingir os objetivos que a levem a alcançar tais interesses, o prosseguindo dos serviços que lhe competem é obrigatório, sejam eles prestados direta ou indiretamente.

Neste sentido, pode a Administração Pública, inclusive, retomar o serviço, provisória ou definitivamente, caso o concessionário pare de prestá-lo ou não o esteja prestando adequadamente.

3. A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO ADEQUADO E O PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE

A própria Lei de Concessao e Permissao, Lei nº 8987/95, em seu Capítulo VIII, que trata dos encargos da concessionária, estipula no inciso I de seu art. 31 como sendo um desses encargos a prestação do serviço adequado.

Ainda no tocante à expressão serviço adequado, cuja adjetivação se vincula a toda prestação de serviço que se dê por meio de concessão ou permissão, a própria Lei traz a sua definição, dispondo no § 1o do seu art. 6º:

“Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”.

Ressaltamos também que toda transferência de competência da Administração Pública à iniciativa privada para exercer os serviços públicos delegados será regulada pela aludida Lei, a qual deverá ser rigorosamente observada tanto pelo poder concedente quanto pela concessionária ou permissionária.

Oportuno então que se diga que a obrigação assumida pela concessionária ou permissionária, por meio da delegação contratual, gerará como conseqüência a obediência daquelas aos princípios aplicáveis ao serviço público, sobretudo ao da continuidade.

4. A RELAÇÃO ENTRE O USUÁRIO E O PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE

Não são apenas as concessionárias e permissionárias que devem observância à Lei de Concessao e Permissao, mas também os usuários, cujo artigo 7º da Lei 8.987/95 elenca em seus incisos quais são os seus direitos e obrigações.

Estes, aliás, deverão estar especificados no contrato de concessão, pois que o art. 23 da Lei, que enumera as cláusulas essenciais do contrato de concessão, reza em seu inciso VI como uma destas cláusulas as relativas aos direitos e deveres dos usuários para obtenção e utilização do serviço.

Reportando-nos ainda à questão da obrigatoriedade quanto à continuidade, assim como este dever se impõe às concessionárias e permissionárias na prestação do serviço público, o mesmo se pode dizer em relação aos usuários, sobre os quais se poderá exigir esta mesma continuidade no tocante à remuneração do serviço.

Nesta linha, cumpre-nos informar que, com base em dispositivo da Lei de Concessao e Permissao, o inadimplemento do usuário, que se traduz pelo descumprimento da continuidade da remuneração do serviço, por parte do consumidor, poderá ensejar a interrupção desta prestação.

Não obstante, dispõe o legislador expressamente nesta mesma Lei que a continuidade é uma condição do serviço adequado, e este, por seu turno, pressuposto da concessão e permissão.

Portanto, conforme se pode constatar, há na lei indícios de que dois dispositivos parecem se contrapor, pois se num momento estabelece que a concessão e permissão pressupõem a prestação de serviço adequado, e este, para se efetivar, precisa ser contínuo; num outro momento prevê a interrupção da prestação, ou seja, a descontinuidade do serviço, em caso de inadimplência do usuário.

Para melhor entender o que foi dito, vejamos na seqüência o que diz o permissivo legal a respeito da legalidade da descontinuidade do serviço em caso de inadimplemento do usuário, fazendo-se a ressalta do interesse da coletividade, que será analisado mais adiante:

Lei 8987/95:

Art. 6o - Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

§ 1o - Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

[...]

§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

[...]

II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.

(Grifos sobre o texto original)

5. A CONTROVÉRSIA SOBRE A CONTINUIDADE DOS SERVIÇOS ESSENCIAIS

Após a leitura destes dispositivos da Lei 8987/95, é prudente que se faça uma remissão ao Código de Defesa do Consumidor - CDC, Lei 8078/90, que em seu art. 22 preceitua que os serviços essenciais prestados pelos órgãos públicos, suas concessionárias ou permissionárias, devem ser contínuos:

Lei 8078/90:

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.

(Grifamos o texto original).

Registre-se que de fato o CDC não faz nenhuma menção expressa que proíba a interrupção do fornecimento do serviço pelo órgão público ou por suas concessionárias ou permissionárias, mas apenas diz que os serviços, além de adequados, eficientes e seguros, devem ser contínuos quando essenciais.

Ou seja, através desta redação o Código prega, de maneira implícita, que os serviços púbicos essenciais não devem ser interrompidos, nada mencionando, todavia, no que concerne a uma eventual inadimplência por parte do usuário, criando uma espécie de “brecha na lei” quanto a esta questão.

Portanto, esta “brecha na lei” passou a permitir que ocorressem inadimplências por parte destes usuários, sob a alegação de que os serviços públicos essenciais prestados pelos órgãos públicos ou suas concessionárias ou permissionárias devem ser contínuos, não sendo passíveis de interrupções nem em casos de inadimplência.

Por outro lado, não restam controvérsias de que cabe ao Poder Público assegurar a manutenção dos serviços públicos, notadamente os essenciais, não sendo menos sabido que esta manutenção está atrelada às “condições normais de prestação”, entre elas o regular recebimento das tarifas efetuadas pelos usuários, em decorrência do serviço prestado.

Ocorre que com a publicação da Lei nº 8987, em 1985, ou seja, posteriormente à edição do Código de Defesa do Consumidor - CDC, que foi em 1990, tudo levou a crer que o legislador intencionou ajustar os termos do CDC quanto a interpretações irrevogáveis de que os serviços essenciais são sempre contínuos, não havendo exceções.

Há de se ressaltar, também, sobre o propósito precípuo da Lei nº 8987/95, que passou a estabelecer regras que irão reger uma relação entre o Poder Público, o Particular (Concessionária ou Permissionária) e o Usuário, além de ter dado uma nova feição a esta questão da continuidade dos serviços públicos essenciais fixados no CDC, pois que passou a prever que a interrupção do serviço por inadimplência do usuário não se caracteriza como descontinuidade.

Nestes casos, conforme dita a Lei, o prestador do serviço não será a Administração Pública Direta, mas particulares da iniciativa privada, os quais também passarão a ter seus direitos, garantias e obrigações assegurados, entre eles o direito de cobrança das tarifas públicas.

Sendo assim, em caso de inadimplemento por parte do usuário, pressupõe-se que não mais subsistem as condições normais que obrigam a concessionária ou permissionária a manter a continuidade da prestação dos serviços, por não haver, em contrapartida, o recebimento da tarifa equivalente ao serviço prestado.

Além de ser uma hipótese desprovida de razoabilidade, por certo causaria prejuízo ao equilíbrio econômico-financeiro das concessionárias ou permissionárias prestadoras de serviço público, equilíbrio este garantido no contrato de concessão e permissão.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A doutrina e a jurisprudência têm se debruçam sobre a análise de quais situações em que a prestação do serviço público poderia ser suspensa, sobretudo em se tratando de serviços essenciais, ainda perdurando controvérsias sobre o tema.

Reportando-nos à Lei de Concessao e Permissao, esta questão se encontra inserida em seu art. 6º, já mencionado e transcrito anteriormente, que além de ditar que a continuidade é um requisito do serviço adequado, regula as hipóteses em que a interrupção do serviço, por parte da concessionária ou permissionária, não será caracterizada como sua descontinuidade, pois se assim o fosse, consignaria a inadequação, ou seja, que o serviço não estaria sendo prestado dentro dos parâmetros legais que se impõem.

São estas as hipóteses de interrupção consentidas pela Lei nº 8987/95: 1. Em situação de emergência; 2. Após aviso prévio, quando motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e, 3. Por inadimplemento do usuário, considerando-se o interesse da coletividade. Não há controvérsias sobre as duas primeiras hipóteses, restando claro que são situações que justificadamente exigem a interrupção do serviço.

A controvérsia existe em relação à última hipótese descrita pela lei, cuja interrupção não é considerada descontinuidade do serviço, que é o inadimplemento do usuário. A partir daqui insurge a necessidade de análises que norteiam o tema, como o caso de se diferenciar os serviços obrigatórios (ou compulsórios) dos serviços facultativos.

6. SERVIÇOS OBRIGATÓRIOS

Dizem-se obrigatórios aqueles serviços cuja prestação é imposta coercitivamente pela Administração Pública e atinge a coletividade como um todo, e não apenas o usuário isoladamente, o que justifica o interesse generalizado de uma prestação contínua. Portanto, trata-se de serviços que, a princípio, não podem ser interrompidos por ocasião de seus inadimplementos.

Estes serviços são remunerados por meio de taxa pública. Nesta linha, segundo a melhor doutrina, aos casos de inadimplementos se aplicariam os meios próprios de cobrança de que dispõem a Fazenda Pública para este fim, justificando-se com isso a vedação de sua interrupção.

Como exemplo de serviço obrigatório, remunerado por taxa, podemos citar a coleta de lixo domiciliar e a prevenção de incêndio. O esgoto, até pouco tempo, era também considerado um exemplo de serviço obrigatório, dada a natureza da sua remuneração. Ocorre que a Lei nº 11.445/07, que passou a dispor sobre o saneamento básico, gênero que tem como espécies o abastecimento de água e o esgotamento sanitário, acolheu a tarifa como a forma preferencial de remuneração.

Em conseqüência disso, a nova lei tornou tais serviços passíveis de interrupção por inadimplemento do usuário, após a sua regular notificação, em obediência ao princípio constitucional da ampla defesa.

7. SERVIÇOS FACULTATIVOS

Os serviços facultativos, por seu turno, têm uma peculiar característica, por se tratarem de serviços que são apenas ‘postos à disposição da coletividade’, e por isso mesmo são, da mesma forma, facultativamente utilizados.

Ao contrário dos serviços obrigatórios, são remunerados por tarifas públicas, sendo o pagamento devido em razão da sua efetiva utilização, e passíveis de interrupção pelo ‘não pagamento’ do usuário que optar pelo seu uso.

Geralmente, a sua prestação se dá por meio de concessionárias ou permissionárias de serviço público. São exemplos de serviços facultativos a energia elétrica, o gás, o transporte coletivo, o telefone etc.

Neste caso, há que se fazer uma remissão da possibilidade de interrupção destes serviços facultativos ao dispositivo da Lei de Concessao e Permissao, contido em seu art. 6º, § 3º, II, para fundamentar a não caracterização desta descontinuidade.

Conclusivo também que é inaplicável a esta modalidade de serviço o dispositivo do Código de Defesa do Consumidor, art. 22, caput, que prevê que ‘os serviços públicos essenciais devem ser contínuos’, pois se o usuário não pagar a respectiva tarifa terá a conseqüente interrupção do serviço.

8. INTERESSE DA COLETIVIDADE

Por fim, resta-nos analisar o termo ‘interesse da coletividade’ descrito na parte final do inciso II, § 3º, art. 6º da Lei nº 8987/95, ao estabelecer que não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção por inadimplência do usuário, considerado o interesse da coletividade.

O que o legislador procurou demonstrar foi a sua preocupação quanto à interrupção de serviços que possam causar danos à coletividade, como por exemplo, o corte de energia elétrica de um hospital municipal ou de uma delegacia policial, que envolvem, respectivamente, questões de saúde e de segurança.

Podemos assegurar, todavia, que esta questão do ‘interesse da coletividade’, a ser considerado como exceção nos casos em que a lei abona a interrupção do serviço por inadimplência do usuário guarda uma relação com a pessoa que presta o serviço, ou seja, será considerado caso a caso.

Em sede jurisprudencial, não chega a ser pacífico o entendimento de que não poderá ser interrompido, sob nenhuma hipótese, por exemplo, o serviço de energia elétrica de uma concessionária de serviço público ou de um Município, considerando-se todos os seus órgãos e secretarias.

O STJ já firmou entendimento admitindo a interrupção do serviço, no caso, energia elétrica, por inadimplência do usuário, não obstante tratar-se este de um ente municipal, ignorando a ressalva do interesse da coletividade preconizado pela Lei nº 8987/95, em seu art. , § 3º, II. Daí a afirmação anteriormente citada de que a observância ao interesse da coletividade não é absoluta, mas relativa, dependendo do caso.

A decisão do STJ se refere ao julgamento de Recurso Especial nº 628.833-RS, interposto por AES Sul Distribuidora Gaúcha de Energia S/A, concessionária de serviço público de energia elétrica, contra Acórdão cuja Ementa se transcreve abaixo, proferido a favor do Município de Taquari, que garantiu a este o direito da não interrupção do serviço, sob as alegações de que: 1. Esta interrupção afeta toda a coletividade; 2. O inadimplemento deve ser buscado por meios próprios:

“MANDADO DE SEGURANÇA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. CONTRATO DE CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. ENERGIA ELÉTRICA. FALTA DE PAGAMENTO DA TARIFA PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO. PREVALÊNCIA DO INTERESSE DA COLETIVIDADE.

1. Consoante jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a pessoa jurídica que se apresenta para defender o ato impugnado assume a responsabilidade da autoridade que a praticou.

2. O direito do concessionário de suspender o fornecimento de energia elétrica ante o não pagamento da tarifa não é absoluto, estando subordinado ao interesse da coletividade. Art. , inciso II, da Lei nº 8.987/95.

3. Sendo inequívoco que a interrupção do serviço ao ente público municipal afeta toda a coletividade, o adimplemento da tarifa deve ser buscado através dos meios processuais próprios ou da via da negociação.

4. Recurso desprovido”.

Todavia, o julgamento do Recurso Especial foi pelo seu provimento, derrubando o Acórdão e concedendo, por maioria de votos, o direito de a Concessionária de Serviço Público suspender o fornecimento de energia elétrica do Município inadimplente, sendo vencido o voto do MINISTRO JOSÉ DELGADO, que confirmou os termos do Acórdão, e vencedor o voto do MINISTRO FRANCISCO FALCÃO. A seguir, a respectiva Ementa:

“ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. INADIMPLÊNCIA. PREVISÃO LEGAL. CONTRATO SINALAGMÁTICO.

I - O contrato estabelecido entre o fornecedor de energia elétrica e o usuário é sinalagmático concluindo-se que o contratante só pode exigir a continuidade da prestação a cargo do contratado quando estiver cumprindo regularmente a sua obrigação.

II - A suspensão do fornecimento de energia elétrica pode ocorrer em diversas hipóteses inclusive quando houver negativa de pagamento por parte do usuário. Tal convicção encontra assento no artigo 91 da Resolução nº 456/2000 da Agência Nacional de

Energia Elétrica.

II - "É lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (L. 8.987/95, Art. 6º, § 3º, II)". (Resp nº 363.943/MG, Relator Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ de 01/03/2004, p. 119)

IV - Recurso especial provido”.

O ministro José Delgado, em seu voto, faz extensa e fundamentada explanação na defesa de que o interesse da coletividade deve prevalecer, não devendo prosperar a iniciativa da Concessionária de interromper a prestação de serviço de energia elétrica ao Município de Taquari. De fato, sua defesa encontra respaldo tanto na doutrina quanto na jurisprudência, o que foi fartamente demonstrado em suas citações[1] a favor do aludido Município, que serão parcialmente transcritas em notas de rodapé.

O voto vencedor do ministro Francisco Falcão, por seu turno, assenta um entendimento mais ousado de acolher o corte de fornecimento de energia elétrica do ente público com a alegação de que, em contrapartida ao fornecimento do serviço pela concessionária de serviço público, impõe-se o dever de pagamento da referida prestação pelo usuário, não obstante tratar-se de um ente público.

Sendo assim, fica assegurado à empresa fornecedora de energia elétrica o direito de suspender a sua prestação quando o consumidor não honrar a sua obrigação do pagamento pela prestação fornecida.

Todavia, não se trata de uma decisão inédita, tanto que faz alusão, em seu voto, de precedentes jurisprudenciais neste mesmo sentido[2], buscando tornar mais robusta a sua

inclinação pela prevalência das regras do Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8078/90, sobre a Lei de Concessao e Permissao, nº 8987/95, a respeito da interrupção do serviço público por inadimplemento do usuário.

[1] O STJ. Já se pronunciou a respeito da impossibilidade da interrupção de serviço essencial, in verbis:

"Seu fornecimento é serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade, sendo impossível a sua interrupção e muito menos por atraso no seu pagamento". Desta forma o aresto do E. STJ decidiu por unanimidade que o Fornecimento de água não pode ser interrompido por inadimplência, fundamentando:

"O fornecimento de água, por se tratar de serviço público fundamental, essencial e vital ao ser humano, não pode ser suspenso pelo atraso no pagamento das respectivas tarifas, já que o Poder Público dispõe dos meios cabíveis para a cobrança dos débitos dos usuários".

Para o Ministro Garcia Vieira, relator do processo, "a Companhia Catarinense de Água cometeu um ato reprovável, desumano e ilegal. É ela obrigada a fornecer água à população de maneira adequada, eficiente, segura e contínua e, em caso de atraso por parte do usuário, não poderia cortar o seu fornecimento, expondo o consumidor ao ridículo e ao constrangimento", casos previstos no Código de Defesa do consumidor.

O Ministro Garcia Vieira afirma ainda em seu decisum, que para receber seus créditos, a CASAN deve usar os meios legais próprios, "não podendo fazer justiça privada porque não estamos mais vivendo nessa época e sim no império da lei, e os litígios são compostos pelo Poder Judiciário, e não pelo particular. A água é bem essencial e indispensável à saúde e higiene da população.

No mesmo sentido, o fornecimento de energia é serviço essencial. A sua interrupção acarreta o direito de o consumidor postular em juízo, buscando que se condene a Administração a fornecê-la, sem prejuízo da condenação do fornecedor pelo dano moral e patrimonial sofrido pelo consumidor.

Importa assinalar que tal medida judicial tem em mira a defesa de um direito básico do consumidor, a ser observado, quando do fornecimento de produtos e serviços (relação de consumo), na forma como prescreve o art. 6, X do CDC (adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral), sem prejuízo da reparação dos danos provocados (a teor do art. , VI do CDC."a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos").

Acrescentamos que o Min. Paulo Medina, ao votar no REsp 337.965/MG, adotou essa linha de pensar, fundamentando como passamos a transcrever: “O posicionamento firmado por este STJ, remansoso, é o da impossibilidade de interrupção de serviço público essencial. Neste sentido, colacionamos os seguintes julgados:

a) AgRg no Resp 298.017, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 27.08.2008: “ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL.

ENERGIA ELÉTRICA. SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL. CORTE DE FORNECIMENTO. CONSUMIDOR INADIMPLENTE. IMPOSSIBILIDADE.

- Esta Corte vem reconhecendo ao consumidor o direito da utilização dos serviços públicos essenciais ao seu cotidiano, como o fornecimento de energia elétrica, em razão do princípio da continuidade (CDC, art. 22).

- O corte de energia, utilizado pela Companhia para obrigar o usuário ao pagamento de tarifa em atraso, extrapola os limites da legalidade, existindo outros meios para buscar o adimplemento do débito.

- Precedentes.

- Agravo regimental improvido”.

b) RMS 8915/MA, Rel. Min. José Delgado, DJ de 17.08.08:

“(...) 3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção.

4. Os arts. 22 e 42, do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se 'as empresas concessionárias de serviço público.

5. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade.

6. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa.

7. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza.

c) AgRg na MC 3.982/AC, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 25.03.2007:

“AGRAVO REGIMENTAL CONTRA LIMINAR QUE DETERMINOU A EMPRESA CONCESSIONÁRIA A CONTINUAÇÃO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. CONSUMIDOR, IN CASU, O MUNICÍPIO QUE REPASSA A ENERGIA RECEBIDA AOS USUÁRIOS DE SERVIÇOS ESSENCIAIS.

Consoante jurisprudência iterativa do E. STJ a energia é um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção.

O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade, uma vez que o direito de o cidadão se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza.”

d) Resp 223.778/RJ, Rel. Min. Gomes de Barros, DJ de 13.03.2008:

“SERVIÇO PÚBLICO - ENERGIA ELÉTRICA - CORTE NO FORNECIMENTO -ILICITUDE.

1 - É viável, no processo de ação indenizatória, afirmar-se, incidentemente, a ineficácia de confissão de dívida, à míngua de justa causa.

II - É defeso à concessionária de energia elétrica interromper o suprimento de força, no escopo de compelir o consumidor ao pagamento da tarifa em atraso. O exercício arbitrário das próprias razões não pode substituir a ação de cobrança.”

[2]"ADMINISTRATIVO - ENERGIA ELÉTRICA - CORTE – FALTA DE PAGAMENTO

- É lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (L. 8.987/95, Art. , § 3º, II)". (REsp nº 363.943/MG, Relator Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ de 01/03/2007, p.00119)

"ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. MUNICÍPIO INADIMPLENTE. SUSPENSÃO DO SERVIÇO. PREVISÃO LEGAL. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.

1. A interrupção no fornecimento de energia por inadimplemento do usuário, conforme previsto no art. , § 3º, II, da Lei n. 8.987/95, não configura descontinuidade na prestação do serviço para fins de aplicação dos arts. 22 e 42 do CDC.

2. Demonstrado nos autos que a fornecedora, ao suspender o fornecimento de energia elétrica, teve o cuidado de preservar os serviços essenciais do município, não há que se cogitar tenha o corte afetado os interesses imediatos da comunidade local.

3. Destoa do arcabouço lógico-jurídico que informa o princípio da proporcionalidade o entendimento que, a pretexto de resguardar os interesses do usuário inadimplente, cria embaraços às ações implementadas pela fornecedora de energia elétrica com o propósito de favorecer o recebimento de seus créditos, prejudicando, em maior escala, aqueles que pagam em dia as suas obrigações.

4. Se a empresa deixa de ser, devida e tempestivamente, ressarcida dos custos inerentes às suas atividades, não há como fazer com que os serviços permaneçam sendo prestados com o mesmo padrão de qualidade.

5. Recurso especial a que se nega provimento"(REsp n.º 302.620/SP, Relator p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJ de 16/02/2008, p. 00228).

"RECURSO ESPECIAL – ALÍNEA C – ADMINISTRATIVO – ENERGIA ELÉTRICA – CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO – ATRASO NO PAGAMENTO – SUSPENSÃO DO SERVIÇO – POSSIBILIDADE – ARTS. , § 3º, DA LEI N. 8.987/95 E 17 DA LEI N. 9.427/96.

Há expressa previsão normativa no sentido da possibilidade de suspensão do fornecimento de energia elétrica ao usuário que deixa de efetuar a contraprestação ajustada, mesmo quando se tratar de consumidor que preste serviço público.

Na hipótese vertente, verifica-se que se trata de usuário do serviço público concedido que, nos termos do r. Voto condutor do acórdão objurgado, “deliberadamente vem se mantendo na inadimplência”, razão bastante para a suspensão do fornecimento do bem.

Ao editar a Resolução n. 456, de 29 de novembro de 2000, a própria ANEEL, responsável pela regulamentação do setor de energético no país, contemplou a possibilidade de suspensão do fornecimento do serviço em inúmeras hipóteses, dentre as quais o atraso no pagamento de encargos e serviços vinculados ao fornecimento de energia elétrica prestados mediante autorização do consumidor, ou pela prestação do serviço público de energia elétrica (art. 91, incisos I e II).

Recebe o usuário, se admitida a impossibilidade de suspensão do serviço, reprovável estímulo à inadimplência. Não será o Judiciário, entretanto, insensível relativamente às situações peculiares em que o usuário deixar de honrar seus compromissos financeiros em razão de sua hipossuficiência, circunstância que não se amolda ao caso em exame.

Recurso especial conhecido pela letra c, porém não provido"(REsp n.º 510.478/PB, Relator Ministro FRANCIULLI NETTO, DJ de 08/09/2003, p. 00312).

José Maria Pinheiro Madeira

Mestre em Direito do Estado, Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais, Doutor em Ciência Política e Administração Pública. Curso de pós-graduação no exterior. Procurador do Legislativo (aposentado). Parecerista na área do Direito Administrativo. Examinador de Concurso Público. Membro Integrante da Banca Examinadora de Exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Membro de diversas associações de cultura jurídica, no Brasil e no exterior. Professor Emérito da Universidade da Filadélfia. Professor-palestrante da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro - EMERJ - Professor Coordenador de Direito Administrativo da Universidade Estácio de Sá. Professor da Fundação Getúlio Vargas. Professor integrante do Corpo Docente do Curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo da Universidade Cândido Mendes, da Universidade Gama Filho e da Universidade Federal Fluminense. Membro Titular do Instituto Ibero-Americano de Direito Público. Membro Efetivo do Instituto Internacional de Direito Administrativo.

Kim Reis Gusmão Soares, Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá, Autor de Artigos Jurídicos, Cursando Pós-Graduação em Direito Público, Direito Penal e Direito Processual Penal, Membro do Conselho de Direito Ambiental da OAB, Perito Judicial Grafotécnico pela Academia Nacional dos Peritos Judiciais da República Federativa do Brasil. 1. O PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE NO CONTEXTO ORGANIZACIONAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Luiz Paulo Figueiredo de Araujo, Bacharelando em Direito pela Universidade Estácio, Autor de Artigos Jurídicos, Cursando Pós-Graduação em Direito Público na Acadêmia Nacional de Juristas e Doutrinadores ANAJ.

Sobre os autores
José Maria Pinheiro Madeira

Mestre em Direito do Estado, Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais, Doutor em Ciência Política e Administração Pública. Curso de pós-graduação no exterior. Procurador do Legislativo (aposentado). Parecerista na área do Direito Administrativo. Examinador de Concurso Público. Membro Integrante da Banca Examinadora de Exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Membro de diversas associações de cultura jurídica, no Brasil e no exterior. Professor Emérito da Universidade da Filadélfia. Professor-palestrante da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro - EMERJ - Professor Coordenador de Direito Administrativo da Universidade Estácio de Sá. Professor da Fundação Getúlio Vargas. Professor integrante do Corpo Docente do Curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo da Universidade Cândido Mendes, da Universidade Gama Filho e da Universidade Federal Fluminense. Membro Titular do Instituto Ibero-Americano de Direito Público. Membro Efetivo do Instituto Internacional de Direito Administrativo.

Luiz Paulo Figueiredo de Araujo

Bacharelando em Direito pela Universidade Estácio, Autor de Artigos Jurídicos, Cursando Pós-Graduação em Direito Público na Acadêmia Nacional de Juristas e Doutrinadores ANAJ, membro da Comissão de Ciência Política e Administração Pública OAB/RJ.

Kim Reis Gusmão Soares

Kim Reis Gusmão Soares, Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá, Autor de Artigos Jurídicos, Cursando Pós-Graduação em Direito Público, Direito Penal e Direito Processual Penal, Membro do Conselho de Direito Ambiental da OAB, Perito Judicial Grafotécnico pela Academia Nacional dos Peritos Judiciais da República Federativa do Brasil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos