Algumas anotações sobre crimes contra a segurança nacional.

Divulgar conversas da presidente é crime contra a segurança nacional?

07/04/2016 às 16:04
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Propala-se que a divulgação de conversas da presidente da República ensejam tipicidade com artigos da Lei de Segurança Nacional. Com uma análise dos tipos, da Lei n. 7.710 de 1983 é possível enxergar a impossibilidade de subsunção da conduta a eles.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

            A Lei n. 7.710 de 1983 incrimina condutas que atentem e coloquem em risco a segurança nacional, cingindo tutela sobre o Estado e as pessoas que o chefiam para atos ligados à função. Fruto da ditadura militar, o texto normativo é repleto de enunciados performáticos vazios de significados que causam perigo ao Estado democrático de Direito.

Conquanto tenha origem autoritária e antidemocrática, tal lei em tela tem sido invocada por alguns em razão da divulgação de conversas da Presidente da República sob alegação de que o juiz federal Sérgio Moro cometeu crime contra segurança nacional.

Por isso, é mister fazer breve análise também dos tipos penais que alegadamente foram praticados e dos argumentos exarados para impingir tipicidade.

                         

1.LEI DE SEGURANÇA NACIONAL

            A Lei n. 7.170 de 14 de dezembro de 1983 tipifica condutas que atentem contra a segurança do país, ordem política e social e foi fruto do regime ditatorial pelo qual o Brasil passou entre os anos de 1964 a 1985.

            A lei prevê como criminosas condutas que atentem contra “integridade nacional e a soberania nacional” (art. 1, inc. I), “a pessoa dos chefes dos Poderes da União” (art. 1, inc. III) e, como uma nota de ironia, “o regime representativo e democrático, a federação e o Estado de Direito” (art. 1, inc. II).

            Segundo o professor Heleno Claudio Fragoso, “O fim da lei é o de proteger a segurança do Estado, que se refere aos interesses políticos da Nação. Esses interesses não são afetados nos crimes contra a segurança interna, se não há propósito político-subversivo. Cumpre, pois, interpretar corretamente e, diríamos, democraticamente, a lei, para ajustá-la às exigências atuais de redemocratização do país”.[1]

            Algumas inadequações constitucionais estão estipuladas na precitada lei. O aprisionamento cautelar durante a investigação se dá por algo denominado “necessidade justificada” (art. 33). Mostra-se incompatível com o Código de Processo Penal e o com a Constituição Federal, particularmente no art. 93, IX da CF, aprisionamento baseado em algo que de concreto nada tem.

Cumpre lembrar que “A exigência de motivação dos atos jurisdicionais constitui, hoje, postulado constitucional inafastável, que traduz, em sua concepção básica, poderoso fator de limitação do próprio poder estatal, além de constituir instrumento essencial de respeito e proteção às liberdades públicas. Atos jurisdicionais, que descumpram a obrigação constitucional de adequada motivação decisória, são atos estatais nulos".[2]

            E a incomunicabilidade do investigado (§3º do art. 33) também é prevista na Lei de Segurança Nacional. No entanto, é medida impensável sob as luzes do art. 7º, inc. III e do art.136, §3, inc. IV da CF/88.

Há normas internas com status constitucional, infraconstitucional e internacional (arts. 1, 2, “a”, “b” e “d” do Pacto de San Jose da Costa Rica) permitindo a comunicabilidade do preso.

Com isso, vê-se que a inconstitucionalidade material atinge a Lei de Segurança Nacional.

            Ademais, com sua origem ditatorial e medidas processuais inconstitucionais, outro desastre acomete a malfadada e esdrúxula LSN, qual seja, um inconstitucional conjunto de tipos incriminadores.

            Inclusive, é bom frisar que a comissão de juristas que debate o anteprojeto do Código Penal emitiu parecer pela revogação da Lei de Segurança Nacional por não ter sido a mesma recepcionada pela CF/88.[3]

            À despeito dos defeitos da referida lei, seu uso foi visto para conter manifestações contra o atual governo e punir indígenas em conflito de terras.[4]

2.DOS TIPOS PENAIS E ENUNCIADOS PERFORMÁTICOS

            Além das medidas processuais inconstitucionais, a Lei n. 7.170/83 abarca tipos penais defeituosos por violação do princípio da legalidade. As garantias e consequências do princípio da legalidade ou da reserva legal englobam a determinação e a taxatividade[5], no entanto, os tipos penais da lei são imensamente problemáticos.

            A lei penal deve ser suficientemente clara, precisa, não podendo conter cláusulas gerais e conceitos indeterminados para que haja limitação do poder punitivo e conseqüente segurança jurídica, assertivas do Estado democrático e social de Direito.[6]

Entretanto, é possível vislumbrar na citada lei inúmeras expressões abertas, lacônicas e que permitem manipulação discursiva, como “ordem política”, “animosidade” espalhadas pelos tipos penais incriminadores.

Gramáticos e filósofos preocupam-se, desde muito tempo, com expressões as retrocitadas, sem sentido e que misteriosamente são classificadas e, também, aplicadas[7], chegando a ser irrefutáveis em alguns contextos conquanto não descrevam ou registram nada.[8]

No art. 8 as expressões “entrar em entendimento” com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, para atos de “hostilidade” contra o Brasil são as primeiras demonstrações de falta de descrição de algo concretamente.

Já no art. 13 o problema reside em definir o que são documentos, planos, códigos, cifras ou assuntos “classificados” como sigilosos “no interesse do Estado brasileiro”. Ora, ser classificado não significa ser, de fato, sigiloso e não há determinação do que é algo sigiloso no interesse do Estado brasileiro. Quem faz tal definição? Quais os critérios? Qual a duração? Serve a itens e conversas da vida pública ou da vida privada?

Outro tipo penal problemático (talvez o mais) seja o art. 23:

Art. 23 - Incitar:

I - à subversão da ordem política ou social;

II - à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições

civis;

III - à luta com violência entre as classes sociais;

IV - à prática de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.

Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.

Os conceitos basilares do tipo penal são “ordem política ou social” e “animosidade entre as Forças Armas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições”.

É salutar que a doutrina tem criticado a muito tempo no Brasil os conceitos genéricos aplicáveis às ciências criminais e uma amostra é a polêmica acerca da “ordem pública” do art. 312 do CPP.[9]

Aqui com a “ordem política ou social” temos o correspondente material da “ordem pública” que consta no Código de Processo Penal que, efetivamente, é conceito impreciso, “vago, indeterminado, presta-se a qualquer senhor; diante de uma maleabilidade conceitual apavorante”.[10]

Tal abstratividade de um conceito é situação antiga e empoeirada, tendo sido vista na Alemanha nazista em que se prendia e incriminava com “fundamento” na amplitude interpretativa da lei.[11]

A expressão “ordem política e social” não reflete – e isso é fundamentalmente importante - uma só situação e sim inúmeras, contemplando o que quer que o intérprete deseje, tornando-se, de fato e mais uma vez, um enunciado performático.

A lei é, como visto, repleta de normas inconstitucionais, devendo ser rechaçada do mundo jurídico via controle de constitucionalidade.

3.  DOS TIPOS PENAIS SUPOSTAMENTE VIOLADOS COM A DIVULGAÇÃO DAS CONVERSAS DA PRESIDENTE DA REPÚBLICA

É preciso pontuar que um dos imperativos da república é justamente a inserção do governante no mesmo ambiente da população, num plano de igualdade. É essencial à República (e ao Estado democrático de Direito) a igualdade entre aqueles que compõem o Estado. Não há espaço, portanto, para a antiga distinção entre o monarca e os demais.[12]

Do cenário, pode-se concluir que não é toda conduta contrária ao presidente, aos seus atos, qualquer notícia do delito, pedido de abertura de processo ou qualquer conversa do chefe do Executivo põe em risco a segurança nacional.

Entender de modo diverso é criar um manto de proteção típico da Idade Média e das teorias mais enfadonhas, é ir além do que pretendeu a malfadada Lei de Segurança Nacional que protege o regime político democrático e o Estado de Direito e não cria uma armadura, um escudo àquele do povo que está na presidência.

Visto isso, é imperativo analisar o conteúdo do art. 1, III da lei protege “a pessoas dos chefes dos Poderes da União”, os demais artigos da LSN esclarecem, complementam, definem tais proteções. Criam, assim, proteção exaustiva, um rol definido de situações em que, se identificada intenção de atentar contra segurança do Estado, poderá haver crime. Com os tipos penais da lei, não se pode pensar em rol exemplificativo em que pode ser inserida qualquer situação.

Logo, é importante vislumbrar os tipos de injusto constantes da lei em que poderia ter ocorrido tipicidade.

O primeiro destes artigos é o art. 13:

Art. 13 - Comunicar, entregar ou permitir a comunicação ou a entrega, a governo ou grupo estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, de dados, documentos ou cópias de documentos, planos, códigos, cifras ou assuntos que, no interesse do Estado brasileiro, são classificados como sigilosos.

Como se percebe, trata-se de comunicar ou entregar dados, documentos ou cópias, planos, códigos, cifras ou assuntos (sigilosos no interesse do Estado brasileiro) a governo, grupo estrangeiro ou grupo ilegal.

No caso em tela (divulgação de conversa da presidente) não há no substrato fático qualquer situação ligada a governo ou grupo estrangeiro ou ilegal. Assim como inexiste informação sigilosa no interesse do Estado brasileiro.

Não obstante tal circunstância, não se pode descuidar de que as conversas que vieram a público foram de assuntos privados, sem relação com o cargo, assuntos administrativos ou de governo.

Estabelecida a atipicidade da divulgação dos áudios com o art. 13, é de se analisar o art. 23 da mesma lei. Salienta-se, inicialmente, que o artigo no inciso I se choca com direitos fundamentais consagrados (por exemplo, liberdade de expressão) após a criação da lei autoritária de segurança nacional.

Ao se proceder com prospecção no primeiro inciso do tipo é de se notar a imprecisão e a má construção do artigo, especialmente pelos termos “ordem política ou social”. Tais termos estão acompanhados dos vários sentidos de “subversão”.

É ululante que inexiste sequer possibilidade de precisar ordem política ou social, medir eventual afetação e determinar a ocorrência de subversão. Isso porque o ato de divulgar a prova (mesmo que se debata se as conversas são provas, quem deve inseri-las e selecioná-las como relevantes, se deveriam ser divulgadas) anexando-a ao processo não se confunde com os verbos ou as elementares do art. 23 da LSN.

E, ainda que se fizesse um esforço interpretativo visando fabricar encaixe, haveria o anteparo de que manifestações, posições dissonantes, etc, já eram anteriores a divulgação das conversas, assim como a situação de insatisfação com o governo.

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Outro dado relevante que afasta a tipicidade é que referida divulgação não tem o condão de afetar o país.

No que tange ao inciso II, a tipicidade depende de um ato positivo de estimular animosidade dentro das Forças Armadas ou destas com classes sociais ou instituições. A divulgação de conversa particular não teve tal efeito, não ensejando tipicidade.

O mesmo ocorrendo em relação aos incisos III e IV que não tem suporte algum mesmo para debate em sala de aula.

SINTESE CONCLUSIVA

A lei em comento é bastante criticada desde sua gênese pela doutrina nacional, sendo taxada de inconstitucional por vários (e justos) motivos, como as medidas processuais que destroçam direitos fundamentais e os tipos penais que desconsideram o princípio da legalidade, tão caro ao direito penal moderno e democrático.

Os confusos e mal feitos tipos penais não encontram espaço para aplicação no Estado democrático de Direito em qualquer contexto que se imagine ou fabrique. Inclusive, faz confusão no Estado democrático de direito ver invocações de uma lei com espírito ditatorial.

E, mesmo que se possa contestar a juntada dos áudios ao processo público, o que ocasionou a publicidade das conversas e da prova, não se vê plausível a imputação de crime contra segurança nacional ao juiz Sergio Moro pelo ato que – independentemente de como se enxergue sua decisão - agiu sem especial fim de agir, sem dolo de afetar à pátria.


[1] FRAGOSO, Heleno Claudio. Para uma interpretação democrática da Lei de Segurança Nacional. Disponível em www.fragoso.com.br. Acesso em 03 abr. 2016.

[2] HC 68530, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 05/03/1991, DJ 12-04-1991 PP-04159 EMENT VOL-01615-01 PP-00131

[3] Lei de segurança nacional em xeque. Disponível em http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-direito/lei-de-seguranca-nacional-em-xeque-2hruhhagapyjd976tux3ne1qm. Acesso em 31 mar. 2016.

[4] Resquício da Ditadura Militar, a Lei tem sido utilizada para reprimir manifestações e punir indígenas em conflito por terras. Para OAB, melhor caminho será questionar a lei junto ao Supremo. Disponível em http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-04-15/entidades-pressionam-mas-governo-nao-vai-ceder-sobre-lei-de-seguranca-nacional.html. Acesso em 28 mar. 2016.

[5] PRADO, Luiz Regis. CARVALHO, Érika Mendes de. CARVALHO, Gisele Mendes de. Curso de direito penal brasileiro. 13 ed. São Paulo: RT, 2014, p. 109-110.

[6] Idem.

[7] AUSTIN, John L. Quando dizer é fazer. Trad. Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990, p. 22-23.

[8] ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial.  São Paulo: RT, 2014, p. 136-146.

[9] LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 836-837.

[10] Idem.

[11] QUEIROZ, Paulo. Direito penal. Parte geral. 7 ed. Rio de Janeiro: Lumen júris, 2011, p. 46-47.

[12] CÍCERO, Marco Túlio. Da República. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 14.

Sobre o autor
Diego Prezzi Santos

Doutor em Direito pela Faculdade Autônoma de São Paulo (FADISP). Mestre em Direito pelo programa de mestrado em ciências Jurídicas do Centro Universitário de Maringá (CESUMAR). Pós-graduado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor do programa de pós-graduação na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor da Fundação Escola do Ministério Público (FEMPAR). Professor na Faculdade Arhur Thomas (FAAT). Professor no Centro Universitário de Maringá (CESUMAR). Professor no Instituto Catuaí de Ensino Superior (ICES). Parecerista e avaliador em revistas científicas. Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Membro associado do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Membro associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Advogado com experiência em direito penal e processo penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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