O relativismo moral e o juspositivismo

22/05/2016 às 12:44
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Na maior parte dos países, o direito é representado por um conjunto de normas que formam um ordenamento jurídico, o chamado sistema romano-germânico. No entanto, o direito posto algumas vezes é questionável.

1 – Resumo

       O embate entre juspositivismo e jusnaturalismo sempre marcou as questões jurídico-filosóficas, causando debates que alcançam inclusive as “simples” salas de aula. Duas correntes que buscam, teoricamente, os mesmos ideais: justiça e a proteção dos bens jurídicos mais importantes. Na maior parte dos países, o direito é representado por um conjunto de normas que formam um ordenamento jurídico, o chamado sistema romano-germânico. Nesses países há uma “supremacia” das leis positivadas, onde as normas devem ser cumpridas para assim alcançar o ideal de justiça. O positivismo, porém, pode nem sempre trilhar a sociedade para fins considerados justos e humanos e pra isso não pode ser tido como absoluto, mas sim ser relativizado. Este artigo tem como objetivo proporcionar ao leitor uma reflexão além das teorias das duas correntes citadas.

Palavras-chave: juspositivismo, justiça, ordenamento, supremacia, leis.

Abstract

       The clash between natural law and civil law always marked the legal and philosophical issues, causing debates that reach even the "simple" classrooms. Two chains that seek theoretically the same ideals: justice and the protection of legal interests more important. In most countries, the right is represented by a set of rules that form a legal system, the system called Roman-Germanic. In these countries there is a "supremacy" of encoded laws where standards must be fulfilled so as to achieve the ideal of justice. Positivism, however, always walk the society for purposes deemed just and humane, therefore it can’t be taken as absolute, it has to be relative. This article aims to provide the reader with a discussion beyond the theories of the two streams mentioned.

   1 - O Positivismo Jurídico versus Direito Natural e o relativismo

       Para adentrarmos no tema principal, devemos ressaltar os principais pontos do positivismo jurídico e do Direito Natural (jusnaturalismo), inclusive suas semelhanças e diferenças.

        O Positivismo, de grande influência no ramo jurídico e filosófico, tenta estender às ciências humanas o famoso método experimental, “ignorando” a naturalidade e racionalidade. O positivismo jurídico utiliza alguns princípios do filosófico como suas bases, entre eles o conhecimento científico, que para ambos é o principal conhecimento, obtido na observação e no questionamento das coisas e da realidade em si.

     Diferentemente do que muito se afirma, o positivismo jurídico não teve sua origem a partir de Comte. Desde a Antiguidade os sofistas já o concebiam, através do pensamento de uma organização política incluindo a criação e aplicação de determinadas normas.

      Em linhas gerais, os juspositivistas pregam que as leis concebidas pelo Estado são a origem primária do Direito, e assim são autossuficientes. Para alcançar o ideal de justiça deve-se seguir as leis concretas, ao contrário do jusnaturalismo que prega a existência do Direito muito antes das normas escritas, já concebido por um conjunto de valores naturais, humanos e até mesmo divinos que não precisem de outorga por parte do Estado.

      O positivismo jurídico acredita que o Direito deva ser formal, e só assim pode-se aceitar determinada norma como parte do ordenamento jurídico. Não existem leis naturais, somente formais.

     Apesar de doutrinarem ideias aparentemente opostas, há muito em comum entre as duas correntes. As primeiras Constituições foram resultados da positivação de valores sociais, morais e éticos pertinentes ao Direito Natural, o que ainda acontece até hoje na maioria das constituições democráticas, outro exemplo seria o julgamento de Nuremberg que será tratado mais adiante.

      O relativismo prega que uma ideia não é absoluta, e que tudo deve ser analisado conforme o momento, personagem ou situação. Defendo que não se deve tomar nenhuma das duas correntes como absoluta, mas sim relativizá-las de acordo com a  situação, e até mesmo complementar uma com outra. Na sociedade moderna é estritamente necessário leis codificadas de acesso à todos e que forneça segurança jurídica aos cidadãos, mas também é imprescindível a proteção de bens e valores jurídicos fundamentais como a vida, liberdade e moral.

      

     3 – As Leis de Nuremberg

     A Alemanha (hoje República Federal) adota há tempos o sistema jurídico romano-germânico, possui suas normas codificadas. O Código Civil alemão de 1900 (Bürgerliches Gesetzbuch) é um dos mais tradicionais exemplos desse sistema.

     No ano de 1935, período de ascensão e domínio do nazismo na Alemanha, foram elaborados três documentos: a Reichsflaggengesetz (lei da bandeira do Reich); a Reichsbürgergesetz (lei da cidadania do Reich); a Gesetz zum Schutze des deutschen Blutes und der deutschen Ehre (Lei da proteção do sangue e honra alemães). A primeira versava sobre as cores e modelo da bandeira alemã, as outras duas codificavam a segregação social e o preconceito que viriam a causar uma das maiores tragédias humanitárias. As duas últimas serão o objeto deste artigo.

      A Lei de Cidadania do Reich estabeleceu uma distinção entre os chamados “cidadãos do Reich” e os “cidadãos de Estado”. Os primeiros possuíam plenos direitos civis e políticos, para isso era preciso provar possuir linhagem alemã total ou parcial. Também eram exigidos juramentos de fidelidade para com o Reich. Assim ficavam excluídos de determinados direitos os grupos imigrantes ou descendentes dos mesmos, principalmente judeus e turcos.

     A terceira lei aprovada (Lei da proteção do sangue e honra alemães) explanava todo o antissemitismo nazista. Ficou proibido a união matrimonial e até as relações sexuais entre judeus e alemães:

Art. 1º 1) São proibidos os casamentos entre judeus e cidadãos de sangue alemão ou aparentado. Os casamentos celebrados apesar dessa proibição são nulos e de nenhum efeito, mesmo que tenham sido contraídos no estrangeiro para iludir a aplicação desta lei. 2) Só o procurador pode propor a declaração de nulidade.

Art. 2º - As relações extramatrimoniais entre Judeus e cidadãos de sangue alemão ou aparentado são proibidas.

Art. 3º - Os Judeus são proibidos de terem como criados em sua casa cidadãos de sangue alemão ou aparentado com menos de 45 anos.

Art. 4º - 1) Os Judeus ficam proibidos de içar a bandeira nacional do Reich e de envergarem as cores do Reich. 2) Mas são autorizados a engalanarem-se com as cores judaicas. O exercício dessa autorização é protegido pelo Estado.

Art. 5º - 1) Quem infringir o artigo 1º será condenado a trabalhos forçados. 3) Quem infringir os arts. 3º e 4º será condenado à prisão que poderá ir até um ano e multa, ou a uma ou outra destas duas penas.

Art. 6º - O Ministro do Interior do Reich, com o assentimento do representante do Führer e do Ministro da Justiça, publicarão as disposições jurídicas e administrativas necessárias à aplicação desta lei.

     Todas as leis cumpriram o processo legislativo formal: foram propostas pelo chefe de governo e aprovadas pelo Parlamento alemão (Reichstag). À luz do positivismo jurídico, as leis por serem concebidas pelo Estado, buscavam teoricamente, a justiça e o bem comum na sociedade alemã.  Uma conclusão meramente lógica e que pode parecer radical na visão de alguns. Porém, no momento em que se defende a total separação entre direito e ideais como moral e ética ou se ignora qualquer fundamento do jusnaturalismo, qualquer norma concebida pelo Estado teria sua validade independente do conteúdo, e todos teriam que cumpri-la.

     O nazismo se utilizou do positivismo jurídico, principalmente da obra “Teoria Pura do Direito” de Hans Kelsen. Até aquele período o juspositivismo era defendido por grande parte dos juristas de renome, esse episódio, porém, diminuiu o prestígio dessa corrente. Essa afirmação é facilmente confirmada no seguinte trecho da obra: “um direito positivo não vale pelo fato de ser justo, isto é, pelo fato de a sua prescrição corresponder à norma da justiça – e vale mesmo que seja injusto”. A sua validade é independente da validade de uma norma de justiça. É esta a concepção do positivismo jurídico, e tal é a consequência de uma teoria jurídica positivista ou realista, enquanto contraposta à doutrina idealista (Kelsen 2003, pag. 68).

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      Apoiado pela propaganda em massa, pela máquina do governo e pelo ordenamento jurídico, Hitler promoveu uma disseminação do antissemitismo na Alemanha, que abriu precedente (mais tarde sem o apoio do Parlamento) para a exterminação de milhões de pessoas, não somente judeus, mas também ciganos, eslavos, homossexuais etc.

    

     Um argumento poderia ser utilizado pelos defensores do positivismo nesse episódio: o povo alemão aderiu ao governo. Primeiramente o antissemitismo não é uma característica do povo alemão, e de nada adiantaria se voltar contra as leis do país, todos eram obrigados a cumpri-las, sob pena de punições.

     Podemos concluir que do ponto de vista jurídico, a estrutura normativa montada pelos nazistas não havia falhas e era totalmente válida. Do ponto de vista positivista, as leis antissemitas eram legítimas, e as condutas resultantes da mesma eram justas, já que estavam em conformidade com as respectivas leis.     Uma brecha que poderia ser utilizada por qualquer governo totalitário, de acordo com Kelsen: “Segundo o Direito dos Estados totalitários, o governo tem poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais medidas, mas o que não podemos é considerá-las como fora da ordem jurídica desses Estados".

     No fim da guerra e estabelecido o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg no entre os anos de 1945 e 1946, iniciaram-se os julgamentos dos principais criminosos de guerra. Boa parte dos acusados alegou não ter nenhuma culpa, visto que só estavam cumprindo ordens superiores (apoiadas pela estrutura jurídica). Os juízes porém se utilizaram de alguns princípios do Direito Natural em suas decisões, visto que não havia nenhuma previsão legal que determinava as condutas realizadas como crimes, muito menos penas a serem aplicadas.

    3- O Caso das Leis Islâmicas

        A separação entre religião e Direito vem aumentando progressivamente no Ocidente, a Constituição brasileira de 1988 é descrita como laica, por exemplo. Porém juntamente com os sistemas romano-germânico e do common law, a “Charia” (também chamada de Sharia ou xaria) é o sistema e fonte jurídicos de vários países de maioria islâmica.

        O “Charia” regula todos os fatos sociais (de natureza econômica, civil, criminal, política etc.) e é orientado por um sistema de jurisprudências baseado inteiramente no Corão, o livro sagrado do Islamismo.  Alguns autores relacionam esse sistema com o common law, especialmente por se utilizar de decisões para solucionar os casos, com a diferença de que um é guiado somente pela religião, independente do senso de moral ou justiça por parte do homem.

         Há países de maioria mulçumana onde as leis islâmicas são aplicadas em diferentes graus ou mesmo ignoradas. A posição dos países mulçumanos em relação à influência da religião no Direito é dividida em quatro grupos:

  1. Estado Secular: onde há total separação da religião com as questões jurídicas.
  2. Estados onde predominam o Direito não influenciado pela religião, apenas com algumas exceções (casos de família e conjugais).
  3. Estados onde as leis islâmicas são aplicadas na maioria dos casos, exceto em determinados campos como, por exemplo, as atividades comerciais e tributárias, que são reguladas por legislação específica.
  4. Estados onde as leis islâmicas são absolutas e aplicadas rigorosamente (em muitos casos o líder político é também líder religioso, como os Aiatolás do Irã, por exemplo).

         De acordo com o Islã, essas leis são originadas por uma entidade divina através dos ensinamentos do seu livro sagrado, o criador do mundo e dos homens, logo também estão estritamente relacionadas com a ordem natural das coisas, superiores a qualquer outra norma criada pelo Estado.

        Nas últimas décadas, principalmente, começaram a surgir movimentos contra determinadas penas impostas pelas leis islâmicas, principalmente por parte de movimentos ligados aos Direitos Humanos. De fato, muitos dos casos veiculados pelos jornais, são  pela “visão ocidental”, considerados inconcebíveis e desumanos (torturas, mutilações e penas de morte), principalmente pelo fato de se originarem de infrações banais do nosso ponto de vista.

        No ano de 2006, um afegão chamado Abdul Rahman foi condenado à pena de morte por ter se convertido cristão, depois de ser denunciado à polícia por conhecidos. Devido à pressão externa de outros países, Abdul conseguiu sua liberdade e foi exilado na Itália. Outros casos como a paquistanesa Malala Yousafzai, baleada no seu país por defender a educação feminina, ilustram o constante conflito entre a rigorosa aplicação das leis mulçumanas e os direitos humanos.

       O caso das Leis Islâmicas é, assim como o do nazismo, um dos exemplos onde a lei é vista e aplicada para fins considerados injustos e imorais, só que no primeiro não há a positivação das normas, as leis não são concebidas pelo Estado.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1999.

NADER. Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000.

REALE. Miguel. Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 1994.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed., São Paulo: Atlas, 2002.    

Sobre o autor
Guilherme Maciel Salomão

Graduando em Direito pela UEMA.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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