A afirmação da justiça como um valor absoluto

23/05/2016 às 12:17
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Direito Natural e Direito Positivo sempre foram concebidos sob perspectivas diversas e conflitantes dentro de uma análise jurídico-filosófica. Em função disso estabeleceram-se correntes de pensamento que formaram as escolas jusnaturalista e juspositivista

 

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Justiça, Direito Natural e Jusnaturalismo 3. O discurso positivista e o relativismo 4. Direitos humanos e a pena de morte. 5. Justiça Pragmática 6. Conclusão. Referências Bibliográficas.

 

RESUMO

Direito Natural e Direito Positivo sempre foram concebidos sob perspectivas diversas e conflitantes dentro uma análise jurídico-filosófica. Da antiguidade à era contemporânea tais análises forneceram a base e o fundamento para o estabelecimento de correntes de pensamento que criaram as escolas jusnaturalista e juspositivista. Num panorama recente, o Pragmatismo moderno se opõe ao Realismo antigo criando um verdadeiro impasse.  Isso dá margem a uma reflexão sobre os valores de uma sociedade, estabelecendo-se a problemática sobre a sua legitimidade e de como os mesmos se configuram. Surge então a necessidade de se debater sobre a existência de uma justiça absoluta, inabalável que, paira em um plano metafísico, acima de todos os níveis e estratificações sociais, de convenções políticas e culturais e de como esta se manifestaria formalmente em leis positivas.

 

Palavras-chave: jusnaturalismo, juspositivismo, direito natural, direito positivo, justiça absoluta, relativismo, direitos humanos, pena de morte.

 

ABSTRACT

Natural Law and Positive Law have always been designed from different perspectives and conflicting within one legal and philosophical analysis. From antiquity to the contemporary such analysis provided the basis and foundation for the establishment of schools of thought that created the natural law and positive law schools. In a recent overview, the modern Pragmatism is opposed to the old realism creating a real impasse. This gives rise to a reflection on the values of a society, settling the problem on its legitimacy and how they are configured. Then comes the need to debate the existence of an absolute, unswerving justice that hangs on a metaphysical plane, above all levels and social strata, political and cultural conventions and how it formally manifest in positive laws.

 

Keywords: natural law, positivist law school, natural law, positive law, absolute justice, relativism, human rights, the death penalty

 

1 INTRODUÇÃO

 

Com o advento da globalização, da integração e da intercomunicação entre os povos, surge de forma gradativa reflexões sobre a legitimidade e aceitação de determinados costumes dentro do amplo contexto sócio-cultural de diferentes nações. Daí o surgimento de divergências e questionamentos sobre a reminiscência de certas práticas. Por vezes, a concepção de justiça passa a ser posta em xeque à medida que venha a ser relativizada em face de opiniões contraditórias e divergentes sobre dados conceitos.

O presente artigo tem como objetivo averiguar e problematizar de que forma a justiça, como valor real, muito caro, mas comum a cada ser humano, está sendo feita, e tratar da existência de um ideal pré-concebido de justiça, anterior ao homem, teorizando e analisando-o à luz da corrente jusnaturalista. Essa idéia deverá suscitar reflexões sobre a relativização de todas as coisas e sobre a aplicabilidade da pena de morte.

Importante ressalva deverá ser feita no tocante à relação da justiça com os direitos humanos, bem como a importância da sua prevalência dentro de um mundo tão heterogêneo que demonstra cada vez mais a necessidade de manter traços de uma universalidade no que diz respeito a valores essenciais.  É primordial notar que o processo de globalização se estende não só ao âmbito comercial ou tecnológico, mas exerce influências fortes na cultura e nas ações cotidianas. Reflexo disso seria o fato de alguns costumes que outrora eram tidos como correntes e absolutos para alguns povos passarem a ser questionados e deixados de lado.

A compreensão do tema será feito a partir da exposição do caso da iraniana Sakineh Ashtiani, que, por ter desacatado a lei de seu país que não permite o adultério, esteve no corredor da morte cerca de quase três anos atrás.

 

2 JUSTIÇA, DIREITO NATURAL E JUSNATURALISMO

 

Dentro de uma perspectiva dualista, direito natural e direito positivo podem conviver segundo uma hierarquia e numa relação de complementaridade. Assim, o direito natural forneceria princípios gerais para a elaboração dos ordenamentos, que o refletiriam suas particularidades. No entanto, essa noção nunca foi unanimidade e ao longo dos séculos direito natural e direito positivo têm sido pensados, problematizados por filósofos, teóricos e estudiosos de maneira bem diversificada, com teorias e análises que os leva a serem vistos de maneira bem separada e às vezes até excludente.

Porém, antigas temáticas, que permanecem atuais, característico em toda a história do ser humano, como o conceito de justiça, o conflito de valores e a sua legitimidade são temas que tangenciam a reflexão sobre a existência de um valor ideal ou superior que se sobrepõe a concepções imanentes e relativizadas.

E é essa a linha de pensamento da escola jusnaturalista. Para o jusnaturalismo, a justiça, bem como a verdade, é tida como um valor absoluto, transcendente, que, estando num plano metafísico seria concedida ao homem por meio de uma busca incessante. “A corrente jusnaturalista, coerente com a sua linha de pensamento, sustenta a tese do caráter absoluto da justiça como valor. Se as medidas do justo derivam do Direito Natural, que é eterno, imutável e universal, devem possuir igualmente esses caracteres (NADER, 2002)”. Portanto, o direito natural deriva da idéia de justiça transcendente. Pode-se entender a idéia de Direito Natural como um conjunto de princípios gerais que norteiam a elaboração do ordenamento.

O Direito natural passa a ser visto como um ponto de convergência para as diversas perspectivas jurídicas. Por ter um caráter irrefutável, absoluto, permanente e eterno, este deveria ser adequado às leis humanas que são sempre terrenas, transitórias, passageiras e se adéquam ao contexto histórico em que se situam. De forma que o Direito positivado pudesse refletir aquele que era concebido como superior ou anterior a ele.

A intenção a respeito do foco desta discussão é articular uma reflexão em nós sobre a importância de se ter, ainda nos dias de hoje, uma base metafísica para os direitos que são constantemente suprimidos, mas que derivam de uma essência naturalista e devem permanecer, tal a sua importância para uma convivência harmoniosa dentro de uma construção social e política de sociedade. 

Essa concepção ideológica sobre o direito natural e a justiça, permeou discussões e contradições da antiguidade à modernidade. Muitos se propunham a discutir sobre a fonte de legitimidade desse direito e de que forma ele poderia se manifestar. Dos antigos aos modernos, houve divergências de como este direito perfeito e essa justiça absoluta seria atingida de fato, sendo por meio da razão, de Deus ou da natureza.

 

A idéia de um Direito Natural, distinto do Direito Positivo, é muito antiga. Nós a encontramos nas manifestações mais remotas da civilização ocidental a respeito do problema da lei e da justiça, o mesmo ocorrendo na cultura do Oriente. Todavia, é entre os pensadores gregos que a aceitação de um Direito Natural, como expressão de exigências éticas e racionais, superiores às do Direito positivo ou histórico, passa a ser objeto de estudos especiais, até se converter em verdadeira "teoria". Pode-se dizer que as linhas fundamentais dessa compreensão do Direito Natural ainda perduram em nossa época, assistindo razão a Husserl quando nos lembra que, no tocante às idéias universais, somos todos ‘funcionários’ da cultura grega. (REALE; 2001; p.293)

 

Para Platão, a idéia de justiça estaria distante, mas a sua presença se faria sentir na vida terrena de cada ser humano. Logo, para além da justiça relativa dos homens haveria uma justiça absoluta que governa o kosmos (BITTAR e ALMEIDA; 2011; p.120). A justiça de fato seria então fruto de uma concepção cosmológica na qual o indivíduo seria capaz de apreendê-la através da contemplação.

Os estóicos aclaravam a idéia de que haveria uma mescla entre o Direito Natural e a razão. A natureza se equivaleria à razão e, portanto, a fonte de toda a perfeição seria a razão. O homem, em sua natureza cósmica deveria se guiar através de suas faculdades racionais e do Direito que emanava através desta razão, impondo-o a todos de maneira indiscriminada.

O pensamento que ecoou durante a Idade Média foi o de Santo Agostinho e o de São Tomás de Aquino que pregavam como fundamento da justiça e do direito, a vontade divina, que poderia ser apreendida através da razão. As leis humanas deveriam ser forjadas a partir das leis de Deus. Portanto, predominava nessa perspectiva uma visão teológica; Deus era a fonte do verdadeiro direito e da verdadeira justiça, visto que possui natureza perfeita, infalível e transcendental. Logo a lei natural deriva de uma força superior, sobre-humana.

Na idade moderna, a máxima era de que, o substrato de toda a lei natural e do direito era dado através da “reta razão”. Surge a Escola Clássica do Direito Natural. Deixou-se de lado, portanto aquela idéia de Deus como substrato das leis e de todas as coisas. A partir de Hugo Grócio, houve a tentativa de se utilizar dos métodos matemáticos e dedutivos para adequar a verdade transcendente da natureza às leis humanas de acordo com a razão. Segundo suas próprias palavras, presentes na obra Direito e Comércio Internacional de Baptista (1994): “Portanto, não há nada de arbitrário no direito natural, como não há arbitrariedade na aritmética. Os ditames da reta razão são o que a natureza humana e a natureza das coisas ordenam.”

Para John Locke as leis naturais seriam frutos da experiência humana. Tais leis poderiam ser apreendidas a partir do uso da razão. Por isso, haveria a necessidade de um contrato que as regulasse visando garantir a proteção dos direitos naturais, visto que a presença de um juiz imparcial é estritamente necessária para regular as controvérsias emergentes e garantir a paz típica do estado de natureza. Diferentemente de Locke, Thomas Hobbes se atém a favor de outro tipo de argumentação, colocando o estado de natureza do homem numa visão pessimista como algo caótico, expressando-se através da máxima: “o homem é o lobo do próprio homem”. Para ordenar e regular este constante estado de guerra de todos contra todos, estabelecer-se-ia o contrato e a criação de um Estado que evitaria a destruição de todos.

Portanto, para os pensadores contratualistas, só haveria ordem e justiça a partir da idéia de um estabelecimento de um pacto social que os pudesse garantir e que regularia todo o funcionamento da sociedade. Logo, numa análise feita por Wolkmer, em todo esse processo, o jusnaturalismo é concebido dentro dessas três concepções distintas ao longo da história: a Cosmológica, a Teológica e a Antropológica.

 

3  O DISCURSO POSITIVISTA E O RELATIVISMO

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A acepção da idéia de justiça e dos valores inerentes ao homem na era da contemporaneidade está mergulhada em uma concepção relativizada de valores e tendências. A corrente que fornece uma ampla base para tal fundamentação é o juspositivismo, que surge em sua formatação recente na primeira metade do século XIX. Ele passa a ser concebido como direito em sentido próprio antagonizando as concepções naturalistas.

Considerado o pai do positivismo e aquele que o sistematizou Comte defende a tese de que nada conhecemos para lá dos fenômenos, e o próprio conhecimento que destes temos é relativo e não absoluto. Ele acreditava que a essência das coisas era uma propriedade impenetrável e sempre desconhecida.

 

O termo positivismo não é, sabidamente, unívoco. Ele designa tanto a doutrina de Augusto Comte, como também aquelas que se ligam a sua doutrina ou a ela se assemelham. Comte entende por ‘ciência positiva’ coordination de faits. Devemos, segundo ele, reconhecer a impossibilidade de atingir as causas imanentes e criadoras dos fenômenos, aceitando os fatos e suas relações recíprocas como o único objeto possível de investigação científica. (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p.31)

 

Surge, por fim, a teoria dos antirrealistas e dos pragmáticos que então vão defender a teoria de que os valores e as verdades só existem no plano da consciência. Enquanto convenções lingüísticas não se estabelecem de maneira absoluta, adequando-se ao período histórico no qual vigoram. A justiça nesse sentido passaria a estar imersa em um discurso coerentista e relativizado. Só o é, enquanto estiver de acordo com as crenças, representações, diretrizes culturais e políticas de uma coletividade.  

Sob extrema influência juspositivista, foram elaborados os ordenamentos jurídicos modernos. E é exatamente nesse contexto jurídico em que nos encontramos. A justiça passou a ser um mero constructo humano. Perdeu-se a essência das coisas, o que acaba por emergir a sociedade num círculo vicioso, que passa a relativizar valores que foram consagrados ao longo do tempo e já foram tidos como supremos.

O caso da iraniana Sakineh, recentemente trazido a público pelos principais veículos de notícias do mundo, vem a ilustrar essa relativização de determinados termos. Neste caso, a desvalorização do valor supremo da vida. Alguns ordenamentos jurídicos impregnados de um espírito positivista acabam por serem tomados por um radicalismo intransigente. Valores transcendentes como a vida, a justiça, a verdade, a igualdade, a liberdade, a dignidade, a fraternidade, a segurança e a saúde refletem uma concepção infalível e imutável de direitos intrinsecamente humanos. Direitos estes que tão caramente foram implementados e, de forma gradativa, passaram a ser aplicados. Contudo, ainda hoje, como no caso em questão, acabam por serem suprimidos.

Assim foi a situação vivida por Sakineh Ashtiani. Mulher oriental de quarenta e cinco anos fora condenada ao apedrejamento pelos tribunais do Irã. Sua transgressão teria sido burlar a lei de seu país que prevê o adultério como crime, consagrada pela constituição. E que fique claro, não há intenção aqui de atribuir às constituições mulçumanas amparadas no Alcorão uma conceituação necessariamente ultrapassada e sanguinária, o que se sabe claramente pela atualidade dos assuntos nela tratados, não o é. É apenas um caso exemplificativo de como, o exacerbado cunho legalista das leis positivas vem ferindo os princípios gerais da lei natural ao redor do mundo. O que desemboca na questão chave de todo o teor da discussão instigadora suscitada até aqui: a justiça seria feita caso Sakineh fosse executada e pagasse com sua vida pelo crime de adultério?

 

4 DIREITOS HUMANOS E A PENA DE MORTE

 

É fato que toda essa discussão perpassa pela vigência e a importância dos direitos humanos que encontram abrigo nas asas do direito natural, local de seu nascituro. O pensamento racional-naturalista do século XVII se encontra nas raízes das modernas Declarações de Direitos Humanos que são reflexos desta linha de pensamento.

 

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos da pessoa resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que as pessoas gozem de liberdade de palavra, de crença e de liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum.

(Declaração Universal dos Direitos Humanos; Preâmbulo; 1948)

 

“Declara-se não o que é oculto e imperceptível, mas o que é de fácil acesso à razão humana.” (BITTAR, ALMEIDA; 2011). Grócio propõe que o direito internacional (Direito das Gentes) é um fragmento da lei natural e deve regular diretamente a relação entre as nações. 

Consta também no caput do artigo 5° da nossa Constituição a seguinte redação que trata dos direitos fundamentais: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade à segurança e à propriedade” (CF; 1988)

Por certo que nossa Constituição deve presar por tais valores. Mas não há efetividade no discurso político que se tornou vazio. O discurso positivado tem inibido o discurso valorativo das coisas. Tais direitos têm perdurado apenas enquanto letra da lei. Portanto, a ineficiência do discurso não é uma questão de regionalismo, mas se estende de forma abrangente a todos aqueles que se aproximam de forma exclusivista de um positivismo exacerbado em redor dos ordenamentos no mundo todo.

Isso se aproxima do conceito que Karl Loewenstein vai atribuir à constituição nominalista. As leis constitucionais não são efetivas e não refletem a realidade social em que se encontra imerso o cidadão. O âmbito social não é favorável para uma adequação entre as normas e o processo do poder. Estas normas passam a serem vistas como mero discurso formal. O que acaba desencadeando certa legitimidade para que direitos que deveriam ser garantidos aos indivíduos de maneira mínima sejam deixados de lado, e não há uma grande perspectiva de mudança com relação a isto. Seria uma realidade prematura para uma constituição normativa, que equivaleria àquela ideal na qual os destinatários e os detentores do poder usam e obedecem corretamente as leis.

É inegável que já é um grande passo tais direito estarem estampados como metas a serem atingidas em nosso texto constitucional. Não fosse assim, não haveria parâmetros e todo o resto se perderia. Mas enquanto não se voltar a ter a percepção de que é necessário adotarmos a concepção de que certos paradigmas nunca poderão ser deixados de lado ou simplesmente modificados visando à ordem das coisas vigentes, esse processo continuará e estes mesmos valores poderão ser vistos como vulneráveis e modificáveis.

 Por se tratar de um tema tão delicado (o direito à vida), um direito anterior e absoluto sendo tirado de alguém para satisfazer a uma noção dúbia de justiça, tal notícia provocou tantas discussões e comoção pública ao redor do mundo. O governo da Noruega passou a intervir no caso e ofereceu asilo ao advogado de Sakineh, Mohammad Mostafei. Isso prova que a noção de justiça como valor transcendente ainda incomoda e desperta questionamentos de muitas maneiras e de forma imperiosa quando é deixada de lado.

Diversas manifestações passaram a ser articuladas, principalmente pelas ONG’s como o Comitê Internacional contra Apedrejamento e grupos feministas e ativistas. Apelos foram feitos por órgãos como a Anistia Internacional e a Human Rights. O próprio Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores), órgão executivo de auxílio ao presidente na direção da política exterior do governo brasileiro entrou com pedido para concessão de asilo à iraniana que seria recebida como refugiada. 

A situação em questão nos coloca em uma situação real de relativização do conceito de justiça. O apedrejamento ou enforcamento já foram penas aplicadas de maneira bastante regular nas culturas antigas como nos mostra passagens da bíblia e previsões do alcorão. Por estarem previstas e positivadas na letra da lei são aceitas como verdades e a agressão ao bem da vida era comum para os que se encontravam naquele contexto.  Existia e ainda existe hoje a noção de que tudo aquilo que está descrito na lei, por conseguinte concebido como tradição, é o verdadeiro e justo.

No entanto, a própria história do homem em seu decurso natural nos ensina que as coisas não são bem assim. Costumes e tradições vêm sofrendo alterações à medida que novos questionamentos sobre a validade dos mesmos vão surgindo. Algumas leis e costumes já vêm sendo consideradas ultrapassadas e superadas. Alguns dos próprios princípios e costumes bíblicos se modificaram e passaram a ter um novo significado na medida em que transcorre o lapso temporal de tempo que vai do Antigo Testamento, pautado nas leis mosaicas, ao Novo Testamento, embasado nos evangelhos e nas cartas apostólicas.

Reflexões sobre a essência de determinadas coisas passam a ser feitas, e em cada época novos paradigmas são redescobertos. Outros são alterados. O certo é que a permanente busca pela verdade pode aguçar em nós, por vezes, o senso de necessidade de mudanças, num processo de constante busca pela perfeição. No entanto, é sempre imperativo que certos valores e costumes nunca mudam por já estarem embasados num categórico valor transcendental.

Embora para muitos a verdade e a justiça sejam valores inalcançáveis, é certo que deve existir uma eterna tentativa de adequação das mesmas à nossa realidade, ao nosso plano terreno, à imanência. Esta adequação deve ser primordialmente feita através do Direito Positivo. É dentro dessa perspectiva que este deve ser concebido. Portanto, embora positivado, este deve estar sempre aberto a mudanças. Quando do alcance de uma hipotética noção de justiça perfeita, aí sim é legítima a compactação de sua manutenção.

Tal ideal não se torna contraditório pelo fato de que a verdadeira justiça deriva da eterna e inesgotável atividade filosófica de tentar atingi-la. Porquanto, a vida, a dignidade, a igualdade são máximas que dela derivam e que uma vez estabelecidas passam a ser princípios absolutos que devem ser defendidos em qualquer ordenamento sempre acima de quaisquer particularismos. Da mesma forma os direitos humanos. São reflexos de uma visão universalista de mundo na qual certos preceitos não podem ser modificados por serem frutos de tradições ou crenças. Estes direitos existem por si só e possuem significância em si mesmos.

Nesse sentido, se relativizada, existiria no caso supracitado e tipificado como pena de morte, justiça para uns e injustiça para outros. O certo é que a concepção de justiça configurada no ordenamento árabe neste caso vai de encontro a todo e qualquer transcendentalismo metafísico que esta possa assumir. Embora, fruto de uma concepção religiosa ela afronta o que há de mais intrinsecamente divino ao ser humano: o direito a vida.

A ninguém pode ser tirado o direito a vida por se tratar de um quadro valorativo concebido não na ordem da imanência, mas sim da transcendência. Uma vez preestabelecida, a vida passa a ser um direito do qual não se pode abrir mão ou qual possa ser tomado. Se assim se suceder, abrir-se-á precedentes para devaneios e relativismos passionais e políticos.

 

Quer sirva ao pessimismo de Hobbes para legitimar a doutrina da monarquia absoluta, ou a Rousseau para conceber uma democracia radical, fundada na doutrina otimista da bondade natural dos homens; ou, então, para inspirar solenes Declarações de Direito dos indivíduos e dos povos, o certo é que o Direito Natural espelha as esperanças e as exigências da espécie humana, jamais conformada com as asperezas da lei positiva, no processo dramático da história. (REALE; 2001; p.293).

 

     Se o ser humano, em sua limitação natural, preso à imanência das coisas e ao mundo físico, pudesse realmente mensurar até onde vai o direito de alguém poder viver ou deixar de viver é certo que estaríamos imersos em pleno estado de autoritarismo.  Se houvesse uma hipotética legitimidade para matar, e, por conseguinte delegássemos esta ao Estado, concedendo-lhe tal prerrogativa de forças viveríamos em um permanente estado de opressão. Querendo ou não, este passaria a atuar de forma invasiva dentro da esfera individual de cada cidadão e toda a noção moderna de liberdade advinda de um histórico processo democrático, seja ela civil, social, política, cultural ou religiosa estaria comprometida.

Portanto, se o princípio do direito à vida é concebido dentro de uma visão extremamente juspositivista, de forma que não dê margem a nenhuma forma de dialética com o direito natural, de maneira que seja assim regido o espírito da lei; acaba por drasticamente dar vazão a interpretação de que dependendo do caso, de acordo com o contexto cultural ou com o momento histórico vivido, seja permitida a aplicação da pena de morte.

 

5 JUSTIÇA PRAGMÁTICA

 

É normal dentro do viés filosófico, quando se fala na questão da justiça, tratá-la como sendo determinada pelo tempo histórico respectivo. Dentro desta concepção, a verdadeira justiça, em sua natureza transcendente, poderia ser apreendida minimamente por meio de formas que os homens encontrariam para representá-la ao longo do tempo. Estas formas se transformariam em certezas indubitáveis tal qual o conhecimento matemático. São perfeitamente atingíveis se através de uma adequação racional. No entanto, tal justiça deve ser esvaziada de toda e qualquer subjetividade.

Ressalvando-se que a crítica que se tem feito aqui não se dá em função da própria existência do positivismo. Na verdade, como já tratado, a concepção de um direito positivado é determinante para a segurança jurídica e para agregar valores e manter a ordem de todo o ordenamento jurídico. O que verdadeiramente surge como um vício dentro das tendências contemporâneas de pensamento é o pragmatismo e a relativização que decorrem do discurso juspositivista.

A justiça passa a ser uma convenção. É vista como uma concepção pautada em jogos de linguagens das diferentes comunidades. É então considerada pelos pragmáticos como sendo um constructo que é resultado das experiências práticas humanas pautadas em uma abordagem utilitarista. A justiça se transforma nas conseqüências práticas do uso da mesma. Esta “justiça útil” se posta de maneira cada vez mais determinante dentro do universo jurídico em uma visão totalmente contrária aos ideais jusnaturalistas.

Por se tratar do tema central da discussão, a justiça tem ocupado o centro de toda problemática. Vimos com este caso da adúltera iraniana, que a vida deve ser um bem inviolável. Logo, a ninguém é dado o direito nem concedido o arbítrio de tomá-la. Entretanto, direitos como a liberdade e a igualdade, também já citados, se juntam a lista de valores invioláveis que também são propícios a serem transgredidos. Isso se configura no panorama mundial com a manutenção das ditaduras que interferem diretamente na supressão da liberdade de expressão e dos direitos políticos; a desigualdade social, fruto da acumulação de capital na qual uns são beneficiados e outros são postos à margem; na ineficiência, morosidade e burocracia do Estado e nos países onde homens e mulheres ainda não possuem os mesmos direitos.

Enfim, após ter sido condenada por adultério, logo outras acusações passaram a pesar contra Sakineh. Surgiram acusações de que ela teria sido cúmplice pelo assassinato de seu marido. Houve então a modificação de sua sentença condenatória e a pena de morte por apedrejamento que a princípio teria sido lhe imposta foi alterada. A nova pena condenava a mulher à morte por enforcamento.

A pressão internacional e de grupos em defesa dos direitos humanos produziram efeitos e como o caso ganhou grande repercussão, o regime dos aiatolás tentou despistar acusando-a de homicídio e suspendendo a morte por lapidação. O diplomata iraniano na Noruega Mohammad Hosseini declarou em certa ocasião “O apedrejamento é muito raro no Irã. Já foi decidido que essa mulher não será apedrejada”. A pena que valeria agora seria a do crime mais grave do qual ela estava sendo acusada – ser cúmplice no assassinato do marido.

 A partir de então, a imagem do Irã poderia sair muito prejudicada caso a execução efetivamente fosse consumada. “O juiz já tomou sua decisão. Agora está nas mãos dele se ela será enforcada ou solta.” - declarou Hosseini – “Há pouca simpatia por uma mulher que trai.” - continuou - ”Todos querem viver e ela deveria ter pensado nisso antes de trair”. Há notícias recentes de que a morte da iraniana não aconteceu e Sakineh Mohammadi Ashtiani foi libertada.

 

6 CONCLUSÃO

 

Conclui-se desta análise que a verdadeira justiça não pode contradizer o direito à vida. A justiça deve sempre ser compreendida como um padrão estabelecido a partir de uma eterna tentativa de apreensão axiomática do espírito humano. Apesar da incapacidade do ser humano em alcançar uma justiça absoluta em função de suas limitações cognitivas, este é perfeitamente capaz de estabelecer padrões bem definidos e coerentes, que de maneira legítima precisam ser internalizados e estendidos a uma universalidade.

Assim também os demais direitos humanos. Se traduzidos como certezas indubitáveis assumem um valor superior às instituições políticas e sociais de qualquer época. E para que isso se torne possível é imprescindível a existência da atividade filosófica. Deve ocorrer a tentativa de traduzir princípios de ordem metafísica (situados em um plano superior) que são tão primitivos e primordiais para a existência. Por conseguinte, a justiça é um desses princípios absolutos que deve ditar o teor dos ordenamentos jurídicos.

Nessa perspectiva, jusnaturalismo e juspositivismo mantém uma relação dialética na qual adquirem uma função complementar, jamais antagônica ou excludente. Isso se refletirá no estabelecimento de padrões baseados em valores e na efetivação dos mesmos na da letra fria da lei. A partir de uma conexão entre Direito Natural ou Lei Natural, que possui caráter genérico e imutável, e lei Lei Positivada, particular e mutável, só então poderemos vivenciar uma efetiva paz social.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAPTISTA, L. O. Direito do Comércio Internacional: Aspectos Fundamentais 1ª ed, São Paulo: Editora Aduaneiras/ Lex Editora S.A, 2004.

 

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FERRAZ JÚNIOR, T. S. Ciência do Direito.  2ª. ed. São Paulo: Atlas, 1980.

 

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Jornal Folha de São Paulo. Sakineh Ashtiani sera executada na quarta-feira no Irã, diz ONG. 02 de novembro. 2010. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/824273-sakineh-ashtiani-sera-executada-na-quarta-feira-no-ira-diz-ong.shtml> acessado em 19 de jan/2013

 

LIMA, A. A. de A. O percurso histórico do jusnaturalismo e sua influência no direito contemporâneo. Disponível em <www.webartigos.com> acessado em 23 de jan/2013

 

NADER, P. 2002. Introdução ao Estudo do Direito. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

 

REALE, M. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

 

WOLKMER, A.C. Ideologia, Estado e Direito. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

Sobre o autor
Samuel Rocha dos Santos

Acadêmico do 10o período do curso de Direito da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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