Análise crítica sobre o fenômeno da pulverização dos tipos penais relativos à criança e ao adolescente na legislação pertinente

24/05/2016 às 12:26
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A pulverização em diversos diplomas legais dos tipos penais que ensejam normas protetivas à criança e ao adolescente é fenômeno que acaba por desconstruir a necessária sistematização da legislação penal.

 

 

RESUMO

A pulverização em diversos diplomas legais dos tipos penais que ensejam normas protetivas à criança e ao adolescente é fenômeno que acaba por desconstruir a necessária sistematização da legislação penal. A doutrina tem feito crítica à técnica utilizada pelo legislador, visto que, por vezes, pode gerar efeitos negativos como o conflito aparente de normas. Em um quadro ideal haveria um sistema legislativo penal unificado, capaz de oferecer um tratamento mais coeso com o fim de melhor coibir as práticas ilícitas e de resguardar com maior efetividade os direitos relativos à criança e ao adolescente.

Palavras-chave: Pulverização dos tipos penais – Estatuto da Criança e do Adolescente – Código Penal – Sistematização.

                                                  

ABSTRACT

Spraying in several legal instruments of criminal offenses giving rise protective standards for children and adolescents is a phenomenon that ultimately deconstruct the necessary systematization of criminal law. The doctrine has made criticism of the technique used by the legislator, as it sometimes can generate negative effects as the apparent conflict of norms. In an ideal framework would be a unified criminal law system, able to offer a more cohesive treatment in order to better curb malpractices and protect more effectively the rights to children and adolescents.

Keywords: Spray criminal types - Statute of Children and Adolescents - Penal Code – Systematization.

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente é o diploma específico que veio a regulamentar os direitos das crianças e dos adolescentes com base nas diretrizes estabelecidas pela Constituição Federal de 1988. Trata-se da Lei Federal nº 8.069/1990 que tem como principal objetivo a proteção integral do menor consolidando-se como um marco regulatório dos direitos humanos referentes à criança e ao adolescente.

A exemplo de outros diplomas (Estatuto do Idoso – Lei nº10.741/2003 e o Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/1990) que visam garantir efetiva proteção a grupos específicos de pessoas consideradas hipossuficientes, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) se qualifica como um diploma extremamente garantista, visto que resguarda de maneira específica o público infantojuvenil atribuindo tratamento especial a um grupo de pessoas com atributos particulares.

Tais legislações consideradas extravagantes têm como função primordial a consolidação do princípio constitucional da isonomia, com previsão no art. 5º da Carta Magna. Oferecendo um tratamento diferenciado aos sujeitos abrangidos pela sua esfera de ação, o ECA visa estabelecer direitos imprescindíveis para o equilíbrio das relações jurídicas das quais figuram como parte os sujeitos por ele tutelados.

Analogamente ao que se vê no Estatuto do Idoso e no Código de Defesa do Consumidor, um dos meios empregados pelo legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente para a consolidação desta proteção específica foi novamente afirmar a capacidade Punitiva do Estado, estabelecendo normas penais que dizem respeito diretamente à criança e do adolescente e elencando tipos penais específicos, descrevendo condutas a serem coibidas. A violação das normas penais estabelecidas ensejará responsabilidade na esfera penal e a consequente punição na respectiva instância criminal.

 

2 O FENÔMENO DA PULVERIZAÇÃO DOS TIPOS PENAIS RELATIVOS À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE NA LEGISLAÇÃO

 

Como é sabido, o próprio Código Penal já previa infrações penais concernentes à criança e ao adolescente, colocando-as no pólo passivo de determinados crimes antes mesmo da edição do Estatuto. O art. 123 do diploma repressivo tem como tipo penal o homicídio “privilegiado” praticado contra criança, tipificado como infanticídio, no qual se enquadra como sujeito ativo a própria mãe que mata o filho sob influência do estado puerperal durante ou logo após o parto.

Outro importante exemplo se encontra no art. 133 do Código Penal, que descreve a conduta típica de abandono de incapaz. A capitulação penal tem como sujeito passivo o incapaz, pessoa vulnerável, que em grande parte das vezes é a própria criança, que está sob o cuidado, guarda, vigilância ou autoridade de alguém, e que seja incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono. Igualmente, o crime de “corrupção de menores” (art. 218 do CP) tem como sujeito passivo a criança ou adolescente menor de 14 anos que seja de alguma forma induzido a satisfazer a lascívia de outrem.

Além dos exemplos supramencionados, não obstante a existência de outras normas penais as quais englobam da mesma forma a proteção à vida, à integridade física e psicológica dos menores, o Código Penal também trata de tipos penais derivados, destacando a especial condição de criança ou adolescente. A estes tipos penais incidem causas específicas de aumento de pena ou são considerados qualificados por se tratar de crime cuja conduta possui maior gravidade em relação ao tipo penal base. Assim, o art. 121, §4º dispõe que, sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos. O art. 148, §1º, inciso I prevê a qualificadora do crime de cárcere privado. Aqui a pena em abstrato possui cominação mais gravosa caso a vítima do crime seja descendente do autor.

A condição de criança também possui especial guarida quando se fala das agravantes que incidem sobre os crimes comuns. Neste caso, a agravante genérica do art. 61, inciso II, “h”, é imputada a qualquer crime cometido contra criança, passando a ser considerada para o aumento da pena base na segunda fase da dosimetria, pelo juiz, conforme preconizado pelo art. 68 do CP.

Em face do exposto, destaca-se a crítica por parte da doutrina ao fenômeno de pulverização de tipos penais em diversos diplomas legais, mais especificamente aos crimes cometidos contra a criança e o adolescente. Tomando-se por base tal fenômeno, o art. 226 do ECA dispõe que “aplicam-se aos crimes definidos nesta Lei as normas da Parte Geral do Código Penal e, quanto ao processo, as pertinentes ao Código de Processo Penal. Segundo o próprio Código Penal em seu art. 12, “as regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”. Outrossim, o Código de Processo Penal em seu art. 1º impõe ao Processo Penal a aplicação das normas regidas pelo Código de Processo Penal.

Logo, de acordo com o próprio ECA, fica nele estabelecida a aplicação das normas de direito substantivo, presentes no diploma repressivo e das normas de direito adjetivo, ou seja, o conjunto de normas relativas às formas de aplicação das regras penais, presentes no CPP.

Há de se ter em mente que o fenômeno da pulverização dos tipos penais em diversos diplomas legais acaba por desconstruir a necessária sistematização da legislação penal. Isto porque o ideal seria um sistema legislativo penal unificado, capaz de oferecer um tratamento mais coeso com o fim de melhor coibir as práticas ilícitas e de resguardar com maior efetividade os direitos previstos na lei.

A descrição de diversos tipos penais em diferentes diplomas legislativos, imputando ao menor uma especial proteção (proteção esta proveniente justamente de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico com base nas normas constitucionais do art. 227, CF), traz, por vezes, efeitos negativos como os conflitos aparentes de normas.

Para o devido aprofundamento sobre o assunto toma-se como exemplo o crime de maus-tratos previsto no art. 136 do CP, que encontra no ECA um tipo penal correspondente em seu art. 232, com aplicação muito semelhante, a depender da situação concreta.

Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento:

Pena – detenção de seis meses a dois anos.

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Da redação do referido dispositivo decorre que, em determinadas situações ambos os dispositivos (art. 136, CP e art. 232, ECA) penais vigentes dentro de um mesmo ordenamento jurídico causarão dificuldade de interpretação ao operador do direito, pois poderão ser aplicados à mesma situação, devendo-se atentar para uma orientação que seja segura e suficiente para dirimir o conflito aparente. Tal conflito surge, por exemplo, em um caso abstrato em que um pai submete seu filho menor a trabalho excessivo.

Conforme entendimento de Fernando Capez (2005), a solução a essa problemática seria dada pelo princípio da especialidade, devendo prevalecer o tipo penal descrito no artigo 232, ECA. No entanto, tal critério perpetua a dúvida visto que a própria redação do art. 136 CP deixa em aberto a possibilidade de que a vítima do crime de maus tratos possa também ser menor de 18 anos.

Da redação do art. 136, CP percebe-se a especialidade da conduta mencionada no dispositivo que tem forma vinculada.

Art. 136. Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Pena – detenção, de dois meses a um ano, ou multa.

Assim, no caso em que o crime é praticado contra a criança e adolescente, o art. 232 do ECA incidirá de forma residual em casos de constrangimentos ou vexames que não estejam tipificadas precisamente nos termos previstos no art. 136, CP, uma vez que este, por sua vez, acaba por descrever uma conduta mais específica, embora seja norma mais abrangente.

É tanto que o crime de maus tratos previsto no diploma repressivo possui objeto jurídico diverso do crime de constrangimento previsto no ECA. Conforme o tipo penal o objeto jurídico é a periclitação da vida e saúde e o delito exige que o agente atue com especial fim de educação, ensino, tratamento ou custódia.

Já o referido crime estatutário possui como elemento subjetivo tão somente a conduta dolosa voltada unicamente para a ação de causar vexame ou constrangimento. “Sendo tipo de ação livre, pode ser praticado com emprego de violência, grave ameaça ou por qualquer outra forma que conduza aos resultados materiais exigidos pelo tipo” (CONDACK, 2010, p. 901).

De maneira análoga, outro exemplo que se relaciona com os efeitos negativos da pulverização legislativa dos crimes contra a criança e adolescente trata do tipo penal que versa sobre o constrangimento ilegal, previsto no art. 146 do CP.

Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

 Neste crime se o sujeito passivo for menor, deve-se observar o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu já mencionado artigo 232 (submeter criança a constrangimento ou vexame) que afasta a aplicação do 146, CP, pelo princípio da especialidade.  Destaque-se nesse caso a “causa especificadora”: a pena do artigo 232 só será aplicada se a criança ou o adolescente estiver sob autoridade, guarda ou vigilância do agente. Assim, não havendo a causa especificadora, aplica-se o artigo 146 do Código Penal.

 

3 CONCLUSÃO

 

Diante do exposto, surge determinada anomalia relativa ao “quantum” cominado a certas penas em abstrato pelo ECA. Trata-se de situação muito peculiar, a exemplo do que ocorre com o crime de maus tratos previsto no art. 136 do CP. Este em tese descreve conduta mais gravosa à qual se aplica penalidade menor (detenção de dois meses a um ano ou multa). Já o crime do art. 232, ECA em tese, menos gravosa, tem pena maior (detenção de seis meses a dois anos). Nesses casos, há nítida infração ao Princípio da Proporcionalidade de acordo com o atual tratamento do tema.

Portanto, a falta de sistematização da legislação penal dá origem a uma verdadeira colcha de retalhos, costurada de maneira dificultosa por força da melhor exegese praticada pelo intérprete da lei, levando em consideração a análise de caso concreto.

Nos exemplos tratados, tal fenômeno é fruto de verdadeira esquizofrenia do legislador, estabelecendo que alguns dos tipos penais do Estatuto da Criança e do Adolescente são especiais em relação aos do Código Penal no que se refere ao sujeito passivo, ao mesmo tempo em que o tipo penal do Código Penal é especial em relação do ECA quanto às condutas respectivamente descritasquanto às condutas respectivamente descritas.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 2. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 217..

 

CONDACK, Cláudia Canto. Dos Crimes. Curso de Direito da Criança e do Adolescente – Aspectos Teóricos e Práticos. 4

 

Sobre o autor
Samuel Rocha dos Santos

Acadêmico do 10o período do curso de Direito da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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