A AÇÃO PENAL NOS CRIMES DE ESTUPRO

28/05/2016 às 11:33
Leia nesta página:

O ARTIGO TRAZ À DISCUSSÃO O DEBATE COM RELAÇÃO A AÇÃO PENAL NOS CRIMES DE ESTUPRO.

~~A AÇÃO PENAL NO CRIME DE ESTUPRO

Rogério Tadeu Romano

Já dissemos que a questão do estupro no Brasil, como se vê das estatísticas, passa pela impunidade. Não adianta aumentar a pena: o problema é a impunidade.

A cultura do machismo contribui em muito para isso.

A isso se soma que não adianta criar uma delegacia federal da mulher. A Polícia Federal já tem imensas responsabilidades com as investigações de crimes federais dentro do que preceitua a Constituição e outros que devem ser objeto de instrução e julgamento por tribunais superiores. O crime é de competência da Justiça Comum Estadual, devendo os Estados-membros se organizarem para fazer a devida persecução penal, independente do fato de que devem existir, sim, nessas unidades da federação, delegacias da mulher, que tratem o tema com a devida e necessária atenção.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram registrados em 2014 (último dado disponível) quase 48 mil estupros, 1 a cada 11 minutos.

Ainda pior se tem, pois esse dado estarrecedor representa apenas uma parcela das ocorrências desse crime. Estima-se que o real número de vítimas da violência sexual no país esteja entre 150 mil e 500 mil pessoas por ano.

Correto o entendimento de que a subnotificação explica-se sobretudo por uma visão machista difusa que, em muitos casos, não só relativiza ou mesmo tolera o estupro como também transforma a mulher em culpada pelo ataque que sofreu.

A ação penal passa, nos casos em que não se trata de menor ou vulnerável, pela iniciativa da vítima, que, ou por medo, ou por cultura de subsistência, deixa de representar o caso ao Ministério Público. Entendo que a lei deve definir, em todos os casos, a ação penal como pública incondicionada, de iniciativa do Ministério Público.

A Lei 12.015/2009 deu novo tratamento a matéria, definido que a ação penal pública condicionada à representação passou a ser a regra do sistema. Penso que a regra nos crimes de estupro deve ser a ação penal pública incondicionada, que hoje se vincula aos casos de estupro quando a vítima é menor de 18 anos ou pessoa vulnerável.

Isso porque além das alterações na parte material, subsumindo ao mesmo tipo penal as condutas que caracterizavam o atentado violento ao pudor, sob o título de estupro(artigo 213 do Código Penal), ocorreram várias alterações, notadamente com relação a titularidade da ação penal.

Antes da reforma o tratamento era este:

a) Ação penal privada: era a regra. Como estes ilícitos penais afetam sobremaneira a intimidade da vítima, optou-se por dar a ela o próprio exercício de ação;

b) Ação penal pública condicionada: não tendo a vítima condição financeira, a sua hipossuficiência trazia para o Ministério Público a titularidade da ação, dependendo, todavia, de representação;

c) Ação penal pública incondicionada: se a violência utilizada para a prática da infração provocasse lesão corporal grave ou morte ou ainda se ocorresse o abuso do poder familiar ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador.

O Supremo Tribunal Federal entendeu que o estupro era crime complexo, editando a Súmula 608, consagrando que o crime de estupro, praticado mediante violência real, era de ação penal pública incondicionada. Por este entendimento, se o estuprador provocasse apenas lesão leve na vítima, a ação seria pública incondicionada. Violência real é agressão física, englobando a conduta que leva à morte, às lesões corporais e até mesmo às vias de fato. Excluía-se a violência moral(ameaça) e a violência presumida, que caracterizam o estupro, mas, em regra, a ação era privada.

A referida Súmula tinha aplicação ainda ao crime de atentando violento ao pudor, previsto no artigo 214 do Código Penal.

Entendeu-se que com o advento da Lei 12.015/2009 os crimes contra a dignidade sexual previstos no Capítulo I(crimes contra a liberdade sexual – artigos 213 a 216 – A do Código Penal) e no Capítulo II(crimes sexuais contra vulnerável – artigos 217 – A ao 218 – B, Código Penal) passam a ter tratamento uniforme, uma vez que a Súmula 608 do Supremo Tribunal Federal não teria mais aplicação.

Fica assim a situação:

a) Ação penal privada: não mais subsiste, a não ser que haja inércia do Ministério Público, quando terá cabimento a ação penal privada subsidiária da pública;

b) Ação penal pública condicionada: data vênia ao entendimento de autores como TÁVORA e ALENCAR, entendo que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, na Súmula 608, permanece inalterada. A ação penal, no crime de estupro, com lesão grave ou morte, é de ação penal pública incondicionada, porque tanto a lesão corporal grave quanto o homicídio são delitos de ação penal pública incondicionada;

c) Ação penal pública incondicionada: quando a vítima é menor de dezoito anos ou pessoa vulnerável, a teor do artigo 225, parágrafo único, do Código Penal. Vulnerável é o menor de quatorze anos; os portadores de enfermidade ou doença mental que não possuem discernimento para a prática do ato e as pessoas que por qualquer outra causa não puderem oferecer resistência, como as que se encontrem entorpecidas. Não se faz referência à expressão violência presumida que foi substituída por vulnerabilidade.

A Lei 12.015/2009 ofende de forma clara os princípios da dignidade da pessoa humana e da proibição da proteção deficiente por parte do Estado. Por essa razão a Procuradoria-Geral da República ajuizou ação direta de inconstitucionalidade n. 4.301 contra a previsão daquela norma, Lei 12.015/2009, no sentido de que, no crime de estupro, em que resulte lesão corporal grave ou morte, deve haver ação penal pública condicionada à representação, e não mais por meio de ação penal pública incondicionada.

Tal alteração, insista-se , significa um grave retrocesso em relação aos crimes de estupro dos quais resulte lesão corporal grave e morte, uma vez que a persecução criminal nesses casos, antes incondicionada, passou a depender de representação da vítima ou de seu representante legal.

Na ação penal pública condicionada, que é titulada pelo Ministério Público, justifica-se o fato de ser ela condicionada a um permissivo(representação, requisição), externando pela vítima ou por seu representante legal, a ofensa que se fez a ela em sua intimidade, situação que é tecnicamente denominada de representação. Pode ainda a permissão ser dada na forma de requisição oriunda do Ministro da Justiça como se tem por exemplo nos crimes cometidos contra a honra do Presidente da República e do Chefe do Governo estrangeiro(artigo 114, inciso I, combinado com o artigo 145, parágrafo único do Código Penal).

A representação é uma condição de procedibilidade. Não se trata de condição objetiva de punibilidade. Para ela não se exige rigor formal da representação que pode ser apresentada de forma oral ou por escrito(artigo 39, CPP). Se a vítima apresenta queixa-crime(ação penal privada), por erro, esta pode ser tratada como representação se for o caso de ação penal pública.

Pois os problemas de intepretação com relação a legitimidade são preocupantes para o operador do direito.

A matéria é sujeita a discussão doutrinária e jurisprudencial. Trago a lição de Cézar Roberto Bitencourt:

Há uma  confusa previsão da natureza da ação penal nos crimes contra a liberdade sexual e contra vítima vulnerável. A Lei n. 12.015/2009, que alterou a redação do art. 225 do Código Penal, determina que a ação penal, para os crimes constantes dos Capítulos I e II do Título VI (“Dos Crimes contra a liberdade sexual” e “Dos crimes sexuais contra vulnerável”, respectivamente), passa a ser pública condicionada à representação. Inverte, dessa forma, sua natureza, que era de exclusiva iniciativa privada. Contudo, paradoxalmente, o parágrafo único do mesmo dispositivo legal determina que a ação penal é pública incondicionada se a vítima for menor de dezoito anos ou pessoa vulnerável, ou seja, na hipótese dos crimes previstos no Capítulo II do mesmo Título do Código Penal, o exercício da ação penal não depende de qualquer condição, contrariando a previsão do caput. Afinal, nos crimes sexuais contra vulnerável (Capítulo II) a ação penal será pública condicionada à representação, como determina o caput do questionado art. 225, ou será pública incondicionada, como afirma o seu parágrafo único? Trata-se de um dos aspectos de uma verdadeira vexata quaestio deste Capítulo IV, que cuida das disposições gerais; o outro reside na contradição do ordenamento jurídico que, a pretexto de proteger um direito constitucionalmente tutelado – a liberdade sexual do cidadão -, restringe exatamente o exercício dessa liberdade, que era protegida pela natureza da ação penal de exclusiva iniciativa privada, pois reconhecia, nesses crimes, a prevalência do interesse individual em relação ao interesse público. (Tratado de Direito Penal, Parte Especial – Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual até os Crimes Contra a Fé Pública. 8ª ed., págs. 150/151).

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A questão longe está de ser pacificada nas Cortes nacionais. Todavia registre-se manifestação do Superior Tribunal de Justiça, especificamente pela 6ª Turma, no julgamento do HC 276.510/RJ, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 11/11/2014, DJe 01/12/2014.

De acordo com o entendimento esposado no referido caso concreto, ressaltando-se que o entendimento se deu por maioria, com voto divergente do Ministro Rogério Schietti Cruz, a interpretação que deve ser dada ao referido dispositivo legal (artigo 225 do CPB) a partir da Lei 12.015/2009, especificamente em relação aos crimes sexuais contra vulnerável, é a de que:

“em relação à vítima possuidora de incapacidade permanente de oferecer resistência à prática dos atos libidinosos, a ação penal seria sempre incondicionada. Mas, em se tratando de pessoa incapaz de oferecer resistência apenas na ocasião da ocorrência dos atos libidinosos, a ação penal permanece condicionada à representação da vítima, da qual não pode ser retirada a escolha de evitar o strepitus judicii. Com este entendimento, afasta-se a interpretação no sentido de que qualquer crime de estupro de vulnerável seria de ação penal pública incondicionada, preservando-se o sentido da redação do caput do art. 225 do Código Penal.. No caso em exame, observa-se que, embora a suposta vítima tenha sido considerada incapaz de oferecer resistência na ocasião da prática dos atos libidinosos, esta não é considerada pessoa vulnerável, a ponto de ensejar a modificação da ação penal. Ou seja, a vulnerabilidade pôde ser configurada apenas na ocasião da ocorrência do crime. Assim, a ação penal para o processamento do crime é pública condicionada à representação. Verificada a ausência de manifestação inequívoca da suposta vítima de ver processado o paciente pelo crime de estupro de vulnerável, deve ser reconhecida a ausência de condição de procedibilidade para o exercício da ação penal. Observado que o crime foi supostamente praticado em 30/1/2012, mostra-se necessário o reconhecimento da decadência do direito de representação, estando extinta a punibilidade do agente.

Por essa interpretação dada ao Superior Tribunal de Justiça, com o devido respeito, a ação penal iria depender da vítima:

a) Se a incapacidade da vítima em oferecer resistência à prática de atos libidinosos for permanente, a ação será sempre pública INCONDICIONADA.

(b) Em se tratando de pessoa incapaz de oferecer resistência apenas na ocasião específica da prática dos atos libidinosos, não se consideraria ela como pessoa vulnerável, razão pela qual desafiaria a ação penal pública condicionada à representação.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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