Em sua preocupação pela instituição ético-jurídica da família, o ordenamento jurídico objetiva amparar aquele que se encontra em situação peculiar de fragibilidade, na qual, decorre a obrigação de pagar alimentos entre os membros familiares, cujo principal aspecto que orienta esta obrigação é o dever de solidariedade familiar. Nesse raciocínio, o bem jurídico protegido é a assistência familiar, traduzida no dever de prestar alimentos mínimos, fundamentais à subsistência do que necessita ser amparado materialmente, mantendo-se em perfeito funcionamento ético-social, a instituição familiar.
Neste sentido, a legislação brasileira reservou espaço para o comportamento lesivo aos interesses da família, sobretudo, no que se refere ao fornecimento dos meios de subsistência aos seus membros. Sabe-se que deve ser aplicada à execução de alimentos, quando ocorrer o não pagamento de pensão alimentícia judicialmente fixada ou acordada, na qual se admite a decretação da prisão do devedor, caso este não pague, e nem se escuse de sua obrigação. Certo é que, figura-se ainda, outro efeito de natureza criminal a incidir sobre a pessoa do inadimplente, de modo que a legislação reservou no estatuto repressivo, o art. 244, do Código Penal, a conduta penal delitiva do abandono material, configurado pelo não pagamento de pensão alimentícia judicialmente fixada ou acordada.
Nesta trilha, o art. 244, do Código Penal Brasileiro, prescreve “verbis”:
Art. 244. “Deixar, sem justa causa, de prover à subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou valetudinário, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada o majorada...
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro anos), e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou elide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada.
Importante destacar que em quaisquer das modalidades típicas do referido delito somente se aperfeiçoa em razão do dolo, não se admitindo, portanto, a responsabilização da culpa, pois o dolo é representado pela vontade do agente caracterizando as elementares do tipo penal. O abandono material contém um componente normativo, contido na expressão “sem justa causa”, na qual é exigida para a configuração do delito, ou seja, para que a conduta seja amparada por lei o inadimplemento tem que ocorrer sem motivo justo. Assim, o mero inadimplemento, por si só, não caracteriza o abandono material. Neste contexto, Fernando Capez (2015, p.197) leciona:
É o dolo, consubstanciado na vontade livre e consciente de praticar uma das condutas prevista no tipo penal. Importa observar que não basta o mero inadimplemento das prestações alimentícias fixadas judicialmente para que o crime se configure. È necessário comprovar que o agente, propositadamente, possuindo recursos para arcar com a pensão, frustra ou ilide seu pagamento.
Nessa ordem de idéias, o crime de abandono material consuma-se no momento que o agente deixa de efetuar o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada na data estipulada, por falta de justa causa, configurando assim crime omissivo permanente. Em sendo omisso permanente o crime não se admite tentativa.
Com a inserção do abandono material como crime omissivo, o Direito Penal, mesmo tendo natureza subsidiária, ou seja, devendo manter-se afastado quando satisfatórios outros métodos mais suaves para preservar ou restaurar a ordem pública, este tem obrigação de proteger os valores socialmente importantes, por meio da prevenção geral e especial que compõe a essência da sanção criminal, dirigindo-se os diversos fins da pena para vias socialmente construtivas.
Quanto à figura típica que criminaliza o abandono material decorrente do “não pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada”, tem-se que o Direito Civil, por acolher na ação de execução de alimentos a imediata prisão civil do devedor inadimplente. Tal espécie de prisão está previstamente expressa no art. 5º, LXVII, da Constituição Federal. Ela de nada tem a ver com a sanção criminal prevista no art. 244 do Código Penal, tendo em vista que essa necessita de um processo-crime, além do que, por tratar-se de crime apenado com detenção de 1 a 4 anos e multa, inicia-se, obrigatoriamente, o cumprimento da pena em regime semiaberto ou aberto, podendo ainda o agente prestar fiança à autoridade policial, o que possibilitará responder o processo em liberdade.
È mister atentar a que, o crime de abandono material caracteriza-se pela simples falta de proporcionamento dos meios de subsistência, ou seja, nos dizeres do tipo penal “não lhes proporcionando os recursos necessários” refere-se àquilo que é estritamente necessário à sobrevivência da pessoa, e não no sentido de “alimentos”, cujo âmbito é mais vasto que daquele, pois não comporta apenas os meios necessários à vida, mas também outros, como o indispensável à educação, instrução, etc.
Perante isto, se o devedor de alimentos não adimplir o débito, este pode sofrer as sanções nas esferas penais e civis, de maneiras distintas e independentes. De forma que, no caso da prisão como meio coercitivo (esfera civil), havendo o pagamento do débito alimentar, o devedor será posto em liberdade de maneira imediata. Como assinala Carlos Roberto Gonçalves (2007, p. 145):
[...] a prisão civil por alimentos não tem caráter punitivo. Não constitui propriamente pena, mas meio de coerção, expediente destinado a forçar o devedor a cumprir a obrigação alimentar. Por essa razão, será imediatamente revogada se o débito for pago.
Com isto, uma vez tendo sido pago o débito alimentar e revogada a prisão civil do devedor, tal situação não tem o condão de interferir na esfera criminal, pois esta não está subordinada aquela, posto que, no processo-crime de abandono material, previsto no art. 244 do Código Penal, a conduta delitiva já se consumou com o não pagamento da prestação alimentícia.